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Bruna Frascolla
April 16, 2025
© Photo: Public domain

A Rússia mostra aos súditos ocidentais que existe um lugar no planeta onde pessoas de senso comum podem ser livres e normais.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

A propaganda antirrussa insiste que Putin é igual a Hitler e todos precisam contê-lo; do contrário, ele irá conquistar o mundo inteiro. Essa propaganda está longe de ser original, e por dois motivos: primeiro, porque as lideranças da OTAN sempre comparam o vilão da vez a Hitler; segundo, porque a paranoia antirrussa já foi mais insensata. Em Imperiofobia e lenda negra, a historiadora espanhola María Elvira Roca Barea conta que em meados do século XIX os jornais australianos discutiam, a sério, se os russos invadiriam primeiro Melbourne ou Sydney. Por mais doida que seja Kaja Kallas, acho que ela ainda não imagina Putin governando cangurus.

No entanto, se formos comparar a maneira como Putin é tratado pelas potências ocidentais à maneira como Hitler era tratado, vemos uma grande diferença. À exceção de Churchill, os líderes ocidentais nunca disseram que Hitler faria guerras expansionistas até ser contido pela mão militar, mesmo que ele houvesse registrado em livro sua intenção de conquistar um Lebensraum ao leste. O mais provável é que acreditassem que Hitler era um problema dos russos, e os russos não importam. Um liberal talvez contra-argumente que a negligência de Chamberlain e companhia serviu de lição para as gerações vindouras, que por isso mesmo se preocupam com novos Hitlers.

No entanto, há um precedente muito mais similar: a narrativa de Oliver Cromwell contra a Espanha, o suprassumo do papismo que jamais deixaria de se expandir e com a qual não se poderia negociar. Leiamos um trecho de um discurso seu feito ao parlamento em 1656, pouco depois de tentar tomar a ilha de Santo Domingo e levar a Jamaica: “vosso grande inimigo é o espanhol. Ele é um inimigo natural. Ele é naturalmente inimigo; ele o é por completo: porque é inimigo de tudo o que é de Deus. […] Não podeis arranjar uma paz honesta e duradoura com ele: o Parlamento Longo já tentou e não conseguiu. A França, todos os protestantes da Alemanha, já concordam que seu propósito era ter um império sobre todo o Mundo Cristão, se não mais.”

Aí está o script usado hoje na Guerra da Ucrânia: Putin é a encarnação do mal (só não falam em Deus por serem ateus); não é possível negociar com Putin; Putin, se deixar, vai conquistar até a França.

Há quem aponte, também, que a Rússia gera histeria no Ocidente por causa do seu conservadorismo. Nisto vejo outra vez uma analogia com a postura de Cromwell: seu temor era que a potência com a religião mais antiga do continente recobrasse a autoridade sobre os seus súditos, que não raro eram seus adeptos. Na Inglaterra, o protestantismo foi imposto de cima a baixo para a população. Primeiro os monarcas anglicanos reprimiram os católicos, e em seguida Cromwell manteve a repressão aos católicos – inclusive aos irlandeses, que ele conquistou barbaramente – e estendeu-a aos anglicanos, em função da sua adesão ao rei. A soma de católicos e anglicanos na Grã-Bretanha compunha a maioria da população; não obstante, ele legitimava seu governo com a proteção das minorias. Nas palavras de Guizot, “ele protegia uns dos outros, eficazmente, os presbiterianos, os independentes, os anabatistas, os milenaristas, os sectários de todo tipo, lembrando-lhes que há pouco eram todos perseguidos e se deviam caridade e apoio mútuos” (République d’Angleterre, v. 2, p. 152). Além disso, ele convidou os judeus a voltarem para a Inglaterra, garantindo-lhe liberdade de culto igual às das demais seitas.

Assim, Cromwell tem em comum com as elites liberais do presente o fato de governar para minorias enquanto reprime as maiorias. As elites liberais atuais não só usam Parada Gay como índice de civilidade (Israel tem uma grande, Gaza não tem nenhuma) e, em alguns países, podem mandar para a cadeia quem não acreditar que mulheres não têm pênis. Fazem isso enquanto se consideram bondosas e democráticas – porque o conservadorismo é coisa do demônio ou, em tempos ateus, coisa de Hitler.

A Rússia de Putin incomoda não só por assuntos externos, da economia e da geopolítica, mas também por uma questão interna. A Rússia mostra aos súditos ocidentais que existe um lugar no planeta onde pessoas de senso comum podem ser livres e normais. É, portanto, um constante chamado à rebelião interna, que precisa ser exorcizado a qual quer custo.

O fantasma de Cromwell contra a Rússia

A Rússia mostra aos súditos ocidentais que existe um lugar no planeta onde pessoas de senso comum podem ser livres e normais.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

A propaganda antirrussa insiste que Putin é igual a Hitler e todos precisam contê-lo; do contrário, ele irá conquistar o mundo inteiro. Essa propaganda está longe de ser original, e por dois motivos: primeiro, porque as lideranças da OTAN sempre comparam o vilão da vez a Hitler; segundo, porque a paranoia antirrussa já foi mais insensata. Em Imperiofobia e lenda negra, a historiadora espanhola María Elvira Roca Barea conta que em meados do século XIX os jornais australianos discutiam, a sério, se os russos invadiriam primeiro Melbourne ou Sydney. Por mais doida que seja Kaja Kallas, acho que ela ainda não imagina Putin governando cangurus.

No entanto, se formos comparar a maneira como Putin é tratado pelas potências ocidentais à maneira como Hitler era tratado, vemos uma grande diferença. À exceção de Churchill, os líderes ocidentais nunca disseram que Hitler faria guerras expansionistas até ser contido pela mão militar, mesmo que ele houvesse registrado em livro sua intenção de conquistar um Lebensraum ao leste. O mais provável é que acreditassem que Hitler era um problema dos russos, e os russos não importam. Um liberal talvez contra-argumente que a negligência de Chamberlain e companhia serviu de lição para as gerações vindouras, que por isso mesmo se preocupam com novos Hitlers.

No entanto, há um precedente muito mais similar: a narrativa de Oliver Cromwell contra a Espanha, o suprassumo do papismo que jamais deixaria de se expandir e com a qual não se poderia negociar. Leiamos um trecho de um discurso seu feito ao parlamento em 1656, pouco depois de tentar tomar a ilha de Santo Domingo e levar a Jamaica: “vosso grande inimigo é o espanhol. Ele é um inimigo natural. Ele é naturalmente inimigo; ele o é por completo: porque é inimigo de tudo o que é de Deus. […] Não podeis arranjar uma paz honesta e duradoura com ele: o Parlamento Longo já tentou e não conseguiu. A França, todos os protestantes da Alemanha, já concordam que seu propósito era ter um império sobre todo o Mundo Cristão, se não mais.”

Aí está o script usado hoje na Guerra da Ucrânia: Putin é a encarnação do mal (só não falam em Deus por serem ateus); não é possível negociar com Putin; Putin, se deixar, vai conquistar até a França.

Há quem aponte, também, que a Rússia gera histeria no Ocidente por causa do seu conservadorismo. Nisto vejo outra vez uma analogia com a postura de Cromwell: seu temor era que a potência com a religião mais antiga do continente recobrasse a autoridade sobre os seus súditos, que não raro eram seus adeptos. Na Inglaterra, o protestantismo foi imposto de cima a baixo para a população. Primeiro os monarcas anglicanos reprimiram os católicos, e em seguida Cromwell manteve a repressão aos católicos – inclusive aos irlandeses, que ele conquistou barbaramente – e estendeu-a aos anglicanos, em função da sua adesão ao rei. A soma de católicos e anglicanos na Grã-Bretanha compunha a maioria da população; não obstante, ele legitimava seu governo com a proteção das minorias. Nas palavras de Guizot, “ele protegia uns dos outros, eficazmente, os presbiterianos, os independentes, os anabatistas, os milenaristas, os sectários de todo tipo, lembrando-lhes que há pouco eram todos perseguidos e se deviam caridade e apoio mútuos” (République d’Angleterre, v. 2, p. 152). Além disso, ele convidou os judeus a voltarem para a Inglaterra, garantindo-lhe liberdade de culto igual às das demais seitas.

Assim, Cromwell tem em comum com as elites liberais do presente o fato de governar para minorias enquanto reprime as maiorias. As elites liberais atuais não só usam Parada Gay como índice de civilidade (Israel tem uma grande, Gaza não tem nenhuma) e, em alguns países, podem mandar para a cadeia quem não acreditar que mulheres não têm pênis. Fazem isso enquanto se consideram bondosas e democráticas – porque o conservadorismo é coisa do demônio ou, em tempos ateus, coisa de Hitler.

A Rússia de Putin incomoda não só por assuntos externos, da economia e da geopolítica, mas também por uma questão interna. A Rússia mostra aos súditos ocidentais que existe um lugar no planeta onde pessoas de senso comum podem ser livres e normais. É, portanto, um constante chamado à rebelião interna, que precisa ser exorcizado a qual quer custo.

A Rússia mostra aos súditos ocidentais que existe um lugar no planeta onde pessoas de senso comum podem ser livres e normais.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

A propaganda antirrussa insiste que Putin é igual a Hitler e todos precisam contê-lo; do contrário, ele irá conquistar o mundo inteiro. Essa propaganda está longe de ser original, e por dois motivos: primeiro, porque as lideranças da OTAN sempre comparam o vilão da vez a Hitler; segundo, porque a paranoia antirrussa já foi mais insensata. Em Imperiofobia e lenda negra, a historiadora espanhola María Elvira Roca Barea conta que em meados do século XIX os jornais australianos discutiam, a sério, se os russos invadiriam primeiro Melbourne ou Sydney. Por mais doida que seja Kaja Kallas, acho que ela ainda não imagina Putin governando cangurus.

No entanto, se formos comparar a maneira como Putin é tratado pelas potências ocidentais à maneira como Hitler era tratado, vemos uma grande diferença. À exceção de Churchill, os líderes ocidentais nunca disseram que Hitler faria guerras expansionistas até ser contido pela mão militar, mesmo que ele houvesse registrado em livro sua intenção de conquistar um Lebensraum ao leste. O mais provável é que acreditassem que Hitler era um problema dos russos, e os russos não importam. Um liberal talvez contra-argumente que a negligência de Chamberlain e companhia serviu de lição para as gerações vindouras, que por isso mesmo se preocupam com novos Hitlers.

No entanto, há um precedente muito mais similar: a narrativa de Oliver Cromwell contra a Espanha, o suprassumo do papismo que jamais deixaria de se expandir e com a qual não se poderia negociar. Leiamos um trecho de um discurso seu feito ao parlamento em 1656, pouco depois de tentar tomar a ilha de Santo Domingo e levar a Jamaica: “vosso grande inimigo é o espanhol. Ele é um inimigo natural. Ele é naturalmente inimigo; ele o é por completo: porque é inimigo de tudo o que é de Deus. […] Não podeis arranjar uma paz honesta e duradoura com ele: o Parlamento Longo já tentou e não conseguiu. A França, todos os protestantes da Alemanha, já concordam que seu propósito era ter um império sobre todo o Mundo Cristão, se não mais.”

Aí está o script usado hoje na Guerra da Ucrânia: Putin é a encarnação do mal (só não falam em Deus por serem ateus); não é possível negociar com Putin; Putin, se deixar, vai conquistar até a França.

Há quem aponte, também, que a Rússia gera histeria no Ocidente por causa do seu conservadorismo. Nisto vejo outra vez uma analogia com a postura de Cromwell: seu temor era que a potência com a religião mais antiga do continente recobrasse a autoridade sobre os seus súditos, que não raro eram seus adeptos. Na Inglaterra, o protestantismo foi imposto de cima a baixo para a população. Primeiro os monarcas anglicanos reprimiram os católicos, e em seguida Cromwell manteve a repressão aos católicos – inclusive aos irlandeses, que ele conquistou barbaramente – e estendeu-a aos anglicanos, em função da sua adesão ao rei. A soma de católicos e anglicanos na Grã-Bretanha compunha a maioria da população; não obstante, ele legitimava seu governo com a proteção das minorias. Nas palavras de Guizot, “ele protegia uns dos outros, eficazmente, os presbiterianos, os independentes, os anabatistas, os milenaristas, os sectários de todo tipo, lembrando-lhes que há pouco eram todos perseguidos e se deviam caridade e apoio mútuos” (République d’Angleterre, v. 2, p. 152). Além disso, ele convidou os judeus a voltarem para a Inglaterra, garantindo-lhe liberdade de culto igual às das demais seitas.

Assim, Cromwell tem em comum com as elites liberais do presente o fato de governar para minorias enquanto reprime as maiorias. As elites liberais atuais não só usam Parada Gay como índice de civilidade (Israel tem uma grande, Gaza não tem nenhuma) e, em alguns países, podem mandar para a cadeia quem não acreditar que mulheres não têm pênis. Fazem isso enquanto se consideram bondosas e democráticas – porque o conservadorismo é coisa do demônio ou, em tempos ateus, coisa de Hitler.

A Rússia de Putin incomoda não só por assuntos externos, da economia e da geopolítica, mas também por uma questão interna. A Rússia mostra aos súditos ocidentais que existe um lugar no planeta onde pessoas de senso comum podem ser livres e normais. É, portanto, um constante chamado à rebelião interna, que precisa ser exorcizado a qual quer custo.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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