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Teve lugar, no dia 11 de março, em Jeddah, na Arábia Saudita, um encontro entre delegações norte-americanas e ucranianas para discutirem a paz na Ucrânia, marcando, assim, o início de um processo diplomático, que se espera conduza à paz. A conclusão mais relevante que saiu desse encontro foi o anúncio de um cessar-fogo temporário, de trinta dias, que passou a dominar as atenções de quem segue o tema.
Convém, antes de mais, sublinhar que os objetivos definidos pelas partes envolvidas no conflito se encontram muito distantes. São, por enquanto, irreconciliáveis. É importante perceber onde residem as dificuldades nesse caminho de aproximação dos litigantes, antes de se discutir a utilidade do cessar-fogo e os problemas que lhe estão associados.
Os objetivos da Rússia e da Ucrânia
O presidente Putin pretende que a Ucrânia: (1) renuncie ao seu objetivo de aderir à NATO, adote uma postura de neutralidade estratégica, e impeça que o seu território possa vir a ser utilizado por potências rivais podendo, assim, constituir uma ameaça ao território russo; (2) renuncie à ambição de possuir armas nucleares; (3) se desmilitarize para incapacitar Kiev de um futuro acerto de contas e se desnazifique; (4) e ceda a totalidade das quatro regiões presentemente ocupadas por Moscovo mais a península da Crimeia. Por seu lado, Zelensky pretende exatamente o oposto. Entre outros objetivos, (1) insiste na adesão à NATO ou noutra forma de garantias de segurança; (2) e fala numa paz justa, uma forma de dizer que a guerra só termina quando a Ucrânia recuperar todos os territórios atualmente na posse da Rússia. Estes são os principais objetivos de um e do outro lado da barricada.
Ambos os litigantes pretendem prolongar a guerra, uma vez não terem ainda atingido os seus objetivos estratégicos. Se Putin não conseguiu ainda infligir às Forças Armadas ucranianas o nível de destruição desejado, Zelensky continua a acreditar ser possível recuperar os territórios perdidos. Apesar do prolongamento da guerra lhe ter sido desfavorável – em 2022, Kiev tinha conseguido manter a integridade territorial do país, mantendo Donetsk e Lugansk na Ucrânia, mas com autonomia política; em 2025, essa integridade territorial corre o sério risco de não se manter devido à amputação das quatro províncias – Zelensky continua a acreditar que vai atingir os seus objetivos, apesar de contar apenas com o apoio dos europeus, que, por sua vez, o incentivam a continuar, no pressuposto de que no futuro, em algum momento, a Rússia irá soçobrar. Não soçobrou nos três anos de guerra (apesar dos sucessivos vaticínios e das certezas dessa inevitabilidade; primeiro era falta de equipamento, agora é a implosão da economia) com o apoio norte-americano, a rondar os 150 mil milhões de dólares, mas agora vai soçobrar apenas com a ajuda europeia.
É importante perceber o motivo que leva ambos os lados a não se encontrarem disponíveis para efetuar os compromissos necessários, e se mantenham empenhados em prolongar os combates. Putin sente que o curso da guerra lhe está a correr de feição. Está confiante que vai conseguir desbaratar as forças ucranianas. Apesar de não conseguir recuperar o terreno perdido, de estar acossado e refém dos grupos ultranacionalistas, Zelensky tem uma margem de manobra muito estreita para fazer cedências, em particular as de natureza territorial.
Trump não percebeu que Zelensky, para além de não querer, não pode ceder. Não compreendeu onde reside a origem do problema, que não está em Zelensky, mas sim nos que mandam em Zelensky e sobre os quais, aparentemente, Washington não tem controlo, nem consegue influenciar.
Surgem relatos de que Trump pretende forçar Zelensky a demitir-se recorrendo à pressão política. Para se verem livres de Zelensky, os norte-americanos fizeram uma aproximação aos seus rivais políticos, em particular, Yulia Tymoshenko e Petro Poroshenko. A primeira já veio manifestar “a necessidade de um fim imediato para o conflito na Ucrânia nos termos mais justos possíveis… acredito que a Verkhovna Rada é obrigada a reagir imediatamente. Estamos a dar esse passo. A guerra deve terminar imediatamente nos termos mais justos possíveis.” Tymoshenko deixou de fazer parte do problema e transferiu-se com armas e bagagens para a “solução”.
Este plano não é isento de escolhos. Em primeiro lugar, uma solução temporária, na preparação de uma solução definitiva, terá de ter em conta Valerii Zaluzhnyi, um homem de mão dos ingleses; e, em segundo, qualquer que seja a solução a ensaiar – tentativa de um golpe de estado palaciano ou outra – terá de ter em conta a reação dos grupos ultranacionalistas, fortemente implantadas no aparelho militar ucraniano. O próprio Boris Johnson constatou isso mesmo em 2019. Washington está a dar um tiro ao lado. Para atingir a paz, os norte-americanos têm, antes de mais, de pressionar estes grupos e demovê-los das suas posições mais radicais, antes de consumirem tempo com alternativas políticas que, tal como Zelensky, se encontram condicionadas.
O cessar-fogo
Um cessar-fogo não conduz necessariamente a um processo de paz. Aliás, são poucos os casos em que isso aconteceu. Os cessar-fogo são, frequentemente, uma consequência de processos de paz, e não a sua origem. A probabilidade de sucesso de um cessar-fogo aumenta quando as forças em confronto têm uma capacidade simétrica, enfrentam um impasse doloroso e a mesa de negociações se torna o único caminho. Quando isso acontece, as condições estão amadurecidas (ripe) para se avançar com um processo político e aumenta assim a probabilidade de a mediação ser bem-sucedida. Não é o caso na Ucrânia. Nem as forças em confronto têm uma capacidade simétrica, nem existe um impasse doloroso. À partida, a probabilidade de sucesso de um cessar-fogo é bastante reduzida.
A abordagem americana ao processo de resolução do conflito é oposta à da Rússia. Os americanos preferem iniciar o processo negocial com um cessar-fogo, os russos consideram que um cessar-fogo deve ser uma consequência da negociação. Enquanto os EUA pretendem um cessar-fogo a todo o vapor (seja lá o que isso for), a Rússia coloca condições, fazendo-o depender da retirada das tropas ucranianas do Donbass e da renúncia formal da intenção de aderir à NATO. Quando isso acontecer, a Rússia estará então disponível para um cessar-fogo. Segundo Putin, o seu objetivo é pôr fim ao conflito e não simplesmente congelá-lo.
Para as fações concordarem com o cessar-fogo, Trump recorreu à estratégia “do pau e da cenoura”. Para persuadir Kiev, Washington suspendeu-lhe seletiva e temporariamente o fornecimento de intelligence e de equipamento, com resultados práticos. A pausa no fornecimento foi levantada quando Kiev concordou com o cessar-fogo. Para persuadir Moscovo ameaçou com sanções recusando-se a prolongar as “isenções de Biden” (12 de março de 2025) que permitiam aos bancos russos processarem pagamentos europeus para vender petróleo. Mais recentemente, o secretário de estado norte-americano Marco Rubio pediu ao Ministro dos Negócios Estrangeiros da Hungria que não vetasse as novas sanções da União Europeia à Rússia, permitindo assim que o embargo aos ativos russos permanecesse em vigor.
Não será difícil perceber a recusa de Moscovo a uma trégua temporária de 30 dias, sem serem colocadas condições; seria uma oportunidade para a Ucrânia se rearmar e equipar, como tem sido admitido por dignitários seus. Por isso, Kiev manifestou imediatamente e sem hesitações disponibilidade para o cessar-fogo, aproveitando o momento para acusar a Rússia de não querer a paz.
A resposta de Moscovo ao cessar-fogo foi cuidadosa. Procurando não estragar a relação de diálogo agora criada com os EUA, apoiou a cessação de hostilidades apresentando um conjunto de condições, inserindo-as num processo político conducente a uma paz duradoura, que elimine as causas do problema. Putin declarou explicitamente que qualquer cessação das hostilidades na Ucrânia deve ser precedida de uma cessação da ajuda militar e intelligence à Ucrânia, assim como uma clarificação dos mecanismos de verificação e controlo das violações, a implementar.
O impacto em Kiev do “pau” norte-americano é substancialmente diferente do impacto em Moscovo. No primeiro caso, traduz-se numa vantagem, é na prática uma “cenoura”, no segundo será uma desvantagem, embora de efeito pífio. Nestes três anos de guerra, a Rússia sobreviveu a 28.595 sanções. É duvidoso que estas sanções adicionais impostas por Washington lhe venham causar grande mossa, ao ponto de a empurrar, contrariada, para a mesa das negociações. O que foi um incentivo para Kiev foi um desincentivo para Moscovo. Um cessar-fogo significa para Moscovo mais armas para o oponente, o que dificilmente se pode interpretar como um incentivo.
O discurso de Trump tem sido oscilante. Tanto diz que a Rússia “tem todas as cartas” como afirma que “não tem cartas.” É difícil perceber como é que Putin vai ser “forçado” a comprometer-se; se de facto tiver todas as cartas. Afinal, até é mais difícil para Trump negociar com a Ucrânia, apesar de “eles [a Ucrânia] não terem cartas”, e “talvez seja mais fácil lidar com a Rússia”. Difícil de interpretar!
A Europa
A Europa tem sido arredada das negociações de paz e continuará a sê-lo. Se havia ainda dúvidas sobre isso, ficou claro quando Trump e Putin concordaram, na segunda conversa telefónica (18 de março), continuar diálogo no Médio Oriente através de grupos de especialistas.
As elites políticas europeias não se conformam com a irrelevância estratégica para que a Europa foi relegada por Washington e Moscovo. Enquanto os EUA estão a tentar acabar com uma guerra por procuração contra a Rússia, criada por eles próprios, e desanuviar as relações com Moscovo, as elites europeias insistem em manter o conflito e prolongar a confrontação com a Rússia, não se sabe até quando.
Fazendo tábua rasa das instituições europeias – provavelmente imitando o comportamento de Washington e Moscovo – Londres e Paris têm andado num frenesim organizando encontros atrás de encontros, tanto ao nível de chefes de Estado e de Governo, como de chefias militares.
Sem dar conta da sua irrelevância, como se a sua voz fosse ouvida por Moscovo, Keir Starmer veio exigir a Putin a aceitação e o cumprimento do cessar-fogo, como se tivesse tido alguma interferência no processo. Entretanto, anunciou uma coligação de vontades (coalition of the willings), reunindo cerca de 30 países, entenda-se uma força combinada e conjunta que conta, na maioria dos casos, com países europeus – Reino Unido e França, à cabeça – para ser empregue na Ucrânia. Sem serem conhecidos os contornos do acordo de paz e como se a opinião da Rússia não contasse, Starmer veio dizer que essa força atingiu a “fase operacional”. Secundando Starmer, o ousado Macron considera que Moscovo não se pode pronunciar sobre a colocação de uma força internacional em território ucraniano.
É difícil descortinar a utilidade desta força. Provavelmente nem Starmer o saberá, uma vez que confunde frequentemente o seu emprego, tanto na monitorização do cessar-fogo como na implementação de um acordo de paz, como se isso não tivesse implicações no desenho e constituição da força a ser empregue num e noutro caso, e nas regras de empenhamento a serem adotadas.
Ironicamente, a Europa estava mais segura durante a Administração do presidente Joe Biden. Independente de ter empurrado os europeus para esta aventura, havia alguma certeza de que certas linhas vermelhas não seriam ultrapassadas. Uma delas, a não colocação de forças norte-americanas em território ucraniano. Parece que Starmer e Macron não percebem as consequências para a segurança europeia desse ato, ainda por cima sem o chapéu de chuva norte-americano. Seria avisado ouvirem a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, que considera a proposta da França e da Grã-Bretanha, de enviar forças de paz para a Ucrânia, complexa, arriscada e ineficaz.
Encontramo-nos, pois, perante um fenómeno contraditório. Os europeus que se subordinaram levianamente ao “Projeto Ucrânia” das Administrações democratas de Obama e de Biden sem o questionarem e servindo o seu propósito hegemónico e de primazia global, vêm agora transportar o archote de uma ideia que deixou de fazer sentido, abandonada que foi pela nova Administração norte-americana, sem darem conta da sua orfandade.
O nó górdio
Dada a reduzida alavancagem de Washington sobre Moscovo, os efeitos de “castigos” como sanções serão diminutos. Interrogamo-nos se, com a sabotagem do plano norte-americano pelos europeus, os norte-americanos terão uma alavancagem suficiente sobre a liderança em Kiev para a levar a reformular os seus objetivos estratégicos, isto é, renunciar à adesão à NATO e fazer cedências territoriais. Isso só será possível se os EUA conseguirem chegar a quem tem verdadeiramente o poder em Kiev, o que parece não terem ainda incorporado no seu cálculo estratégico. Enquanto isso, Kiev continuará a combater, porque não se encontra ainda num impasse doloroso. A menos que Washington lhe cesse todo o apoio e lembre a Londres e Paris que lhes pode acontecer o mesmo que em 1956, durante a crise do Suez.
Fazendo apenas jus aos comunicados resultantes da segunda conversa telefónica tida entre Putin e Trump, no dia 18 de março, a mais longa na história das conversas telefónicas entre presidentes russos e norte-americanos – cerca de duas horas e meia – verificamos, entre outras questões, que: (1) no seguimento de uma iniciativa de Trump, Putin concordou com uma trégua de 30 dias, mas apenas em relação a ataques a instalações energéticas; (2) a Europa continua e continuará por mais algum tempo arredada das conversações entre americanos e russos, que vão continuar entre os dois países, no Médio Oriente; (3) Putin não fez concessões; (4) aparentemente a paz será estabelecida nos termos combinados entre Moscovo e Washington, e não nos termos pretendidos por Kiev e/ou Bruxelas.
Como não se antecipam alterações nas vontades das fações, ainda convencidas de que conseguirão atingir os seus objetivos maximalistas – encontramo-nos longe de um impasse doloroso – assistiremos à continuação da guerra, embalados pela ilusão de que a Rússia irá ceder. Apesar das pressões de Washington, as condições para se iniciar um processo negocial não se encontram ainda maduras neste momento.
Major-general (na reserva)
Publicado originalmente por Fundação Cultura Estratégica