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Num momento em que a Comissão e von der Leyen tenta encontrar novas respostas para mais uma crise do gás na União Europeia, a qual, em pleno Inverno, volta a testar toda a estratégia de transição energética do gás russo para o que a CEO europeia designa de “diversificação” dos fornecimentos, retornam ao espaço mediático todas as acusações de que a europa foi levada a cometer um suicídio energético, recaindo, erroneamente a meu ver, muitas das culpas, na “transição verde”.
Sejamos claros, o que está em causa não é a “transição verde” e a sua validade, transição essa que, num continente sem recursos fósseis ou centrais nucleares suficientes, se justifica plenamente. O que está em causa é a destruição dos principais pilares em que assenta, e assentava, a segurança energética das nações europeias. Transição verde incluída, como veremos.
E é precisamente nesta destruição que entronca actual crise europeia do Gás, a capacidade dos EUA em criá-la e tudo o que se lhe seguirá. Tratou-se, primeiro, de uma crise de segurança provocada pela OTAN – que sabia ter na Federação Russa uma oposição à sua expansão. O papel da OTAN, em conexão com a União Europeia, é profusamente tratado na documentação desclassificada da CIA.
Embora a actual crise do Gás seja resultado de um tacticismo desesperado por parte dos EUA, num momento em que a sua decadência externa relativa – internamente a decadência é absoluta – obriga à canibalização da Europa, Canadá, Japão e outros vassalos, ela só foi possível porque existe uma estrutura de poder na europa, ao serviço dos EUA. Contudo, este tacticismo entra em contradição com o investimento realizado, também pelos EUA, ao tempo da guerra fria e que criou espaço, em conjunto com a pressão social democrática existente à data e com origem em sindicatos e partidos de classe muito fortes, para a construção de um estado de bem-estar social do qual nunca usufruíram os próprios povos norte-americanos, com excepção do Canadá. E esta é uma das maiores contradições – e quiçá obstáculos – deste movimento de instrumentalização da EU realizado pelos EUA.
Como a “integração europeia”, também esta crise do gás obedeceu a fases. Numa primeira fase, as acções contra o gás Russo foram quase exclusivamente contra o gás natural via gasoduto. O facto é que até ao 14.º pacote de sanções, pouco havia sido feito contra o fornecimento de LNG. Até agora! O 14.º pacote de sanções inaugura a segunda fase do ataque, que consiste na substituição, já não do gás de gasoduto, mas, desta feita, do LNG russo por LNG norte americano. Prevejo que com Trump isto pouco se alterará.
O facto é que, com a ronda de sanções pós “operação militar especial”, os EUA contiveram o fornecimento de gás natural à Alemanha, principalmente, obrigando este país a substituir o gás natural via gasoduto por fornecimento LNG. Para conter o recurso massivo ao LNG Russo, mais barato, por estar mais perto, pelos descontos e menores custos de extracção, foram aplicadas sanções a bancos russos, excluindo-os do SWIFT, tendo-se proibido o uso do SPFS (sistema russo de pagamentos) e criado entraves à negociação de longo prazo com a Federação Russa. O Resultado? Os países que já compravam LNG à Rússia continuaram a fazê-lo, mais ou menos na mesma quantidade, ou em quantidades aceitáveis, beneficiando dos contratos de longo prazo que já haviam celebrado (França, Espanha, Bélgica e Países baixos), mas a Alemanha de Sholz trocou o gás natural via Nord Stream por LNG norte-americano e de outras fontes. Um ataque pronunciado à Alemanha e à sua economia, consistindo este ataque numa das decorrências previstas desta operação. A verdade é que o LNG russo não substitui, essencialmente, à conta do aumento da quota de mercado, mas sim dos contratos com os países que já o compravam.
Também para conter a compra de GNL russo, de forma individual e através de contratos de longo prazo, a Comissão von der Leyen criou um sistema de compra agregada de gás, para gerir a aquisição e as reservas de forma colectiva, aproveitando a maior escala e as vantagens negociais daí resultantes – na teoria, claro. Diga-se que, de passagem, os países que aderiram a esta compra e armazenamento agregados são obrigados a respeitarem um mínimo de reservas de gás comprado por esta via, no montante de 15% do total das reservas. Parece-me a mim que, aliando esta exigência, ao facto de Úrsula von der Leyen andar a propagandear o GNL norte-americano, o objectivo é garantir um fornecimento mínimo, previsível, de GNL do tio Sam.
Úrsula von der Leyen veio mesmo mentir descaradamente, dizendo que o GNL americano é mais barato, quando se sabe que a Federação Russa faz, hoje, enormes descontos no gás e petróleo e que, mesmo não os fazendo, a contratação a longo prazo, traduzia-se em gás mais barato. Acresce que, o GNL importa outros custos que não estão associados ao gás por gasoduto (transporte, seguros, armazenamento, transvase) e que, tendo tais custos em conta, a Rússia é mais perto dos que os EUA. O facto é que, se antes de 2019, a EU comprava aos EUA uma quantia residual de LNG, no final de 2023, os EUA já forneciam cerca de metade do LNG comprado e supriam metade das necessidades europeias.
Contudo, uma vez que a capacidade instalada de compra, transvase e armazenamento de GNL americano vai aumentando, ao mesmo tempo que as compras de GNL russo iam recuperando, eis que surge o episódio Druzhba, que teve, na minha opinião, pelo menos dois objectivos: aumento dos preços do gás na Europa e consequente aumento do fornecimento norte-americano. Os EUA ganham das duas formas.
Este assunto é tão importante para os EUA que é um Think Thank deste país ( o Institute for Energy Economics and Financial Analisis) que tem os melhores dados, utilizados inclusive pela própria comissão von der Leyen, fazendo uma monitorização precisa do gás natural e GNL comprado, pela EU, à… Federação Russa! Refira-se, a este respeito, que a estratégia utilizada por von der leyen para justificar o recurso ao GNL norte-americano e prescindir do gás russo, não estava suportada apenas nas questões de segurança. É vasta a doutrina europeia que refere a necessidade de “diversificação” de fontes de fornecimento. Nada a obstar, não se tratasse de uma falácia.
Hoje, a “diversificação” é o mote. E porquê? Porque os EUA não têm capacidade para vender todo o GNL de que a EU necessita. Contudo, de acordo com o relatório do atrás referido IEEFA os EUA têm em construção, por toda a EU, infra-estruturas que, quando finalizadas, em 2030, corresponderão a um incremento da capacidade de fornecimento em mais 100% do que a actual e mais 76% do que a demanda europeia agregada de gás, nessa data. Ora, não é preciso ser-se muito inteligente para prever o que vai acontecer: Se hoje o fornecimento de GNL americano supre cerca de 50% das necessidades, nessa altura os EUA serão capazes de suprir 100%, considerando o consumo actual!
É minha opinião que poderão acontecer vários cenários: os discursos da “diversificação” darão lugar, gradualmente, ou através de uma nova crise, a um discurso sobre os benefícios da “exclusividade” do fornecimento junto dos EUA; os EUA, sabendo-se do nível de cooptação política de que usufruem na EU, conseguirão que esta pague mais, justificando esse preço mais elevado com uma maior segurança e confiança no fornecedor. Acresce que, mesmo ao preço de mercado, como a transição da EU para o LNG faz subir os preços deste bem, os EUA contarão sempre com elevados lucros nesta operação. Gás “democrático” e “respeitador dos direitos humanos” terá de ser mais caro, certo? Mesmo que venha de “fracking”, prática proibida da Europa.
Sobra ainda outra questão sobre o futuro energético da EU. Tendo em conta o consumo actual, em 2030, os EUA poderão satisfazer todas as necessidades de fornecimento à EU. Acresce que o consumo de gás está a baixar na União Europeia, prevendo-se que em 2030, o consumo seja metade do actual. Se nessa data os EUA terão o dobro da capacidade de fornecimento actual, para onde irá o LNG vendido?
Podem dizer-me que a EU o revenderá, mas será difícil por variadas razões: o GNL de outras origens é mais barato; o GNL de outras origens tem custos de extracção mais baixos do que o shale americano; os países tenderão para a transição verde, reduzindo o consumo de GNL, o que baixará ainda amais o preço; a Turquia será um hub importantíssimo de gás por gasoduto, mais barato e menos poluente.
Daí que eu me questione sobre o futuro da transição energética verde na EU e da forma como avançará, ou não, e do papel que tem a designada “extrema direita” num possível retrocesso no recurso às energias renováveis. E sabendo que os EUA e EU querem taxar em força os painéis fotovoltaicos chineses, muito mais baratos e responsáveis por aumento exponencial do recurso à energia de origem solar… Que tão grande jeito dá aos EUA atrasar, por via da necessidade de um maior investimento, a transição europeia para as energias renováveis.
Daí que, seja necessário ser muito fanático para não perceber de que forma os EUA constituem um fardo brutalmente caro para os cidadãos europeus. A paz na guerra NATO-Federação Russa, a decorrer na Ucrânia, só será possível, a esta luz, se toda a tensão internacional for mantida, pois é essa tensão, essa crise permanente de segurança, que alimenta os cofres da indústria de GNL norte-americana. A guerra da Ucrânia é, pode-se dizer, uma guerra movida a gás!