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As últimas eleições europeias, realizadas no início de junho, resultaram em uma pequena mudança nas correlações de força no Parlamento Europeu, com o fortalecimento dos grupamentos políticos nacionalistas e conservadores (um avanço de aproximadamente 10 p.p. nas cadeiras ocupadas), e o recuo das forças políticas ligadas à esquerda liberal e ao ecoglobalismo. A direita liberal (a ala da Ursula van der Leyen), porém, manteve-se firmemente aferrada às estruturas do poder, permanecendo o principal grupo político representado no Parlamento Europeu.
Não são grandes mudanças à primeira vista, mas em uma Europa já dividida e abalada por causa das sanções russofóbicas, das pressões populares, e por uma miríade de crises não solucionadas e acumuladas ao longo dos últimos anos, pequenas mudanças eleitorais como essas podem ser as gotas que transbordam o copo.
Mas conforme a legislatura anterior é sucedida pela nova legislatura em julho desse ano, os temas pendentes deixados em suspenso pela anterior configuração do Parlamento Europeu cairão no colo da nova configuração. E para os habitantes da América do Sul é de particular interesse o Acordo UE-Mercosul.
O acordo de livre-comércio em questão, negociado desde 1999 e finalizado em 2019 prevê reduções de tarifas em uma via de mão dupla abarcando maquinário, produtos químicos e produtos farmacêuticos, especialmente no que concerne as exportações europeias para a América do Sul – e produtos agrícolas, especialmente no que concerne as exportações do Mercosul para a União Europeia.
Em abstrato, os defensores desse acordo afirmam que o mesmo aumentará os fluxos comerciais entre os países de ambos os blocos, bem como tornará os seus mercados “mais competitivos”. Mas apesar do entusiasmo dos apologistas, como já comentamos, após mais de 20 anos de negociações o acordo não foi ratificado por todos os países dos blocos.
E com a nova configuração do Parlamento Europeu é ainda menos provável que o acordo realmente saia do papel.
Nas duas pontas do diálogo havia uma série de objeções.
Tomando a perspectiva brasileira como ponto de partida, por exemplo, há muitos críticos, especialmente entre economistas de linha soberanista (como Paulo Nogueira Batista Jr., ex-vice-presidente do Banco dos BRICS), que apontam pontos sensíveis no Acordo UE-Mercosul que poderiam representar golpes profundos contra a economia do Brasil.
Segundo essa perspectiva, a abertura comercial dos países latino-americanos para empresas europeias dotadas de superioridade tecnológica, maior escala de produção, crédito mais fácil, subsídios estatais, etc., simplesmente colocaria as empresas sul-americanas em uma concorrência tão desfavorável que levaria, inevitavelmente, a uma aceleração da desindustrialização.
De fato, tampouco se poderia dizer que o acordo aumentaria investimentos europeus nos países sul-americanos. A realidade é que os investimentos produtivos que interessariam ao Brasil e aos outros países da região seriam aqueles que representassem a abertura de plantas industriais e a geração de empregos, mas o Acordo UE-Mercosul facilita tanto a importação de produtos europeus já acabados que, simplesmente, desincentiva o investimento. O efeito tende a ser o oposto do desejado.
Mesmo o agronegócio brasileiro, que em tese seria beneficiado pelo acordo, não está tão entusiasmado porque, para ele, as diferenças seriam pequenas, já que já existem certas cotas de importação em vigor. Assim, os setores entusiasmados com esse acordo acabam se limitando ao âmbito da finança. Mesmo as entidades supostamente representativas da indústria, que se pronunciaram a favor do acordo, devem ser lidas à luz do fato de que, hoje, elas não mais representam uma burguesia industrial clássica, e sim uma nova classe pós-burguesa ligada ao capitalismo acionário.
Se o agronegócio brasileiro já estava vacilante, apesar de razoavelmente interessado no acordo, a situação piorou com as miríades de protestos realizados no Brasil e no exterior por ONGs ambientalistas transnacionais, que acusavam a produção agropecuária brasileira de ser fruto de crimes ambientais, de baixa qualidade e portadora de certificações falsas.
Em contrapartida, os governos europeus começaram a pressionar pela inclusão de cláusulas de teor ambientalista, formalmente voltadas para garantir que as empresas europeias não adquiririam bens gerados a partir do desmatamento, mas na prática redundando em um desincentivo à produção agrícola brasileira, inclusive com mecanismos pautados por uma lógica de “pagar para não produzir”.
A realidade é que o Brasil já possui já possui algumas das regulamentações ambientais mais rigorosas do mundo, inclusive com a exigência de que agricultores da região amazônica deixem 80% da vegetação de suas terras intocada. Nesse sentido, a acumulação de exigências ambientais sobre exigências ambientais é vista como não sendo nada além de um artifício para prejudicar a produtividade da agropecuária brasileira – setor que, hoje, é aquele em que o Brasil (e outros países da região) mais se destaca, e de onde pretende tirar os recursos necessários para uma nova onda de industrialização.
Mas, de fato, se o Acordo UE-Mercosul já lidava com essas dificuldades, desentendimentos e tensões, hoje a sua assinatura é ainda mais improvável.
É que especificamente a classe agrária europeia, responsável por imensos movimentos de protesto entre o final de 2023 e o início de 2024, tinha entre suas pautas a não assinatura desse acordo, já que ela também sairia prejudicada dele. Esses movimentos de protesto foram um dos maiores fenômenos políticos europeus dos últimos anos e são, em um sentido mais geral, expressão de mudanças políticas importantes que se desdobram na União Europeia como consequência do conflito entre OTAN e Rússia, mas também dos próprios erros das elites liberais europeias em relação aos interesses de seus povos (especialmente no que concerne as migrações).
E essa é a chave para compreender o vínculo entre esse fenômeno e a reviravolta política nas eleições europeias.
É que tal como no caso do movimento dos Coletes Amarelos, específico da França, foram as forças nacional-populistas que, em escala europeia, melhor conseguiram incorporar os anseios e preocupações dos agricultores europeus – tanto por causa da sincronia de interesses no que concerne a política externa europeia, como pela própria tradicional dialética entre Capital e Interior, que contrapõe os interesses de elites cosmopolitas e de classes populares e médias provincianas.
Nesse sentido, com a insatisfação sul-americana e a necessidade europeia de agradar ao seu eleitorado, é mais improvável do que nunca que o Acordo seja efetivamente ratificado. Felizmente.