Com o Signalgate, vimos que a turma de Trump pretende enfrentar o Deep State com os conhecimentos de um adolescente rebelde que lê a revista Wired.
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Há anos, o russo-estadunidense Yasha Levine lançou o livro Surveillance Valley: The Secret Military History of The Internet (Icon, 2018), que em português seria “Vale da Vigilância: A história militar secreta da internet”. A palavra “secreta” é importante, pois de fato quem souber por alto da história da internet logo falará da importância do trabalho de Alan Turing (um dos pais do computador) para a II Guerra Mundial. A história militar secreta é a do projeto de vigilância em massa concebido na própria criação da ARPANET. A ARPANET, ao seu turno, é o projeto estatal que de fato criou a internet. A internet nasceu estatal e foi privatizada no governo Reagan.
Já resenhei para esta SCF um livro de Benjamin Breen que conta a história do encanto da inteligência dos EUA com as drogas lisérgicas. Durante a II Guerra, a sua obsessão era descobrir um jeito de capturar um soldado inimigo, fazer uma lavagem cerebral e transformá-lo num agente seu infiltrado. O resultado imediato disso foi Margaret Mead e uma porção de antropólogos pesquisando substâncias alucinógenas usadas por índios em transe, pois o intento original era descobrir uma droga capaz de induzir um estado mental desconhecido. Assim, a II Guerra incentivou muito pesquisa da antropologia cultural, ao desenvolvimento de drogas sintéticas e da hipnose. Nada disso parou com o fim da II Guerra. A consequência mais conhecida desse deslumbre foi o infame MKUltra, no qual agentes da CIA davam LSD a cidadãos comuns sem que eles soubessem, para observar os efeitos. No entanto, a loucura foi tão grande que a NASA chegou a financiar um cientista (John C. Lilly) que dava LSD para golfinhos a fim de ensinar-lhes inglês, treinando para ensinar inglês aos ETs quando eles aparecessem. A inteligência dos EUA não prima pelo bom-senso, nem é modesta.
De todo modo, a antropologia cultural provou-se um elemento chave para a CIA poder navegar por culturas muito diferentes. No livro de Yasha Levine, aprendemos que na Guerra do Vietnã, iniciada em 1955, a CIA investiu em ciência social e logo passou à engenharia social. Entre uma coisa e outra, a CIA começou a fichar os vietnamitas, e logo a práxis desenvolvida no Vietnã passou a ser usada na política doméstica. Tanto no Vietnã como nos EUA, a intenção era antever as revoltas e desmontá-las antes que acontecessem.
Somando-se a isso tudo, Yasha Levine recorda, apontando para o trabalho de Edwin Black, que a tecnologia do censo dos Estados Unidos foi usada pela Alemanha Nazista em parceria com a IBM para fazer o Holocausto. Veja-se bem: num país como o Brasil, onde o censo é feito por autodeclaração e compreende umas poucas categorias de cor, jamais seria possível levantar quantas pessoas com sangue judeu há e onde elas estão. Nos EUA, o censo é feito com base em dados individuais atrelados à burocracia. Se argentinos descendentes somente de italianos migrarem pros EUA e tiverem filhos lá, seus descendentes serão considerados latinos pela burocracia, porque a papelada sempre mostrará que seus ancestrais vieram da Argentina. O censo individualizado da IBM tornou possível que o governo fosse atrás de todas as pessoas que tivessem uma dada origem étnica. No caso da Alemanha Nazista, tratou-se de peneirar as pessoas cuja origem judaica constava nos registros. (Valendo lembrar que a emancipação dos judeus no século XIX os incluiu na burocracia.)
A inteligência dos EUA começou então a individualizar mais ainda os registros e, de fato, a fichar cidadãos politizados que não tinham cometido nenhum crime, por mera suspeita de comunismo. A ARPANET, que depois virou DARPA, surge em 1969 com a finalidade de pegar essa base de dados que consta num grande computador estatal e torná-la acessível a uma rede de computadores estatais, com o fito de partilhar a informação na comunidade de inteligência. As fichas incluíam posições políticas, hábitos, locais frequentados e até segredos sexuais. O projeto foi desenvolvido em universidades e, logo no início, ficou claro para os estudantes que se tratava de um projeto dedicado à vigilância estatal, ainda que eles não soubessem das fichas. Além disso, já na década de 1970 um whistleblower denunciou essas fichas de civis que o governo espalhava pela rede de computadores com a ARPANET. O jornalista Ford Rowan apurou as denúncias, fez uma impactante matéria e o Senador John Tunney fez uma CPI sobre a ARPANET em 1975.
Duas coisas importantes foram feitas para combater a hostilidade ao projeto. A primeira foi de marketing: criou-se a imagem do hacker como um rebelde contra o sistema e vendeu-se a internet como um grande veículo da concórdia mundial, da aldeia global democrática. Assim como a direita armamentista acha que cada um, com um fuzil, pode obter liberdade prescindindo do Estado, a cybercultura pregava que, com um computador na mão, o homem é plenamente livre. Para isso, contribuíram muito o trabalho de Stewart Brand e a revista Wired. A Apple usou e abusou dessa imagem rebelde (veja o comercial de 1984 aqui). A segunda coisa foi a privatização. Em vez de continuar fazendo projetos para espionar os seus cidadãos, a CIA criou uma empresa para investir em start-ups que faziam o que ela desejava e se tornava sua cliente.
As duas medidas se alimentam. Rebeldia é rebeldia contra o governo. Se a rebeldia é contra o governo, as empresas são boas, heroicas, resistentes. A filosofia principal é a da anarcocapitalista (ou “libertária”) Ayn Rand, que vê no empresário um super-herói nietzschiano que se rebela contra o Estado, tocado por burocratas ineficientes e inferiores. Assim, em vez de fazer CPIs, leis e usar a democracia para impôr limites aos desmandos da inteligência, devemos comprar o nosso Apple para nos sentirmos legítimos rebeldes – mesmo que os computadores pessoais venham com backdoors e falhas que permitem ao governo acessá-lo remotamente.
O whistleblower Edward Snowden, um libertário com pouca instrução, é apresentado como um balde de água fria. Após atrair a atenção do mundo pela importância de seus vazamentos por meio do Wikileaks, que revelavam a promiscuidade entre o Google e o Estado dos EUA, ele apresentou como solução para o problema o puro e simples uso do Tor. Nada de Estado; o homem conquistaria sua liberdade por meio do Tor, o navegador que permite o perfeito anonimato na internet.
E aí Levine conta a história do Tor: seu financiamento é da empresa criada pela CIA com o fito de bancar projetos que lhe interessem. O Tor esconde o IP e faz parecer que a pessoa está acessando a internet de outro país. Em geral, serve aos mesmos propósitos que um serviço de VPN, e é anterior à sua popularização. (Aqui no Brasil, o bloqueio do Twitter por Alexandre de Moraes fez com que os serviços de VPN se popularizassem. Pouca gente se lembrou do Tor.)
Levine usou uma lei de acesso à informação para pegar documentação relativa ao Tor. Lá, entendeu que os espiões precisam de segredo: se um agente da CIA no Líbano acessasse o seu e-mail funcional, os provedores libaneses veriam que há um agente da CIA ali. Com o Tor, o provedor não vê o que acessamos – mas vê que estamos usando alguma coisa que mascara o IP. O problema era: se só agentes da CIA usassem esse tipo de coisa, então isso bastaria para os provedores libaneses verem que há algo errado. Por conseguinte, a CIA precisou estimular todo o mundo a usar o Tor – e assim surgiu o movimento por privacidade na internet. A estratégia da CIA foi a de atrair o máximo de dissidentes políticos pelo mundo e deixar os criminosos usarem. Não foi fácil. Levine viu que os dissidentes russos, que não tinham nenhum firewall como o chinês, consideraram que usar o Tor os associaria à CIA e isso era um risco. Quanto aos criminosos, o maior fenômeno foi o site Silk Road, que, tocado por um anarcocapitalista, começou vendendo drogas e passou a vender armas, órgãos, assassinatos… Tudo pagando em Bitcoin.
Quando Snowden divulgou o Tor, ele ajudou muito a CIA – tanto que os russos finalmente começaram a usá-lo. Ao cabo, a popularização do anarcocapitalismo salvou a CIA, ao menos no escândalo do Wikileaks.
Mas o que os anarcocapitalistas não sabiam era que o Tor, sendo praticamente uma paraestatal, dá ao Estado acesso privilegiado aos seus usuários. O dono do Silk Road foi preso e pegou prisão perpétua. Passou 11 anos na cadeia até receber o perdão de Trump. Enquanto ele mantinha suas atividades, o Bitcoin se valorizava.
O Tor, então, é uma armadilha: além de garantir o anonimato para espiões dos EUA diante de entidades distintas do seu governo, serve para também vigiar, ou pelo menos fichar, pessoas que têm o que esconder ou são rebeldes a ponto de usar o Tor.
E sabem o que mais foi feito com esse fito, senhoras e senhores? O aplicativo Signal, que promete privacidade e começou a ser usado por ativistas. Tal como o Tor, ele foi desenvolvido com o financiamento da Open Technology Fund, uma entidade sem fins lucrativos ligada ao governo dos EUA que tem como finalidade subsidiar, também, a notória Radio Free Asia (cujo fito era espalhar propaganda anticoumunista na China por ondas de rádio). Uma liderança do Signal era amiga e Jacob Applebaum, que, a crermos em Levine, estava a serviço da CIA quando conseguiu se infiltrar na cúpula do Wikileaks.
Tal como o Tor, o Signal era uma armadilha, e ativistas estadunidenses ouvidos por Levine que o usavam eram pegos com uma facilidade surpreendente, como se a polícia tivesse lido as suas conversas.
Com o Signalgate, vimos que a turma de Trump pretende enfrentar o Deep State com os conhecimentos de um adolescente rebelde que lê a revista Wired.
PS: Enquanto redigia este texto, via que Levine tinha acabado de dar uma entrevista a Chris Hedges sobre esse mesmo livro. O leitor pode vê-la (em inglês) clicando aqui.