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Hugo Dionísio
December 5, 2024
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Do norte ao sul, de este a oeste, vão-se multiplicando jogadas desesperadas, a maioria falhando de forma dramática. O objetivo é muito claro: Joe Biden não pode abandonar a presidência sem um legado. Durante as campanhas eleitorais, o ainda presidente dos EUA, nada comedido, prometeu mundos e fundos, os quais, talvez por arrogância ou falta de aconselhamento adequado, julgou poder obter: a derrota estratégica da Federação Russa, no campo de batalha; o isolamento da Federação Russa no plano internacional; a contenção da República Popular da China e a sua submissão a Washington; o controlo e submissão do Irão; a protecção e segurança de Israel; a (re)industrialização dos EUA, etc…

Não faltaram os elogios, mas, de todos os conseguimentos de Joe Biden, apenas relevam aqueles que não poderia, directa e frontalmente, prometer: a destruição da economia Alemã e, à boleia, da economia da EU; a tomada do mercado europeu de GNL, através da destruição do NordStream; a tomada, por dentro, do complexo militar industrial dos países da EU; a desestabilização, e consequente instalação de regimes fantoche, num sem número de países conectados com os seus inimigos principais; a destruição e desestabilização das cadeias de abastecimento, como forma de atacar a confiança na capacidade industrial chinesa; o desacoplamento parcial, doa a quem doer, da economia ocidental em relação à economia chinesa; a destruição do sistema de comércio internacional e da confiança na arquitetura jurídico-institucional construída após a segunda guerra mundial. Estes objetivos foram satisfatoriamente conseguidos, diria. Mas nenhum salvará os EUA da perda da sua hegemonia e supremacia no plano internacional.

Prestes a abandonar o barco, sem apresentar qualquer resultado digno de figurar no pedestal de medidas capazes de contrariar a degradação do domínio hegemónico dos EUA, a saída de cena de Joe Biden é, em si mesma, uma imagem vívida da falência do que se convencionou apelidar de “democracia americana”. Um candidato, eleito pelas bases populares do partido democrata, após umas primárias em que não conheceu concorrentes à altura, foi mais tarde rejeitado e preterido pelas oligarquias doadoras do partido.

Depois do descalabro na Ucrânia, cada vez mais difícil de esconder, das tentativas falhadas de “revolução colorida” na Geórgia, Venezuela, Moçambique, Sérvia, relativamente às quais nem os maiores fanboys da NATO conseguem esconder o descalabro argumentativo que se seguiu à repetição, tão previsível como desesperada, da acusação de que as eleições são sempre falseadas quando não ganham os escolhidos do Olimpo da democracia que é o G7, foi agora a vez da Siria, país no qual a manobra arrojada de repetição da “primavera árabe”, concebida e operacionalizada com recurso a “movimentos rebeldes” que mais não são do que grupos terroristas e fundamentalistas Islâmicos que os EUA e Israel movimentam de um lado para o outro, consoante as necessidades (Uigures, mujahidines do Balochistão Iraniano, terroristas da Al-Nusra e muitos outros “moderados”).

Vendo-se confrontado com uma ameaça de destruição, Israel não pode conviver com um eixo da resistência que liga os povos xiitas do Irão ao Líbano, nem os EUA podem deixar cair Israel. Mas também esta manobra parece estar a gorar-se. Ao mesmo tempo, sem obter resultados práticos, os EUA deram a conhecer ao mundo que Erdogan, tão crítico de Israel, afinal, não passe de um troca tintas e que não pode ser confiável. Já a Ucrânia, uma vez mais, procurou na Síria, com o seu apoio à operação, obter vantagens – ameaçar o porto de águas quentes que a Federação Russa aí tem? – que não tem conseguido no campo de batalha, e de que necessita para uma qualquer negociação que possa acabar com a NATO às portas do Donbass. Algo que, como é óbvio, a Federação Russa nunca aceitará.

Mas desengane-se que as manobras desesperadas de Biden se cingem ao plano militar. O plano militar é apenas a forma mais brutal de garantir o objectivo principal: o domínio da economia mundial e a continuação da exploração das grandes fontes de riqueza mundial.

Neste quadro, a aposta na construção do corredor do Lobito em Angola é, acima de tudo, uma grande operação de propaganda para Joe Biden e Partido Democrata, bem como mais uma das suas medidas extemporâneas e desesperadas, como veremos. Biden vai a Angola; Biden negociou o Memorando de Entendimento; Biden vai criar uma alternativa ao domínio Chinês nos minerais críticos e terras raras; Biden é apresentado com o salvador da falência do próprio neoliberalismo ocidental.

Se Biden hoje se apresenta como um qualquer salvador da morte anunciada em que o ocidente se deixou cair, vítima das suas contradições e da incapacidade para as resolver, tal sucede porque, o mesmo Biden, foi actor, conselheiro, pensador e operador do processo que a tal conduziu. A vertigem da financeirização económica que levou à desindustrialização não é responsabilidade dele, mas a sua continuidade por mais de 30 anos, tem a sua marca indelével. Nenhuma outra figura pública e política ocidental terá estado tão intrinsecamente ligada à distracção dos EUA, do que Biden.

O ainda presidente dos EUA, figura maior do Partido Democrata, o partido que, nos EUA, se diz próximo dos trabalhadores e do povo, ao longo da sua carreira política, viu a China, ainda nos anos 80 e um dos países mais pobres do mundo, passar a dominar 80% das minas de cobre, 85% da extracção das terras raras, 76% do cobalto da República Democrática do Congo, de onde são extraídos 70% deste importante mineral para a construção de baterias para veículos eléctricos. Durante todo este tempo, Biden deu voz e a cara pelo domínio do petróleo e do gás, pela globalização neoliberal que desindustrializou a américa e pela financeirização da economia que concentrou quase 30% da riqueza produzida nos 10% mais ricos.

Durante todo esse tempo, de nada valia a pena argumentar, porque a arrogância que guiou todas as guerras pelo petróleo, propriamente ditas ou não, foi a mesma arrogância que presumia que os Chineses, ou só copiavam o que era dos outros, ou, mais importante ainda, seriam vítimas do colapso da sua economia, pois nenhuma economia funcional poderia perdurar se não o fizer segundo os princípios neoliberais que Washington pratica e promove. Era só esperar. Ainda hoje, todos os dias durante mais de 30 anos, há quem anuncie o colapso iminente do sistema chinês.

Assim, por culpa exclusiva, agarrado com as calças na mão – como se costuma dizer -, o ocidente “liderado pelos EUA” acordou para a vida e, incapaz de aceitar um lugar no mundo em que se sinta igual aos restantes, optou por encetar toda uma estratégia de “contenção” e “contra-ataque” contra a influência “maligna” chinesa, russa, iraniana, coreana, cubana, venezuelana e de todos os que se lhe opõem frontalmente, desenrolando-se, em África, um dos mais importantes capítulos desse confronto.

Consequentemente, com a viagem para Angola, Biden tenta ainda deixar a sua marca enquanto o Presidente que tudo fez para contrariar a influência chinesa – e russa – em África e no mundo. Todos se recordam de Biden, aquando no início da sua presidência dizia “not on my watch” (não sob minha vigilância), a respeito de os EUA serem ultrapassados pela China enquanto nação mais poderosa. A verdade é que foi sob a sua vigilância (Presidência de Clinton, Obama e a sua própria) que a República Popular da China se tornou a maior potência industrial e comercial do mundo e, quando avaliada a sua economia em paridade de poder de compra, ao invés de se utilizar a moeda do inimigo, o colosso chinês já é, e por muito, a maior economia do mundo.

Angola assume, neste quadro, um importância vital para os EUA, uma vez que o corredor ferroviário do Lobito ligará o Porto do Lobito, na costa angolana do Oceano Atlântico, até a cidade de Luau, na fronteira nordeste de Angola com a RDC, de onde partem ligações que também garantem o acesso ao cinturão do Cobre na Zâmbia. Biden joga tudo aqui para contrariar a influência chinesa, prometendo uma alternativa ocidental à Belt and Road Initiative.

A comunicação social norte americana é quase unânime na assunção de que os benefícios provenientes do Corredor do Lobito cairão, sobretudo, para o lado dos EUA. Segundo a imprensa mainstream, Biden faz a sua ultima viagem para garantir que os EUA serão capazes de contrariar a influência chinesa na região.

O documento de apresenção do projecto, dá algumas pistas sobre os actores e o seu peso no projecto. Como não poderia deixar de ser, um projecto liderado pelos EUA, teria de ter uma estrutura neoliberal, ou seja, o estado paga, o privado come. Daí que a concessão tenha sido atribuída a um consórcio composto pela comerciante de matérias primas, a Trafigura (49,5%), sedeada em Singapura, os parceiros europeus Mota-Engil (49,5%) de Portugal e a Vecturis (1%) da Bélgica.

Imagem de marca do neoliberalismo, usou-se, uma vez mais, o esquema “Parceria Público Privada”, confirmando o caracter inescapável do que se constitui como o maior drama ocidental dos nossos temos: a incapacidade dos poderes envolvidos de conceberem um projecto que não represente um ciclo de acumulação para os grandes conglomerados privados. Doa por onde doer, no ocidente é assim: ou há dinheiro grátis – e muito – envolvido, ou não existe projecto. É assim em tudo, desde as infra-estruturas à investigação científica, ao armamento e energia. Tem sempre de haver muito lucro fácil, concentração de riqueza através de “suados” royalties. Riqueza que engorda a oligarquia mas não reentra, na economia, como investimento produtivo. Esse fica para os estados, para quem a oligarquia não paga impostos. Depois questionam-se do porquê de estarem a ficar para trás…

Em função de toda a bravata, muitos poderiam ser levados a acreditar que os EUA – através de Biden – teriam entrado com uma importante parcela de financiamento para o projecto. Os trabalhos de construção do corredor foram orçados, pelo Banco Africano de Desenvolvimento, em pelo menos 1.6 biliões de dólares (mais ou menos 1.5 biliões de Euros). Destes, o próprio BDA entrará com 500 milhões de dólares. A União Europeia entrará com 600 milhões de Euros (mais ou menos 700 milhões de dólares) o estado Angolano com 400 milhões de dólares e a Republica Democrática do Congo com outros 100 milhões.

Considerando que se pretendem construir ramais, ligações rodoviárias, explorar potencialidades ligadas ao agronegócio, telecomunicações e energias renováveis, o projecto poderá mesmo atingir os 3 Biliões de dólares, “mobilizados pelos EUA”, mas o que nunca se diz é que estes EUA apenas entraram com 2 milhões de dólares para um estudo de impacto social e ambiental.

Ou seja, os EUA assinaram vários memorandos de entendimento, nos quais também a EU foi parte, mas quem aparece como os grandes promotores e beneficiários do projecto são os norte americanos, usando, uma vez mais, a Europa e os bons serviços de Von Der Leyen e de António Costa, garantindo o acesso aos minerais de que necessitam, sem investirem o que quer que se veja. A Europa e África pagam, os EUA beneficiam, mesmo que em parte, quando, de acordo com o relatório Draghi, também são “competidores”. Logo, como pode a EU pagar para beneficiar os seus competidores?

Este processo trata-se, antes de tudo, de mais uma golpada que demonstra a forma, absolutamente inaceitável, como os EUA continuam a usar a União Europeia, como ponto de apoio, para a obtenção de resultados económicos que, de outra forma, dificilmente obteriam. Neste caso, de Angola, Portugal terá tido um papel importante para a aproximação das partes, uma vez que o maior parceiro comercial do estado Angolano é a China. No final, teremos, uma vez mais, o povo europeu, angolano, congolês e zambiano a pagar, para a oligarquia norte americana acumular.

Falta saber, considerando a história de Biden na Ucrânia e a sua apetência para o recebimento de luvas enquanto broker de negócios, o que estará por detrás da escolha das empresas, que surgem mais beneficiadas pelo projecto em questão. Todas empresas privadas, nenhuma americana, quase dando a impressão de que, existe uma tentativa para não fazer os distúrbios no local onde se vive.

Não obstante esta jogada de mestre, em que tal como o dólar, os EUA, a partir do ar, conseguem surgir como os principais beneficiários do Corredor do Lobito, este projecto é, por fim, mais um acto desesperado, por parte dos EUA e sobre o qual os três países africanos envolvidos parecem depositar grandes esperanças. Pelo menos aparentemente.

Uma das nuvens que paira sobre o projecto tem a ver com a parca dimensão das explorações mineiras sob controlo das partes. Aposta-se tudo no aumento previsto pela Agência Internacional de Energia, (AIE) que estimou que entre 2020 e 2040, a procura por níquel e cobalto aumentará em vinte vezes, por grafite em vinte e cinco vezes e por lítio em mais de quarenta vezes, o que alimentou o interesse no Corredor de Lobito. Contudo, tratam-se de previsões que contrastam com a dimensão das explorações desde já garantidas pelo ocidente, o que demonstra o desespero em marcar presença, nem que seja de forma minimalista.

A pequena escala da exploração coberta actualmente o Corredor do Lobito deixa, na sua maioria, muito a desejar e pouco contribui para encorajar investimentos além do que é minimamente necessário para escavar e transportar minerais para fora do país, para processamento. E esta é, talvez, outra das dimensões fantasiosas do projecto.

Se o Corredor do Lobito se resumir a explorar e retirar o minério para o ocidente, privando os países envolvidos do valor acrescentado ligado à refinação, a sua atracção em matéria de desenvolvimento será muito escassa, pois, como reconhece o próprio documento de apresentação do projecto, “investimentos mineiros em grande escala (…) estão associados a salários mais elevados, padrões ambientais e éticos mais rigorosos e melhor cumprimento fiscal. Os investimentos em grande escala são catalisadores do desenvolvimento económico.” Ou seja, faltará escala às explorações que utilizarão o corredor do Lobito, anunciando-se um potencial de desenvolvimento reduzido, caso o ocidente não opte por outra estratégia.

É o próprio Think Thank APRI (Africa Policy Research Institute) quem vem dizer que estratégia seria essa. Segundo o APRI, um dos desafios será o de que as partes podem dar escala ao projecto, investindo “na industrialização do continente africano em todos os níveis. Essa estratégia, de médio a longo prazo, deve passar por construir mercados futuros para seus iPhones, BMWs, etc.” Se não o fizerem, o Corredor do Lobito nunca atrairá grande interesse económico, dada as parcas quantidades de Matérias Primas Críticas que aí serão transportadas. O próprio “Acto Europeu Para as Matérias Primas Críticas” aponta para a criação de um sector “responsável”, nesta matéria.

Ora, considerando que, até aqui, é a China quem tem contribuído para o desenvolvimento de África, em troca de matérias primas, e que é essa característica “win-win” que tem constituído o seu modus operandi e principal vantagem, como demonstra a construção da primeira fase do Corredor, entre 2006 e 2014, em que, em troca de petróleo, a China investiu 2 biliões de dólares na renovação da via ferroviária então existente, o quão desesperados estão os EUA, que aqui usam o dinheiro dos outros, para que, desta feita, façam o que nunca fizeram, ou seja, deixar parte da mais valia no local de extração e prescindir dos futuros e derivados financeiros que a posse de toda a matéria prima garante – que por sinal é em pouca quantidade.

Esta simples possibilidade, na minha opinião, é maior contradição deste projeto e demonstra o desespero com que o ocidente, e os EUA, atuam. Ou estão a mentir e a prometer que farão o que não têm intenção de fazer, apenas para garantir algo que não têm em sua posse; ou estão tão desesperados que darão a África o que nunca deram. Aceitam-se apostas.

Vejamos, um projeto que surge como uma parceria publico privada feita para dar dinheiro a empresas sedeadas em Portugal, Singapura e na Bélgica, em que o maior beneficiário serão os EUA, que são os que menos investiram e que, tendo em conta a falta aguda de matérias primas críticas do ocidente e a falta de escala das explorações em sua posse, acreditar que será desta vez que se fará o que nunca foi feito… É como acreditar que os Russos combatem com pás ou que retiram os chips de máquinas de lavar, para os colocarem nos seus Kinzhal. Estarão os EUA no negócio do desenvolvimento alheio? Eu acredito que não e a história demonstra-o à saciedade.

Por fim, também a adicionar às causas do desespero, acresce que o desenvolvimento do Corredor de Lobito, fruto da arrogância, cegueira, opacidade decisória, irresponsabilidade, incompetência e pouca cientificidade na tomada de decisão, como em tudo o resto que tem a ver com o atraso do ocidente em muitas áreas (como sucede na militar em relação à Rússia), Biden tenta aqui, desesperadamente, contrariar uma realidade já consolidada e, diria mesmo, inevitável. É que é na Ásia que se encontra o polo de atracção de toda a cadeia de valor e abastecimento ligada à eletrificação e novas energias (principais tecnologias, fábricas, marcas e centros de investigação), para além de ai estar a maior parte da população mundial, os maiores mercados e a tecnologia de ponta. Logo, para onde se virarão estes países?

Bem sei que os EUA, e o Ocidente coletivo, se especializaram na culpa alheia e no negacionismo das evidências e da realidade, mas, no que diz respeito ao transporte de Matérias Primas Críticas, para a UE e os EUA, a maior parte do fornecimento já foi bloqueado pela própria China, que detém também as valências ligadas à transformação destes materiais. Além disso, para agravar, há uma rota proposta, mais curta em cerca de 500 km, para o leste entre Lubumbashi e Dar Es Salaam. Provavelmente será mais um prego no caixão da viabilidade do Corredor de Lobito, pois para agravar são os chineses quem assumirão a operação da linha ferroviária TAZARA.

Com a UE e os EUA para trás em termos de tecnologia de VE, é muito provável que a Republica Democrática do Congo e a Zâmbia acabem olhando para o Leste em busca de capacidade e capacitação de cadeias de valor de baterias para veículos elétricos. E das duas uma, ou a EU, e os EUA, portanto, têm capacidade para integrar a iniciativa do Corredor de Lobito numa abordagem mais holística, que envolva estes três países, como parceiros com vista ao estimulo do desenvolvimento industrial em toda a África, ou tudo não passará de um sonho, que acabará em pesadelo. O que me leva ao início: estamos, portanto, com muita dose de certeza, perante mais uma vertigem desesperada e alucinada de Biden e seus capangas.

Alguém já viu os EUA fazerem um negócio em que não ganhem almoços grátis?

O desespero levará os EUA à fraternidade internacionalista, ou à aceleração da rapina?

Fica ao vosso critério.

Biden dá voz ao desespero, em África, à custa da Europa

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Do norte ao sul, de este a oeste, vão-se multiplicando jogadas desesperadas, a maioria falhando de forma dramática. O objetivo é muito claro: Joe Biden não pode abandonar a presidência sem um legado. Durante as campanhas eleitorais, o ainda presidente dos EUA, nada comedido, prometeu mundos e fundos, os quais, talvez por arrogância ou falta de aconselhamento adequado, julgou poder obter: a derrota estratégica da Federação Russa, no campo de batalha; o isolamento da Federação Russa no plano internacional; a contenção da República Popular da China e a sua submissão a Washington; o controlo e submissão do Irão; a protecção e segurança de Israel; a (re)industrialização dos EUA, etc…

Não faltaram os elogios, mas, de todos os conseguimentos de Joe Biden, apenas relevam aqueles que não poderia, directa e frontalmente, prometer: a destruição da economia Alemã e, à boleia, da economia da EU; a tomada do mercado europeu de GNL, através da destruição do NordStream; a tomada, por dentro, do complexo militar industrial dos países da EU; a desestabilização, e consequente instalação de regimes fantoche, num sem número de países conectados com os seus inimigos principais; a destruição e desestabilização das cadeias de abastecimento, como forma de atacar a confiança na capacidade industrial chinesa; o desacoplamento parcial, doa a quem doer, da economia ocidental em relação à economia chinesa; a destruição do sistema de comércio internacional e da confiança na arquitetura jurídico-institucional construída após a segunda guerra mundial. Estes objetivos foram satisfatoriamente conseguidos, diria. Mas nenhum salvará os EUA da perda da sua hegemonia e supremacia no plano internacional.

Prestes a abandonar o barco, sem apresentar qualquer resultado digno de figurar no pedestal de medidas capazes de contrariar a degradação do domínio hegemónico dos EUA, a saída de cena de Joe Biden é, em si mesma, uma imagem vívida da falência do que se convencionou apelidar de “democracia americana”. Um candidato, eleito pelas bases populares do partido democrata, após umas primárias em que não conheceu concorrentes à altura, foi mais tarde rejeitado e preterido pelas oligarquias doadoras do partido.

Depois do descalabro na Ucrânia, cada vez mais difícil de esconder, das tentativas falhadas de “revolução colorida” na Geórgia, Venezuela, Moçambique, Sérvia, relativamente às quais nem os maiores fanboys da NATO conseguem esconder o descalabro argumentativo que se seguiu à repetição, tão previsível como desesperada, da acusação de que as eleições são sempre falseadas quando não ganham os escolhidos do Olimpo da democracia que é o G7, foi agora a vez da Siria, país no qual a manobra arrojada de repetição da “primavera árabe”, concebida e operacionalizada com recurso a “movimentos rebeldes” que mais não são do que grupos terroristas e fundamentalistas Islâmicos que os EUA e Israel movimentam de um lado para o outro, consoante as necessidades (Uigures, mujahidines do Balochistão Iraniano, terroristas da Al-Nusra e muitos outros “moderados”).

Vendo-se confrontado com uma ameaça de destruição, Israel não pode conviver com um eixo da resistência que liga os povos xiitas do Irão ao Líbano, nem os EUA podem deixar cair Israel. Mas também esta manobra parece estar a gorar-se. Ao mesmo tempo, sem obter resultados práticos, os EUA deram a conhecer ao mundo que Erdogan, tão crítico de Israel, afinal, não passe de um troca tintas e que não pode ser confiável. Já a Ucrânia, uma vez mais, procurou na Síria, com o seu apoio à operação, obter vantagens – ameaçar o porto de águas quentes que a Federação Russa aí tem? – que não tem conseguido no campo de batalha, e de que necessita para uma qualquer negociação que possa acabar com a NATO às portas do Donbass. Algo que, como é óbvio, a Federação Russa nunca aceitará.

Mas desengane-se que as manobras desesperadas de Biden se cingem ao plano militar. O plano militar é apenas a forma mais brutal de garantir o objectivo principal: o domínio da economia mundial e a continuação da exploração das grandes fontes de riqueza mundial.

Neste quadro, a aposta na construção do corredor do Lobito em Angola é, acima de tudo, uma grande operação de propaganda para Joe Biden e Partido Democrata, bem como mais uma das suas medidas extemporâneas e desesperadas, como veremos. Biden vai a Angola; Biden negociou o Memorando de Entendimento; Biden vai criar uma alternativa ao domínio Chinês nos minerais críticos e terras raras; Biden é apresentado com o salvador da falência do próprio neoliberalismo ocidental.

Se Biden hoje se apresenta como um qualquer salvador da morte anunciada em que o ocidente se deixou cair, vítima das suas contradições e da incapacidade para as resolver, tal sucede porque, o mesmo Biden, foi actor, conselheiro, pensador e operador do processo que a tal conduziu. A vertigem da financeirização económica que levou à desindustrialização não é responsabilidade dele, mas a sua continuidade por mais de 30 anos, tem a sua marca indelével. Nenhuma outra figura pública e política ocidental terá estado tão intrinsecamente ligada à distracção dos EUA, do que Biden.

O ainda presidente dos EUA, figura maior do Partido Democrata, o partido que, nos EUA, se diz próximo dos trabalhadores e do povo, ao longo da sua carreira política, viu a China, ainda nos anos 80 e um dos países mais pobres do mundo, passar a dominar 80% das minas de cobre, 85% da extracção das terras raras, 76% do cobalto da República Democrática do Congo, de onde são extraídos 70% deste importante mineral para a construção de baterias para veículos eléctricos. Durante todo este tempo, Biden deu voz e a cara pelo domínio do petróleo e do gás, pela globalização neoliberal que desindustrializou a américa e pela financeirização da economia que concentrou quase 30% da riqueza produzida nos 10% mais ricos.

Durante todo esse tempo, de nada valia a pena argumentar, porque a arrogância que guiou todas as guerras pelo petróleo, propriamente ditas ou não, foi a mesma arrogância que presumia que os Chineses, ou só copiavam o que era dos outros, ou, mais importante ainda, seriam vítimas do colapso da sua economia, pois nenhuma economia funcional poderia perdurar se não o fizer segundo os princípios neoliberais que Washington pratica e promove. Era só esperar. Ainda hoje, todos os dias durante mais de 30 anos, há quem anuncie o colapso iminente do sistema chinês.

Assim, por culpa exclusiva, agarrado com as calças na mão – como se costuma dizer -, o ocidente “liderado pelos EUA” acordou para a vida e, incapaz de aceitar um lugar no mundo em que se sinta igual aos restantes, optou por encetar toda uma estratégia de “contenção” e “contra-ataque” contra a influência “maligna” chinesa, russa, iraniana, coreana, cubana, venezuelana e de todos os que se lhe opõem frontalmente, desenrolando-se, em África, um dos mais importantes capítulos desse confronto.

Consequentemente, com a viagem para Angola, Biden tenta ainda deixar a sua marca enquanto o Presidente que tudo fez para contrariar a influência chinesa – e russa – em África e no mundo. Todos se recordam de Biden, aquando no início da sua presidência dizia “not on my watch” (não sob minha vigilância), a respeito de os EUA serem ultrapassados pela China enquanto nação mais poderosa. A verdade é que foi sob a sua vigilância (Presidência de Clinton, Obama e a sua própria) que a República Popular da China se tornou a maior potência industrial e comercial do mundo e, quando avaliada a sua economia em paridade de poder de compra, ao invés de se utilizar a moeda do inimigo, o colosso chinês já é, e por muito, a maior economia do mundo.

Angola assume, neste quadro, um importância vital para os EUA, uma vez que o corredor ferroviário do Lobito ligará o Porto do Lobito, na costa angolana do Oceano Atlântico, até a cidade de Luau, na fronteira nordeste de Angola com a RDC, de onde partem ligações que também garantem o acesso ao cinturão do Cobre na Zâmbia. Biden joga tudo aqui para contrariar a influência chinesa, prometendo uma alternativa ocidental à Belt and Road Initiative.

A comunicação social norte americana é quase unânime na assunção de que os benefícios provenientes do Corredor do Lobito cairão, sobretudo, para o lado dos EUA. Segundo a imprensa mainstream, Biden faz a sua ultima viagem para garantir que os EUA serão capazes de contrariar a influência chinesa na região.

O documento de apresenção do projecto, dá algumas pistas sobre os actores e o seu peso no projecto. Como não poderia deixar de ser, um projecto liderado pelos EUA, teria de ter uma estrutura neoliberal, ou seja, o estado paga, o privado come. Daí que a concessão tenha sido atribuída a um consórcio composto pela comerciante de matérias primas, a Trafigura (49,5%), sedeada em Singapura, os parceiros europeus Mota-Engil (49,5%) de Portugal e a Vecturis (1%) da Bélgica.

Imagem de marca do neoliberalismo, usou-se, uma vez mais, o esquema “Parceria Público Privada”, confirmando o caracter inescapável do que se constitui como o maior drama ocidental dos nossos temos: a incapacidade dos poderes envolvidos de conceberem um projecto que não represente um ciclo de acumulação para os grandes conglomerados privados. Doa por onde doer, no ocidente é assim: ou há dinheiro grátis – e muito – envolvido, ou não existe projecto. É assim em tudo, desde as infra-estruturas à investigação científica, ao armamento e energia. Tem sempre de haver muito lucro fácil, concentração de riqueza através de “suados” royalties. Riqueza que engorda a oligarquia mas não reentra, na economia, como investimento produtivo. Esse fica para os estados, para quem a oligarquia não paga impostos. Depois questionam-se do porquê de estarem a ficar para trás…

Em função de toda a bravata, muitos poderiam ser levados a acreditar que os EUA – através de Biden – teriam entrado com uma importante parcela de financiamento para o projecto. Os trabalhos de construção do corredor foram orçados, pelo Banco Africano de Desenvolvimento, em pelo menos 1.6 biliões de dólares (mais ou menos 1.5 biliões de Euros). Destes, o próprio BDA entrará com 500 milhões de dólares. A União Europeia entrará com 600 milhões de Euros (mais ou menos 700 milhões de dólares) o estado Angolano com 400 milhões de dólares e a Republica Democrática do Congo com outros 100 milhões.

Considerando que se pretendem construir ramais, ligações rodoviárias, explorar potencialidades ligadas ao agronegócio, telecomunicações e energias renováveis, o projecto poderá mesmo atingir os 3 Biliões de dólares, “mobilizados pelos EUA”, mas o que nunca se diz é que estes EUA apenas entraram com 2 milhões de dólares para um estudo de impacto social e ambiental.

Ou seja, os EUA assinaram vários memorandos de entendimento, nos quais também a EU foi parte, mas quem aparece como os grandes promotores e beneficiários do projecto são os norte americanos, usando, uma vez mais, a Europa e os bons serviços de Von Der Leyen e de António Costa, garantindo o acesso aos minerais de que necessitam, sem investirem o que quer que se veja. A Europa e África pagam, os EUA beneficiam, mesmo que em parte, quando, de acordo com o relatório Draghi, também são “competidores”. Logo, como pode a EU pagar para beneficiar os seus competidores?

Este processo trata-se, antes de tudo, de mais uma golpada que demonstra a forma, absolutamente inaceitável, como os EUA continuam a usar a União Europeia, como ponto de apoio, para a obtenção de resultados económicos que, de outra forma, dificilmente obteriam. Neste caso, de Angola, Portugal terá tido um papel importante para a aproximação das partes, uma vez que o maior parceiro comercial do estado Angolano é a China. No final, teremos, uma vez mais, o povo europeu, angolano, congolês e zambiano a pagar, para a oligarquia norte americana acumular.

Falta saber, considerando a história de Biden na Ucrânia e a sua apetência para o recebimento de luvas enquanto broker de negócios, o que estará por detrás da escolha das empresas, que surgem mais beneficiadas pelo projecto em questão. Todas empresas privadas, nenhuma americana, quase dando a impressão de que, existe uma tentativa para não fazer os distúrbios no local onde se vive.

Não obstante esta jogada de mestre, em que tal como o dólar, os EUA, a partir do ar, conseguem surgir como os principais beneficiários do Corredor do Lobito, este projecto é, por fim, mais um acto desesperado, por parte dos EUA e sobre o qual os três países africanos envolvidos parecem depositar grandes esperanças. Pelo menos aparentemente.

Uma das nuvens que paira sobre o projecto tem a ver com a parca dimensão das explorações mineiras sob controlo das partes. Aposta-se tudo no aumento previsto pela Agência Internacional de Energia, (AIE) que estimou que entre 2020 e 2040, a procura por níquel e cobalto aumentará em vinte vezes, por grafite em vinte e cinco vezes e por lítio em mais de quarenta vezes, o que alimentou o interesse no Corredor de Lobito. Contudo, tratam-se de previsões que contrastam com a dimensão das explorações desde já garantidas pelo ocidente, o que demonstra o desespero em marcar presença, nem que seja de forma minimalista.

A pequena escala da exploração coberta actualmente o Corredor do Lobito deixa, na sua maioria, muito a desejar e pouco contribui para encorajar investimentos além do que é minimamente necessário para escavar e transportar minerais para fora do país, para processamento. E esta é, talvez, outra das dimensões fantasiosas do projecto.

Se o Corredor do Lobito se resumir a explorar e retirar o minério para o ocidente, privando os países envolvidos do valor acrescentado ligado à refinação, a sua atracção em matéria de desenvolvimento será muito escassa, pois, como reconhece o próprio documento de apresentação do projecto, “investimentos mineiros em grande escala (…) estão associados a salários mais elevados, padrões ambientais e éticos mais rigorosos e melhor cumprimento fiscal. Os investimentos em grande escala são catalisadores do desenvolvimento económico.” Ou seja, faltará escala às explorações que utilizarão o corredor do Lobito, anunciando-se um potencial de desenvolvimento reduzido, caso o ocidente não opte por outra estratégia.

É o próprio Think Thank APRI (Africa Policy Research Institute) quem vem dizer que estratégia seria essa. Segundo o APRI, um dos desafios será o de que as partes podem dar escala ao projecto, investindo “na industrialização do continente africano em todos os níveis. Essa estratégia, de médio a longo prazo, deve passar por construir mercados futuros para seus iPhones, BMWs, etc.” Se não o fizerem, o Corredor do Lobito nunca atrairá grande interesse económico, dada as parcas quantidades de Matérias Primas Críticas que aí serão transportadas. O próprio “Acto Europeu Para as Matérias Primas Críticas” aponta para a criação de um sector “responsável”, nesta matéria.

Ora, considerando que, até aqui, é a China quem tem contribuído para o desenvolvimento de África, em troca de matérias primas, e que é essa característica “win-win” que tem constituído o seu modus operandi e principal vantagem, como demonstra a construção da primeira fase do Corredor, entre 2006 e 2014, em que, em troca de petróleo, a China investiu 2 biliões de dólares na renovação da via ferroviária então existente, o quão desesperados estão os EUA, que aqui usam o dinheiro dos outros, para que, desta feita, façam o que nunca fizeram, ou seja, deixar parte da mais valia no local de extração e prescindir dos futuros e derivados financeiros que a posse de toda a matéria prima garante – que por sinal é em pouca quantidade.

Esta simples possibilidade, na minha opinião, é maior contradição deste projeto e demonstra o desespero com que o ocidente, e os EUA, atuam. Ou estão a mentir e a prometer que farão o que não têm intenção de fazer, apenas para garantir algo que não têm em sua posse; ou estão tão desesperados que darão a África o que nunca deram. Aceitam-se apostas.

Vejamos, um projeto que surge como uma parceria publico privada feita para dar dinheiro a empresas sedeadas em Portugal, Singapura e na Bélgica, em que o maior beneficiário serão os EUA, que são os que menos investiram e que, tendo em conta a falta aguda de matérias primas críticas do ocidente e a falta de escala das explorações em sua posse, acreditar que será desta vez que se fará o que nunca foi feito… É como acreditar que os Russos combatem com pás ou que retiram os chips de máquinas de lavar, para os colocarem nos seus Kinzhal. Estarão os EUA no negócio do desenvolvimento alheio? Eu acredito que não e a história demonstra-o à saciedade.

Por fim, também a adicionar às causas do desespero, acresce que o desenvolvimento do Corredor de Lobito, fruto da arrogância, cegueira, opacidade decisória, irresponsabilidade, incompetência e pouca cientificidade na tomada de decisão, como em tudo o resto que tem a ver com o atraso do ocidente em muitas áreas (como sucede na militar em relação à Rússia), Biden tenta aqui, desesperadamente, contrariar uma realidade já consolidada e, diria mesmo, inevitável. É que é na Ásia que se encontra o polo de atracção de toda a cadeia de valor e abastecimento ligada à eletrificação e novas energias (principais tecnologias, fábricas, marcas e centros de investigação), para além de ai estar a maior parte da população mundial, os maiores mercados e a tecnologia de ponta. Logo, para onde se virarão estes países?

Bem sei que os EUA, e o Ocidente coletivo, se especializaram na culpa alheia e no negacionismo das evidências e da realidade, mas, no que diz respeito ao transporte de Matérias Primas Críticas, para a UE e os EUA, a maior parte do fornecimento já foi bloqueado pela própria China, que detém também as valências ligadas à transformação destes materiais. Além disso, para agravar, há uma rota proposta, mais curta em cerca de 500 km, para o leste entre Lubumbashi e Dar Es Salaam. Provavelmente será mais um prego no caixão da viabilidade do Corredor de Lobito, pois para agravar são os chineses quem assumirão a operação da linha ferroviária TAZARA.

Com a UE e os EUA para trás em termos de tecnologia de VE, é muito provável que a Republica Democrática do Congo e a Zâmbia acabem olhando para o Leste em busca de capacidade e capacitação de cadeias de valor de baterias para veículos elétricos. E das duas uma, ou a EU, e os EUA, portanto, têm capacidade para integrar a iniciativa do Corredor de Lobito numa abordagem mais holística, que envolva estes três países, como parceiros com vista ao estimulo do desenvolvimento industrial em toda a África, ou tudo não passará de um sonho, que acabará em pesadelo. O que me leva ao início: estamos, portanto, com muita dose de certeza, perante mais uma vertigem desesperada e alucinada de Biden e seus capangas.

Alguém já viu os EUA fazerem um negócio em que não ganhem almoços grátis?

O desespero levará os EUA à fraternidade internacionalista, ou à aceleração da rapina?

Fica ao vosso critério.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Do norte ao sul, de este a oeste, vão-se multiplicando jogadas desesperadas, a maioria falhando de forma dramática. O objetivo é muito claro: Joe Biden não pode abandonar a presidência sem um legado. Durante as campanhas eleitorais, o ainda presidente dos EUA, nada comedido, prometeu mundos e fundos, os quais, talvez por arrogância ou falta de aconselhamento adequado, julgou poder obter: a derrota estratégica da Federação Russa, no campo de batalha; o isolamento da Federação Russa no plano internacional; a contenção da República Popular da China e a sua submissão a Washington; o controlo e submissão do Irão; a protecção e segurança de Israel; a (re)industrialização dos EUA, etc…

Não faltaram os elogios, mas, de todos os conseguimentos de Joe Biden, apenas relevam aqueles que não poderia, directa e frontalmente, prometer: a destruição da economia Alemã e, à boleia, da economia da EU; a tomada do mercado europeu de GNL, através da destruição do NordStream; a tomada, por dentro, do complexo militar industrial dos países da EU; a desestabilização, e consequente instalação de regimes fantoche, num sem número de países conectados com os seus inimigos principais; a destruição e desestabilização das cadeias de abastecimento, como forma de atacar a confiança na capacidade industrial chinesa; o desacoplamento parcial, doa a quem doer, da economia ocidental em relação à economia chinesa; a destruição do sistema de comércio internacional e da confiança na arquitetura jurídico-institucional construída após a segunda guerra mundial. Estes objetivos foram satisfatoriamente conseguidos, diria. Mas nenhum salvará os EUA da perda da sua hegemonia e supremacia no plano internacional.

Prestes a abandonar o barco, sem apresentar qualquer resultado digno de figurar no pedestal de medidas capazes de contrariar a degradação do domínio hegemónico dos EUA, a saída de cena de Joe Biden é, em si mesma, uma imagem vívida da falência do que se convencionou apelidar de “democracia americana”. Um candidato, eleito pelas bases populares do partido democrata, após umas primárias em que não conheceu concorrentes à altura, foi mais tarde rejeitado e preterido pelas oligarquias doadoras do partido.

Depois do descalabro na Ucrânia, cada vez mais difícil de esconder, das tentativas falhadas de “revolução colorida” na Geórgia, Venezuela, Moçambique, Sérvia, relativamente às quais nem os maiores fanboys da NATO conseguem esconder o descalabro argumentativo que se seguiu à repetição, tão previsível como desesperada, da acusação de que as eleições são sempre falseadas quando não ganham os escolhidos do Olimpo da democracia que é o G7, foi agora a vez da Siria, país no qual a manobra arrojada de repetição da “primavera árabe”, concebida e operacionalizada com recurso a “movimentos rebeldes” que mais não são do que grupos terroristas e fundamentalistas Islâmicos que os EUA e Israel movimentam de um lado para o outro, consoante as necessidades (Uigures, mujahidines do Balochistão Iraniano, terroristas da Al-Nusra e muitos outros “moderados”).

Vendo-se confrontado com uma ameaça de destruição, Israel não pode conviver com um eixo da resistência que liga os povos xiitas do Irão ao Líbano, nem os EUA podem deixar cair Israel. Mas também esta manobra parece estar a gorar-se. Ao mesmo tempo, sem obter resultados práticos, os EUA deram a conhecer ao mundo que Erdogan, tão crítico de Israel, afinal, não passe de um troca tintas e que não pode ser confiável. Já a Ucrânia, uma vez mais, procurou na Síria, com o seu apoio à operação, obter vantagens – ameaçar o porto de águas quentes que a Federação Russa aí tem? – que não tem conseguido no campo de batalha, e de que necessita para uma qualquer negociação que possa acabar com a NATO às portas do Donbass. Algo que, como é óbvio, a Federação Russa nunca aceitará.

Mas desengane-se que as manobras desesperadas de Biden se cingem ao plano militar. O plano militar é apenas a forma mais brutal de garantir o objectivo principal: o domínio da economia mundial e a continuação da exploração das grandes fontes de riqueza mundial.

Neste quadro, a aposta na construção do corredor do Lobito em Angola é, acima de tudo, uma grande operação de propaganda para Joe Biden e Partido Democrata, bem como mais uma das suas medidas extemporâneas e desesperadas, como veremos. Biden vai a Angola; Biden negociou o Memorando de Entendimento; Biden vai criar uma alternativa ao domínio Chinês nos minerais críticos e terras raras; Biden é apresentado com o salvador da falência do próprio neoliberalismo ocidental.

Se Biden hoje se apresenta como um qualquer salvador da morte anunciada em que o ocidente se deixou cair, vítima das suas contradições e da incapacidade para as resolver, tal sucede porque, o mesmo Biden, foi actor, conselheiro, pensador e operador do processo que a tal conduziu. A vertigem da financeirização económica que levou à desindustrialização não é responsabilidade dele, mas a sua continuidade por mais de 30 anos, tem a sua marca indelével. Nenhuma outra figura pública e política ocidental terá estado tão intrinsecamente ligada à distracção dos EUA, do que Biden.

O ainda presidente dos EUA, figura maior do Partido Democrata, o partido que, nos EUA, se diz próximo dos trabalhadores e do povo, ao longo da sua carreira política, viu a China, ainda nos anos 80 e um dos países mais pobres do mundo, passar a dominar 80% das minas de cobre, 85% da extracção das terras raras, 76% do cobalto da República Democrática do Congo, de onde são extraídos 70% deste importante mineral para a construção de baterias para veículos eléctricos. Durante todo este tempo, Biden deu voz e a cara pelo domínio do petróleo e do gás, pela globalização neoliberal que desindustrializou a américa e pela financeirização da economia que concentrou quase 30% da riqueza produzida nos 10% mais ricos.

Durante todo esse tempo, de nada valia a pena argumentar, porque a arrogância que guiou todas as guerras pelo petróleo, propriamente ditas ou não, foi a mesma arrogância que presumia que os Chineses, ou só copiavam o que era dos outros, ou, mais importante ainda, seriam vítimas do colapso da sua economia, pois nenhuma economia funcional poderia perdurar se não o fizer segundo os princípios neoliberais que Washington pratica e promove. Era só esperar. Ainda hoje, todos os dias durante mais de 30 anos, há quem anuncie o colapso iminente do sistema chinês.

Assim, por culpa exclusiva, agarrado com as calças na mão – como se costuma dizer -, o ocidente “liderado pelos EUA” acordou para a vida e, incapaz de aceitar um lugar no mundo em que se sinta igual aos restantes, optou por encetar toda uma estratégia de “contenção” e “contra-ataque” contra a influência “maligna” chinesa, russa, iraniana, coreana, cubana, venezuelana e de todos os que se lhe opõem frontalmente, desenrolando-se, em África, um dos mais importantes capítulos desse confronto.

Consequentemente, com a viagem para Angola, Biden tenta ainda deixar a sua marca enquanto o Presidente que tudo fez para contrariar a influência chinesa – e russa – em África e no mundo. Todos se recordam de Biden, aquando no início da sua presidência dizia “not on my watch” (não sob minha vigilância), a respeito de os EUA serem ultrapassados pela China enquanto nação mais poderosa. A verdade é que foi sob a sua vigilância (Presidência de Clinton, Obama e a sua própria) que a República Popular da China se tornou a maior potência industrial e comercial do mundo e, quando avaliada a sua economia em paridade de poder de compra, ao invés de se utilizar a moeda do inimigo, o colosso chinês já é, e por muito, a maior economia do mundo.

Angola assume, neste quadro, um importância vital para os EUA, uma vez que o corredor ferroviário do Lobito ligará o Porto do Lobito, na costa angolana do Oceano Atlântico, até a cidade de Luau, na fronteira nordeste de Angola com a RDC, de onde partem ligações que também garantem o acesso ao cinturão do Cobre na Zâmbia. Biden joga tudo aqui para contrariar a influência chinesa, prometendo uma alternativa ocidental à Belt and Road Initiative.

A comunicação social norte americana é quase unânime na assunção de que os benefícios provenientes do Corredor do Lobito cairão, sobretudo, para o lado dos EUA. Segundo a imprensa mainstream, Biden faz a sua ultima viagem para garantir que os EUA serão capazes de contrariar a influência chinesa na região.

O documento de apresenção do projecto, dá algumas pistas sobre os actores e o seu peso no projecto. Como não poderia deixar de ser, um projecto liderado pelos EUA, teria de ter uma estrutura neoliberal, ou seja, o estado paga, o privado come. Daí que a concessão tenha sido atribuída a um consórcio composto pela comerciante de matérias primas, a Trafigura (49,5%), sedeada em Singapura, os parceiros europeus Mota-Engil (49,5%) de Portugal e a Vecturis (1%) da Bélgica.

Imagem de marca do neoliberalismo, usou-se, uma vez mais, o esquema “Parceria Público Privada”, confirmando o caracter inescapável do que se constitui como o maior drama ocidental dos nossos temos: a incapacidade dos poderes envolvidos de conceberem um projecto que não represente um ciclo de acumulação para os grandes conglomerados privados. Doa por onde doer, no ocidente é assim: ou há dinheiro grátis – e muito – envolvido, ou não existe projecto. É assim em tudo, desde as infra-estruturas à investigação científica, ao armamento e energia. Tem sempre de haver muito lucro fácil, concentração de riqueza através de “suados” royalties. Riqueza que engorda a oligarquia mas não reentra, na economia, como investimento produtivo. Esse fica para os estados, para quem a oligarquia não paga impostos. Depois questionam-se do porquê de estarem a ficar para trás…

Em função de toda a bravata, muitos poderiam ser levados a acreditar que os EUA – através de Biden – teriam entrado com uma importante parcela de financiamento para o projecto. Os trabalhos de construção do corredor foram orçados, pelo Banco Africano de Desenvolvimento, em pelo menos 1.6 biliões de dólares (mais ou menos 1.5 biliões de Euros). Destes, o próprio BDA entrará com 500 milhões de dólares. A União Europeia entrará com 600 milhões de Euros (mais ou menos 700 milhões de dólares) o estado Angolano com 400 milhões de dólares e a Republica Democrática do Congo com outros 100 milhões.

Considerando que se pretendem construir ramais, ligações rodoviárias, explorar potencialidades ligadas ao agronegócio, telecomunicações e energias renováveis, o projecto poderá mesmo atingir os 3 Biliões de dólares, “mobilizados pelos EUA”, mas o que nunca se diz é que estes EUA apenas entraram com 2 milhões de dólares para um estudo de impacto social e ambiental.

Ou seja, os EUA assinaram vários memorandos de entendimento, nos quais também a EU foi parte, mas quem aparece como os grandes promotores e beneficiários do projecto são os norte americanos, usando, uma vez mais, a Europa e os bons serviços de Von Der Leyen e de António Costa, garantindo o acesso aos minerais de que necessitam, sem investirem o que quer que se veja. A Europa e África pagam, os EUA beneficiam, mesmo que em parte, quando, de acordo com o relatório Draghi, também são “competidores”. Logo, como pode a EU pagar para beneficiar os seus competidores?

Este processo trata-se, antes de tudo, de mais uma golpada que demonstra a forma, absolutamente inaceitável, como os EUA continuam a usar a União Europeia, como ponto de apoio, para a obtenção de resultados económicos que, de outra forma, dificilmente obteriam. Neste caso, de Angola, Portugal terá tido um papel importante para a aproximação das partes, uma vez que o maior parceiro comercial do estado Angolano é a China. No final, teremos, uma vez mais, o povo europeu, angolano, congolês e zambiano a pagar, para a oligarquia norte americana acumular.

Falta saber, considerando a história de Biden na Ucrânia e a sua apetência para o recebimento de luvas enquanto broker de negócios, o que estará por detrás da escolha das empresas, que surgem mais beneficiadas pelo projecto em questão. Todas empresas privadas, nenhuma americana, quase dando a impressão de que, existe uma tentativa para não fazer os distúrbios no local onde se vive.

Não obstante esta jogada de mestre, em que tal como o dólar, os EUA, a partir do ar, conseguem surgir como os principais beneficiários do Corredor do Lobito, este projecto é, por fim, mais um acto desesperado, por parte dos EUA e sobre o qual os três países africanos envolvidos parecem depositar grandes esperanças. Pelo menos aparentemente.

Uma das nuvens que paira sobre o projecto tem a ver com a parca dimensão das explorações mineiras sob controlo das partes. Aposta-se tudo no aumento previsto pela Agência Internacional de Energia, (AIE) que estimou que entre 2020 e 2040, a procura por níquel e cobalto aumentará em vinte vezes, por grafite em vinte e cinco vezes e por lítio em mais de quarenta vezes, o que alimentou o interesse no Corredor de Lobito. Contudo, tratam-se de previsões que contrastam com a dimensão das explorações desde já garantidas pelo ocidente, o que demonstra o desespero em marcar presença, nem que seja de forma minimalista.

A pequena escala da exploração coberta actualmente o Corredor do Lobito deixa, na sua maioria, muito a desejar e pouco contribui para encorajar investimentos além do que é minimamente necessário para escavar e transportar minerais para fora do país, para processamento. E esta é, talvez, outra das dimensões fantasiosas do projecto.

Se o Corredor do Lobito se resumir a explorar e retirar o minério para o ocidente, privando os países envolvidos do valor acrescentado ligado à refinação, a sua atracção em matéria de desenvolvimento será muito escassa, pois, como reconhece o próprio documento de apresentação do projecto, “investimentos mineiros em grande escala (…) estão associados a salários mais elevados, padrões ambientais e éticos mais rigorosos e melhor cumprimento fiscal. Os investimentos em grande escala são catalisadores do desenvolvimento económico.” Ou seja, faltará escala às explorações que utilizarão o corredor do Lobito, anunciando-se um potencial de desenvolvimento reduzido, caso o ocidente não opte por outra estratégia.

É o próprio Think Thank APRI (Africa Policy Research Institute) quem vem dizer que estratégia seria essa. Segundo o APRI, um dos desafios será o de que as partes podem dar escala ao projecto, investindo “na industrialização do continente africano em todos os níveis. Essa estratégia, de médio a longo prazo, deve passar por construir mercados futuros para seus iPhones, BMWs, etc.” Se não o fizerem, o Corredor do Lobito nunca atrairá grande interesse económico, dada as parcas quantidades de Matérias Primas Críticas que aí serão transportadas. O próprio “Acto Europeu Para as Matérias Primas Críticas” aponta para a criação de um sector “responsável”, nesta matéria.

Ora, considerando que, até aqui, é a China quem tem contribuído para o desenvolvimento de África, em troca de matérias primas, e que é essa característica “win-win” que tem constituído o seu modus operandi e principal vantagem, como demonstra a construção da primeira fase do Corredor, entre 2006 e 2014, em que, em troca de petróleo, a China investiu 2 biliões de dólares na renovação da via ferroviária então existente, o quão desesperados estão os EUA, que aqui usam o dinheiro dos outros, para que, desta feita, façam o que nunca fizeram, ou seja, deixar parte da mais valia no local de extração e prescindir dos futuros e derivados financeiros que a posse de toda a matéria prima garante – que por sinal é em pouca quantidade.

Esta simples possibilidade, na minha opinião, é maior contradição deste projeto e demonstra o desespero com que o ocidente, e os EUA, atuam. Ou estão a mentir e a prometer que farão o que não têm intenção de fazer, apenas para garantir algo que não têm em sua posse; ou estão tão desesperados que darão a África o que nunca deram. Aceitam-se apostas.

Vejamos, um projeto que surge como uma parceria publico privada feita para dar dinheiro a empresas sedeadas em Portugal, Singapura e na Bélgica, em que o maior beneficiário serão os EUA, que são os que menos investiram e que, tendo em conta a falta aguda de matérias primas críticas do ocidente e a falta de escala das explorações em sua posse, acreditar que será desta vez que se fará o que nunca foi feito… É como acreditar que os Russos combatem com pás ou que retiram os chips de máquinas de lavar, para os colocarem nos seus Kinzhal. Estarão os EUA no negócio do desenvolvimento alheio? Eu acredito que não e a história demonstra-o à saciedade.

Por fim, também a adicionar às causas do desespero, acresce que o desenvolvimento do Corredor de Lobito, fruto da arrogância, cegueira, opacidade decisória, irresponsabilidade, incompetência e pouca cientificidade na tomada de decisão, como em tudo o resto que tem a ver com o atraso do ocidente em muitas áreas (como sucede na militar em relação à Rússia), Biden tenta aqui, desesperadamente, contrariar uma realidade já consolidada e, diria mesmo, inevitável. É que é na Ásia que se encontra o polo de atracção de toda a cadeia de valor e abastecimento ligada à eletrificação e novas energias (principais tecnologias, fábricas, marcas e centros de investigação), para além de ai estar a maior parte da população mundial, os maiores mercados e a tecnologia de ponta. Logo, para onde se virarão estes países?

Bem sei que os EUA, e o Ocidente coletivo, se especializaram na culpa alheia e no negacionismo das evidências e da realidade, mas, no que diz respeito ao transporte de Matérias Primas Críticas, para a UE e os EUA, a maior parte do fornecimento já foi bloqueado pela própria China, que detém também as valências ligadas à transformação destes materiais. Além disso, para agravar, há uma rota proposta, mais curta em cerca de 500 km, para o leste entre Lubumbashi e Dar Es Salaam. Provavelmente será mais um prego no caixão da viabilidade do Corredor de Lobito, pois para agravar são os chineses quem assumirão a operação da linha ferroviária TAZARA.

Com a UE e os EUA para trás em termos de tecnologia de VE, é muito provável que a Republica Democrática do Congo e a Zâmbia acabem olhando para o Leste em busca de capacidade e capacitação de cadeias de valor de baterias para veículos elétricos. E das duas uma, ou a EU, e os EUA, portanto, têm capacidade para integrar a iniciativa do Corredor de Lobito numa abordagem mais holística, que envolva estes três países, como parceiros com vista ao estimulo do desenvolvimento industrial em toda a África, ou tudo não passará de um sonho, que acabará em pesadelo. O que me leva ao início: estamos, portanto, com muita dose de certeza, perante mais uma vertigem desesperada e alucinada de Biden e seus capangas.

Alguém já viu os EUA fazerem um negócio em que não ganhem almoços grátis?

O desespero levará os EUA à fraternidade internacionalista, ou à aceleração da rapina?

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