Português
Bruna Frascolla
February 19, 2025
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Na primeira capital do Brasil, num prédio eclético do século XIX desenhado pelo grande polímata do Império do Brasil, Theodoro Sampaio, ocorreu em 17 de fevereiro de 2025 um evento de grande importância para a historiografia ibero-americana: “Salvador de Bahia y su ‘Sítio y Empresa’ de 1625: pasado y presente de los vínculos hispano-brasileños”. Havia quatro historiadores: dois espanhóis e dois brasileiros, sendo que três eram de universidades espanholas e um é de uma universidade brasileira. O prédio era a sede do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

O que ensejou a vinda de historiadores da Espanha para a Bahia, com o apoio da embaixada e da Armada espanholas, foi a redescoberta de um grande quadro a óleo clandestino que retrata, em detalhes, a expulsão dos holandeses da cidade de Salvador, então capital do Brasil. O nome do quadro, abreviadamente, é “Sítio y empresa de Salvador”, e pode ser visto aqui.

A visão brasileira

A historiografia brasileira costuma refletir o seu passado português e deplorar o período em que o Brasil ficou sob administração da União Ibérica.

Um belo dia, D. Sebastião de Portugal, rei jovem, filho único e solteiro, decidiu fazer uma cruzada em Marrocos, aonde foi lutar pessoalmente. Desde a fatídica batalha de Alcácer Quibir, em 1578, o rei não foi mais visto com vida e, seguindo as regras dinásticas, os Habsurgo da Espanha poderiam herdar o trono português. Acontece que a própria dinastia de D. Sebastião, a Casa de Avis, fora criada no século XIV justamente para evitar que o trono português se submetesse a Castela. Os portugueses aclamaram como rei um bastardo português, o Mestre de Avis, João I.

Tal como no século XIV, a corte lisboeta do século XVI não queria se submeter a Castela. Assim, engendraram-se dois expedientes atípicos. Um foi o de negar a morte de Sebastião e dá-lo somente por desaparecido, cabendo ao povo português esperar o seu retorno triunfal. Outro foi o de retroceder na árvore genealógica da Casa de Avis e coroar como rei um cardeal que era filho de Manuel I de Portugal. Morto o Cardeal Rei D. Henrique, em 1580, acaba a dinastia de Avis. Porém, com suas bênçãos, o trono português passa para Filipe II de Espanha. Em vez de serem dois reinos distintos e rivais, Espanha e Portugal seriam um único corpo político com sede em Madri. A coroa portuguesa deu a Filipe terras na América, na África e na Ásia. A União Ibérica durou de 1580 a 1640, quando Portugal começou uma guerra de independência contra a Espanha.

Nesse período de unificação, a Holanda era uma potência emergente que tentava tomar terras produtoras de açúcar. No Brasil, o senso comum é que os espanhóis foram ruins para nós, porque ficamos entregues aos holandeses. Nisso, pesa mais a história de Pernambuco: a capitania portuguesa que ficou nas mãos dos holandeses de 1637 até 1654, ou seja, por longos 17 anos (ainda que a maioria do tempo tenha sido posterior ao desmanche da União Ibérica). Para completar, a expulsão dos holandeses em Pernambuco contou com grande peso da população local: tanto peso, que os historiadores militares brasileiros costumam remontar à Batalha dos Guararapes a formação do exército brasileiro.

Em virtude de tudo isso, a ocasião em que a capital do Brasil, Salvador da Bahia, foi invadida pelos holandeses ganha pouca atenção dos brasileiros em geral. Quem costuma lembrar são os brasileiros que se dedicam ou à história da Bahia, ou à história militar. Os primeiros tendem a destacar a resistência local.

O historiador brasileiro Pablo Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste Baiano, uma instituição baiana, fez uma apresentação fiel ao costume de enfatizar a resistência local. No entanto, sua pesquisa é ancorada na descoberta de novas fontes primárias, tais como o mapa de um engenheiro holandês que foi comprada por uma coleção particular brasileira, do Instituto Flávia Abubakir, sediado na Bahia (que aliás também patrocinou o evento e enviou sua diretora para tratar da coleção). Nesse mapa, vemos o traçado perfeito da cidade de Salvador dentro dos muros, junto com o dique que os holandeses construíram para separá-la ainda mais do continente. Segundo o historiador, foi a maior obra do Brasil colonial, e após a vitória o dique foi aterrado. O mapa confirma que o dique existente em Salvador é outro e não foi construído pelos holandeses.

A cidade murada de Salvador ficava no alto, sobre uma grande escarpada, e dava para uma grande baía, a Baía de Todos os Santos. É uma baía tão grande que, segundo os geógrafos, é na verdade um pequeno golfo com três baías e dezenas de ilhas; mas, como o nome é tradicional, ninguém chama de Golfo de Todos os Santos. Integrados com esse complexo aquático, estão os rios que vêm do interior do continente e transportam tanto a cobiçada produção de açúcar quanto os víveres necessários à subsistência de Salvador. Esse interior chama-se Recôncavo.

Segundo o Prof. Pablo Magalhães, os holandeses padeceram também pelos seus próprios erros, pois acharam que era possível se estabelecer em Salvador sem dominar o Recôncavo. Assim, não foi difícil a gente da terra – em especial uma aldeia indígena liderada por um bispo jesuíta – fazerem um cerco e obrigarem os holandeses a comerem cachorros, gatos e ratos.

A importância do quadro

O quadro Sítio y Empresa de Salvador já era de interesse dos brasileiros, tanto que há duas réplicas no Brasil, e um brasileiro quis comprar o original, mas foi impedido pelo governo espanhol. (Disso o público ficou sabendo graças à intervenção de um professor de uma universidade estadual da Bahia ao fim.) A Espanha passou a se interessar pelo quadro há apenas 4 anos, quando o historiador militar David García Hernan, da Universidade de Madri, descobriu a importância do quadro. Assim, ele compôs uma equipe multitarefa que incluía o professor José Manuel Santos Peres, da Universidade de Salamanca, brasilianista, e o professor Carlos Brunetto, historiador da arte brasileiro, da Universidade de La Laguna. Esse trio compareceu ao IGHB e palestrou junto com Pablo Magalhães. Acompanhava o trio um diretor de cinema que está preparando um documentário sobre a redescoberta do quadro, que será exibido nos cinemas de Madri ainda neste semestre.

Com o trio, destaca-se a ótica espanhola daquilo que eles chamam de “Restituição do Brasil”. O Prof. José Manuel Santos de saída notou que no salão do IGHB havia quadros de reis portugueses, mas não de reis espanhóis, e recomendou ao instituto que os pusesse, pois Filipe IV de Espanha e III de Portugal foi o mais importante rei para a Bahia. Sua palestra fez jus ao ousado título “Salvador de Bahía y la Historia Universal: El impacto de la recuperación de 1625”. Tratou primeiro da maestria protestante, em especial holandesa, na difusão de panfletos propagandísticos, e descreveu a importância que teve, para o moral dos calvinistas e dos sefarditas da Holanda, o fato de um governador “espanhol” e um bispo jesuíta terem sido capturados e levados para lá.

A propaganda era, também, a alma do negócio: a WIC invadira Salvador com muita rapidez e com poucos recursos; cantando seu feito pelos quatro cantos do mundo, pretendia atrair investimentos de novos acionistas. Diante disso, o Conde-Duque de Olivares aconselhou o Rei a enviar rápido a Armada para impedir a desmoralização da Espanha. E assim foi feito, com D. Fadrique de Toledo à frente. Diante da avassaladora vitória, que incluiu um perdão aos holandeses que pediam clemência, foi a vez da Espanha de fazer propaganda. Esta era bem diferente da calvinista, que tinha por público-alvo leitores individuais. Como a propaganda católica incluía analfabetos, contava com leituras públicas, quadros e peças. Destacam-se a peça “El Brasil Restituido”, de Lope de Vega, e o quadro “La recuperación de Bahía de Todos los Santos” (veja-o aqui). Podemos ver que esse professor é um fã do Conde-Duque de Olivares, tendo destacado sua frase: “Deus é espanhol”. No Brasil, costuma-se dizer que Deus é brasileiro. O professor, porém, ressalta que os panfletos holandeses só se referiam aos brasileiros como espanhóis.

O mesmo não se pode dizer do Prof. Brunetto, que, em bom português, o qualificava como “dor de cotovelo”. De fato, o Conde-Duque de Olivares morria de ciúmes de D. Fadrique de Toledo, e tantas intrigas fez que ele foi parar na cadeia, destituído de nobreza, porque na velhice e doença não quis ir para Pernambuco repetir o que fizera na Bahia. No quadro oficial, “La recuperación de Bahía de Todos los Santos”, o Conde-Duque está no alto, à direita do rei, colocando louros sobre a sua cabeça. D. Fadrique de Toledo está abaixo, apontando para eles. Não há muitas informações sobre a batalha. Destaca-se a caridade católica em primeiro plano, com mulheres cuidando de um soldado ferido e soldados holandeses curvados diante da imagem do rei que os perdoara.

O Prof. David García, que conhece história militar, apontou que no quadro clandestino, “Sitio y Empresa”, D. Fadrique de Toledo aparece usando uma vistosa gorjeira – uma ostentação dos nobres que havia sido banida à época. O quadro é imenso, cheio de bonequinhos miúdos (D. Fadrique incluso), com um mapa de Salvador e uma impressionante quantidade de galeões ao fundo. (O Prof. David García, cobrado por uma pesquisadora brasileira, identificou também os índios flecheiros enviados do Rio de Janeiro para o combate.) A suposição dos historiadores, portanto, é que esse quadro tenha sido encomendado pelo próprio D. Fadrique, ou seus familiares e amigos, e há séculos vem passando de coleção privada em coleção privada, sem que ninguém houvesse atentado para a relevância histórica da conquista militar, bem como de sua dimensão. Ao cabo, as intrigas pessoais do Conde-Duque de Olivares contra D. Fadrique de Toledo fizeram com que o papel da Armada Espanhola na história do Brasil fosse subdimensionado.

No fim das palestras e perguntas, o representante do IGHB disse que a instituição é rica de história e pobre de dinheiro, que os quadros dos reis portugueses (e imperadores brasileiros) foram dados pelo governador da Bahia no século XIX e que aceitará um presente da embaixada espanhola.

Quatrocentos anos depois, a Espanha valoriza vitória militar no Brasil

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Na primeira capital do Brasil, num prédio eclético do século XIX desenhado pelo grande polímata do Império do Brasil, Theodoro Sampaio, ocorreu em 17 de fevereiro de 2025 um evento de grande importância para a historiografia ibero-americana: “Salvador de Bahia y su ‘Sítio y Empresa’ de 1625: pasado y presente de los vínculos hispano-brasileños”. Havia quatro historiadores: dois espanhóis e dois brasileiros, sendo que três eram de universidades espanholas e um é de uma universidade brasileira. O prédio era a sede do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

O que ensejou a vinda de historiadores da Espanha para a Bahia, com o apoio da embaixada e da Armada espanholas, foi a redescoberta de um grande quadro a óleo clandestino que retrata, em detalhes, a expulsão dos holandeses da cidade de Salvador, então capital do Brasil. O nome do quadro, abreviadamente, é “Sítio y empresa de Salvador”, e pode ser visto aqui.

A visão brasileira

A historiografia brasileira costuma refletir o seu passado português e deplorar o período em que o Brasil ficou sob administração da União Ibérica.

Um belo dia, D. Sebastião de Portugal, rei jovem, filho único e solteiro, decidiu fazer uma cruzada em Marrocos, aonde foi lutar pessoalmente. Desde a fatídica batalha de Alcácer Quibir, em 1578, o rei não foi mais visto com vida e, seguindo as regras dinásticas, os Habsurgo da Espanha poderiam herdar o trono português. Acontece que a própria dinastia de D. Sebastião, a Casa de Avis, fora criada no século XIV justamente para evitar que o trono português se submetesse a Castela. Os portugueses aclamaram como rei um bastardo português, o Mestre de Avis, João I.

Tal como no século XIV, a corte lisboeta do século XVI não queria se submeter a Castela. Assim, engendraram-se dois expedientes atípicos. Um foi o de negar a morte de Sebastião e dá-lo somente por desaparecido, cabendo ao povo português esperar o seu retorno triunfal. Outro foi o de retroceder na árvore genealógica da Casa de Avis e coroar como rei um cardeal que era filho de Manuel I de Portugal. Morto o Cardeal Rei D. Henrique, em 1580, acaba a dinastia de Avis. Porém, com suas bênçãos, o trono português passa para Filipe II de Espanha. Em vez de serem dois reinos distintos e rivais, Espanha e Portugal seriam um único corpo político com sede em Madri. A coroa portuguesa deu a Filipe terras na América, na África e na Ásia. A União Ibérica durou de 1580 a 1640, quando Portugal começou uma guerra de independência contra a Espanha.

Nesse período de unificação, a Holanda era uma potência emergente que tentava tomar terras produtoras de açúcar. No Brasil, o senso comum é que os espanhóis foram ruins para nós, porque ficamos entregues aos holandeses. Nisso, pesa mais a história de Pernambuco: a capitania portuguesa que ficou nas mãos dos holandeses de 1637 até 1654, ou seja, por longos 17 anos (ainda que a maioria do tempo tenha sido posterior ao desmanche da União Ibérica). Para completar, a expulsão dos holandeses em Pernambuco contou com grande peso da população local: tanto peso, que os historiadores militares brasileiros costumam remontar à Batalha dos Guararapes a formação do exército brasileiro.

Em virtude de tudo isso, a ocasião em que a capital do Brasil, Salvador da Bahia, foi invadida pelos holandeses ganha pouca atenção dos brasileiros em geral. Quem costuma lembrar são os brasileiros que se dedicam ou à história da Bahia, ou à história militar. Os primeiros tendem a destacar a resistência local.

O historiador brasileiro Pablo Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste Baiano, uma instituição baiana, fez uma apresentação fiel ao costume de enfatizar a resistência local. No entanto, sua pesquisa é ancorada na descoberta de novas fontes primárias, tais como o mapa de um engenheiro holandês que foi comprada por uma coleção particular brasileira, do Instituto Flávia Abubakir, sediado na Bahia (que aliás também patrocinou o evento e enviou sua diretora para tratar da coleção). Nesse mapa, vemos o traçado perfeito da cidade de Salvador dentro dos muros, junto com o dique que os holandeses construíram para separá-la ainda mais do continente. Segundo o historiador, foi a maior obra do Brasil colonial, e após a vitória o dique foi aterrado. O mapa confirma que o dique existente em Salvador é outro e não foi construído pelos holandeses.

A cidade murada de Salvador ficava no alto, sobre uma grande escarpada, e dava para uma grande baía, a Baía de Todos os Santos. É uma baía tão grande que, segundo os geógrafos, é na verdade um pequeno golfo com três baías e dezenas de ilhas; mas, como o nome é tradicional, ninguém chama de Golfo de Todos os Santos. Integrados com esse complexo aquático, estão os rios que vêm do interior do continente e transportam tanto a cobiçada produção de açúcar quanto os víveres necessários à subsistência de Salvador. Esse interior chama-se Recôncavo.

Segundo o Prof. Pablo Magalhães, os holandeses padeceram também pelos seus próprios erros, pois acharam que era possível se estabelecer em Salvador sem dominar o Recôncavo. Assim, não foi difícil a gente da terra – em especial uma aldeia indígena liderada por um bispo jesuíta – fazerem um cerco e obrigarem os holandeses a comerem cachorros, gatos e ratos.

A importância do quadro

O quadro Sítio y Empresa de Salvador já era de interesse dos brasileiros, tanto que há duas réplicas no Brasil, e um brasileiro quis comprar o original, mas foi impedido pelo governo espanhol. (Disso o público ficou sabendo graças à intervenção de um professor de uma universidade estadual da Bahia ao fim.) A Espanha passou a se interessar pelo quadro há apenas 4 anos, quando o historiador militar David García Hernan, da Universidade de Madri, descobriu a importância do quadro. Assim, ele compôs uma equipe multitarefa que incluía o professor José Manuel Santos Peres, da Universidade de Salamanca, brasilianista, e o professor Carlos Brunetto, historiador da arte brasileiro, da Universidade de La Laguna. Esse trio compareceu ao IGHB e palestrou junto com Pablo Magalhães. Acompanhava o trio um diretor de cinema que está preparando um documentário sobre a redescoberta do quadro, que será exibido nos cinemas de Madri ainda neste semestre.

Com o trio, destaca-se a ótica espanhola daquilo que eles chamam de “Restituição do Brasil”. O Prof. José Manuel Santos de saída notou que no salão do IGHB havia quadros de reis portugueses, mas não de reis espanhóis, e recomendou ao instituto que os pusesse, pois Filipe IV de Espanha e III de Portugal foi o mais importante rei para a Bahia. Sua palestra fez jus ao ousado título “Salvador de Bahía y la Historia Universal: El impacto de la recuperación de 1625”. Tratou primeiro da maestria protestante, em especial holandesa, na difusão de panfletos propagandísticos, e descreveu a importância que teve, para o moral dos calvinistas e dos sefarditas da Holanda, o fato de um governador “espanhol” e um bispo jesuíta terem sido capturados e levados para lá.

A propaganda era, também, a alma do negócio: a WIC invadira Salvador com muita rapidez e com poucos recursos; cantando seu feito pelos quatro cantos do mundo, pretendia atrair investimentos de novos acionistas. Diante disso, o Conde-Duque de Olivares aconselhou o Rei a enviar rápido a Armada para impedir a desmoralização da Espanha. E assim foi feito, com D. Fadrique de Toledo à frente. Diante da avassaladora vitória, que incluiu um perdão aos holandeses que pediam clemência, foi a vez da Espanha de fazer propaganda. Esta era bem diferente da calvinista, que tinha por público-alvo leitores individuais. Como a propaganda católica incluía analfabetos, contava com leituras públicas, quadros e peças. Destacam-se a peça “El Brasil Restituido”, de Lope de Vega, e o quadro “La recuperación de Bahía de Todos los Santos” (veja-o aqui). Podemos ver que esse professor é um fã do Conde-Duque de Olivares, tendo destacado sua frase: “Deus é espanhol”. No Brasil, costuma-se dizer que Deus é brasileiro. O professor, porém, ressalta que os panfletos holandeses só se referiam aos brasileiros como espanhóis.

O mesmo não se pode dizer do Prof. Brunetto, que, em bom português, o qualificava como “dor de cotovelo”. De fato, o Conde-Duque de Olivares morria de ciúmes de D. Fadrique de Toledo, e tantas intrigas fez que ele foi parar na cadeia, destituído de nobreza, porque na velhice e doença não quis ir para Pernambuco repetir o que fizera na Bahia. No quadro oficial, “La recuperación de Bahía de Todos los Santos”, o Conde-Duque está no alto, à direita do rei, colocando louros sobre a sua cabeça. D. Fadrique de Toledo está abaixo, apontando para eles. Não há muitas informações sobre a batalha. Destaca-se a caridade católica em primeiro plano, com mulheres cuidando de um soldado ferido e soldados holandeses curvados diante da imagem do rei que os perdoara.

O Prof. David García, que conhece história militar, apontou que no quadro clandestino, “Sitio y Empresa”, D. Fadrique de Toledo aparece usando uma vistosa gorjeira – uma ostentação dos nobres que havia sido banida à época. O quadro é imenso, cheio de bonequinhos miúdos (D. Fadrique incluso), com um mapa de Salvador e uma impressionante quantidade de galeões ao fundo. (O Prof. David García, cobrado por uma pesquisadora brasileira, identificou também os índios flecheiros enviados do Rio de Janeiro para o combate.) A suposição dos historiadores, portanto, é que esse quadro tenha sido encomendado pelo próprio D. Fadrique, ou seus familiares e amigos, e há séculos vem passando de coleção privada em coleção privada, sem que ninguém houvesse atentado para a relevância histórica da conquista militar, bem como de sua dimensão. Ao cabo, as intrigas pessoais do Conde-Duque de Olivares contra D. Fadrique de Toledo fizeram com que o papel da Armada Espanhola na história do Brasil fosse subdimensionado.

No fim das palestras e perguntas, o representante do IGHB disse que a instituição é rica de história e pobre de dinheiro, que os quadros dos reis portugueses (e imperadores brasileiros) foram dados pelo governador da Bahia no século XIX e que aceitará um presente da embaixada espanhola.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Na primeira capital do Brasil, num prédio eclético do século XIX desenhado pelo grande polímata do Império do Brasil, Theodoro Sampaio, ocorreu em 17 de fevereiro de 2025 um evento de grande importância para a historiografia ibero-americana: “Salvador de Bahia y su ‘Sítio y Empresa’ de 1625: pasado y presente de los vínculos hispano-brasileños”. Havia quatro historiadores: dois espanhóis e dois brasileiros, sendo que três eram de universidades espanholas e um é de uma universidade brasileira. O prédio era a sede do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (IGHB).

O que ensejou a vinda de historiadores da Espanha para a Bahia, com o apoio da embaixada e da Armada espanholas, foi a redescoberta de um grande quadro a óleo clandestino que retrata, em detalhes, a expulsão dos holandeses da cidade de Salvador, então capital do Brasil. O nome do quadro, abreviadamente, é “Sítio y empresa de Salvador”, e pode ser visto aqui.

A visão brasileira

A historiografia brasileira costuma refletir o seu passado português e deplorar o período em que o Brasil ficou sob administração da União Ibérica.

Um belo dia, D. Sebastião de Portugal, rei jovem, filho único e solteiro, decidiu fazer uma cruzada em Marrocos, aonde foi lutar pessoalmente. Desde a fatídica batalha de Alcácer Quibir, em 1578, o rei não foi mais visto com vida e, seguindo as regras dinásticas, os Habsurgo da Espanha poderiam herdar o trono português. Acontece que a própria dinastia de D. Sebastião, a Casa de Avis, fora criada no século XIV justamente para evitar que o trono português se submetesse a Castela. Os portugueses aclamaram como rei um bastardo português, o Mestre de Avis, João I.

Tal como no século XIV, a corte lisboeta do século XVI não queria se submeter a Castela. Assim, engendraram-se dois expedientes atípicos. Um foi o de negar a morte de Sebastião e dá-lo somente por desaparecido, cabendo ao povo português esperar o seu retorno triunfal. Outro foi o de retroceder na árvore genealógica da Casa de Avis e coroar como rei um cardeal que era filho de Manuel I de Portugal. Morto o Cardeal Rei D. Henrique, em 1580, acaba a dinastia de Avis. Porém, com suas bênçãos, o trono português passa para Filipe II de Espanha. Em vez de serem dois reinos distintos e rivais, Espanha e Portugal seriam um único corpo político com sede em Madri. A coroa portuguesa deu a Filipe terras na América, na África e na Ásia. A União Ibérica durou de 1580 a 1640, quando Portugal começou uma guerra de independência contra a Espanha.

Nesse período de unificação, a Holanda era uma potência emergente que tentava tomar terras produtoras de açúcar. No Brasil, o senso comum é que os espanhóis foram ruins para nós, porque ficamos entregues aos holandeses. Nisso, pesa mais a história de Pernambuco: a capitania portuguesa que ficou nas mãos dos holandeses de 1637 até 1654, ou seja, por longos 17 anos (ainda que a maioria do tempo tenha sido posterior ao desmanche da União Ibérica). Para completar, a expulsão dos holandeses em Pernambuco contou com grande peso da população local: tanto peso, que os historiadores militares brasileiros costumam remontar à Batalha dos Guararapes a formação do exército brasileiro.

Em virtude de tudo isso, a ocasião em que a capital do Brasil, Salvador da Bahia, foi invadida pelos holandeses ganha pouca atenção dos brasileiros em geral. Quem costuma lembrar são os brasileiros que se dedicam ou à história da Bahia, ou à história militar. Os primeiros tendem a destacar a resistência local.

O historiador brasileiro Pablo Iglesias Magalhães, da Universidade Federal do Oeste Baiano, uma instituição baiana, fez uma apresentação fiel ao costume de enfatizar a resistência local. No entanto, sua pesquisa é ancorada na descoberta de novas fontes primárias, tais como o mapa de um engenheiro holandês que foi comprada por uma coleção particular brasileira, do Instituto Flávia Abubakir, sediado na Bahia (que aliás também patrocinou o evento e enviou sua diretora para tratar da coleção). Nesse mapa, vemos o traçado perfeito da cidade de Salvador dentro dos muros, junto com o dique que os holandeses construíram para separá-la ainda mais do continente. Segundo o historiador, foi a maior obra do Brasil colonial, e após a vitória o dique foi aterrado. O mapa confirma que o dique existente em Salvador é outro e não foi construído pelos holandeses.

A cidade murada de Salvador ficava no alto, sobre uma grande escarpada, e dava para uma grande baía, a Baía de Todos os Santos. É uma baía tão grande que, segundo os geógrafos, é na verdade um pequeno golfo com três baías e dezenas de ilhas; mas, como o nome é tradicional, ninguém chama de Golfo de Todos os Santos. Integrados com esse complexo aquático, estão os rios que vêm do interior do continente e transportam tanto a cobiçada produção de açúcar quanto os víveres necessários à subsistência de Salvador. Esse interior chama-se Recôncavo.

Segundo o Prof. Pablo Magalhães, os holandeses padeceram também pelos seus próprios erros, pois acharam que era possível se estabelecer em Salvador sem dominar o Recôncavo. Assim, não foi difícil a gente da terra – em especial uma aldeia indígena liderada por um bispo jesuíta – fazerem um cerco e obrigarem os holandeses a comerem cachorros, gatos e ratos.

A importância do quadro

O quadro Sítio y Empresa de Salvador já era de interesse dos brasileiros, tanto que há duas réplicas no Brasil, e um brasileiro quis comprar o original, mas foi impedido pelo governo espanhol. (Disso o público ficou sabendo graças à intervenção de um professor de uma universidade estadual da Bahia ao fim.) A Espanha passou a se interessar pelo quadro há apenas 4 anos, quando o historiador militar David García Hernan, da Universidade de Madri, descobriu a importância do quadro. Assim, ele compôs uma equipe multitarefa que incluía o professor José Manuel Santos Peres, da Universidade de Salamanca, brasilianista, e o professor Carlos Brunetto, historiador da arte brasileiro, da Universidade de La Laguna. Esse trio compareceu ao IGHB e palestrou junto com Pablo Magalhães. Acompanhava o trio um diretor de cinema que está preparando um documentário sobre a redescoberta do quadro, que será exibido nos cinemas de Madri ainda neste semestre.

Com o trio, destaca-se a ótica espanhola daquilo que eles chamam de “Restituição do Brasil”. O Prof. José Manuel Santos de saída notou que no salão do IGHB havia quadros de reis portugueses, mas não de reis espanhóis, e recomendou ao instituto que os pusesse, pois Filipe IV de Espanha e III de Portugal foi o mais importante rei para a Bahia. Sua palestra fez jus ao ousado título “Salvador de Bahía y la Historia Universal: El impacto de la recuperación de 1625”. Tratou primeiro da maestria protestante, em especial holandesa, na difusão de panfletos propagandísticos, e descreveu a importância que teve, para o moral dos calvinistas e dos sefarditas da Holanda, o fato de um governador “espanhol” e um bispo jesuíta terem sido capturados e levados para lá.

A propaganda era, também, a alma do negócio: a WIC invadira Salvador com muita rapidez e com poucos recursos; cantando seu feito pelos quatro cantos do mundo, pretendia atrair investimentos de novos acionistas. Diante disso, o Conde-Duque de Olivares aconselhou o Rei a enviar rápido a Armada para impedir a desmoralização da Espanha. E assim foi feito, com D. Fadrique de Toledo à frente. Diante da avassaladora vitória, que incluiu um perdão aos holandeses que pediam clemência, foi a vez da Espanha de fazer propaganda. Esta era bem diferente da calvinista, que tinha por público-alvo leitores individuais. Como a propaganda católica incluía analfabetos, contava com leituras públicas, quadros e peças. Destacam-se a peça “El Brasil Restituido”, de Lope de Vega, e o quadro “La recuperación de Bahía de Todos los Santos” (veja-o aqui). Podemos ver que esse professor é um fã do Conde-Duque de Olivares, tendo destacado sua frase: “Deus é espanhol”. No Brasil, costuma-se dizer que Deus é brasileiro. O professor, porém, ressalta que os panfletos holandeses só se referiam aos brasileiros como espanhóis.

O mesmo não se pode dizer do Prof. Brunetto, que, em bom português, o qualificava como “dor de cotovelo”. De fato, o Conde-Duque de Olivares morria de ciúmes de D. Fadrique de Toledo, e tantas intrigas fez que ele foi parar na cadeia, destituído de nobreza, porque na velhice e doença não quis ir para Pernambuco repetir o que fizera na Bahia. No quadro oficial, “La recuperación de Bahía de Todos los Santos”, o Conde-Duque está no alto, à direita do rei, colocando louros sobre a sua cabeça. D. Fadrique de Toledo está abaixo, apontando para eles. Não há muitas informações sobre a batalha. Destaca-se a caridade católica em primeiro plano, com mulheres cuidando de um soldado ferido e soldados holandeses curvados diante da imagem do rei que os perdoara.

O Prof. David García, que conhece história militar, apontou que no quadro clandestino, “Sitio y Empresa”, D. Fadrique de Toledo aparece usando uma vistosa gorjeira – uma ostentação dos nobres que havia sido banida à época. O quadro é imenso, cheio de bonequinhos miúdos (D. Fadrique incluso), com um mapa de Salvador e uma impressionante quantidade de galeões ao fundo. (O Prof. David García, cobrado por uma pesquisadora brasileira, identificou também os índios flecheiros enviados do Rio de Janeiro para o combate.) A suposição dos historiadores, portanto, é que esse quadro tenha sido encomendado pelo próprio D. Fadrique, ou seus familiares e amigos, e há séculos vem passando de coleção privada em coleção privada, sem que ninguém houvesse atentado para a relevância histórica da conquista militar, bem como de sua dimensão. Ao cabo, as intrigas pessoais do Conde-Duque de Olivares contra D. Fadrique de Toledo fizeram com que o papel da Armada Espanhola na história do Brasil fosse subdimensionado.

No fim das palestras e perguntas, o representante do IGHB disse que a instituição é rica de história e pobre de dinheiro, que os quadros dos reis portugueses (e imperadores brasileiros) foram dados pelo governador da Bahia no século XIX e que aceitará um presente da embaixada espanhola.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

See also

See also

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.