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Assistindo ao noticiário televisivo logo após as eleições do Parlamento Europeu, podemos concluir que Descartes deu mesmo uma boa explicação para o erro. O entendimento é limitado, porque nós não dispomos de ideias claras e distintas de tudo; mas a vontade é ilimitada, não se detém às coisas que estão dentro dos limites do entendimento. Assim a vontade dá passos muito mais largos que o entendimento e daí nasce o erro. Digo isso porque tenho muito ceticismo quanto à capacidade de tanta gente (entre jornalistas e tuiteiros) entender tudo, tintim por tintim, dos partidos de dezenas de países. Por outro lado, todo jornalista televisivo, a despeito do pouco estudo ou das precárias condições intelectuais, tem muita vontade de concluir que a democracia europeia liberal vai acabar porque os eleitores europeus votaram em partidos admitidos pela democracia liberal – e não fazem nenhuma acusação de fraude. Tudo isso porque, se um ator político é contrário à imigração irrestrita, trata-se automaticamente um neonazista, sem que precisemos nos inteirar dos programas e trajetórias de cada um, nem da conjuntura de cada país.
Obviamente, esse discurso só faz sentido dentro de uma concepção muito peculiar do que seja a democracia liberal, a saber: o regime político que só elege partidos ou candidatos aprovados pela CIA. Nessa história toda, a única coisa que me espanta é que tais partidos considerados extremistas não tenham sido extintos em nome da democracia, já que é comum aqui, no quintal dos EUA, usar o judiciário para tirar do páreo as lideranças populares. Como esse expediente começou a ser usado até dentro dos EUA (vide Trump), seria natural repeti-lo na Europa. Não creio que haja nenhuma vergonha dos fantoches da CIA em sair fechando partidos pela Europa, já que o establishment midiático ocidental estava promovendo como livro político sério uma obra intitulada “O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la”. O título não é irônico e o autor, Yascha Mounk, fica página após página lastimando os resultados eleitorais de outros países, como se o mundo inteiro tivesse a obrigação de votar num candidato do seu gosto.
Assim, o descontentamento da mídia ocidental com o resultado das eleições europeias de fato surpreende. Pensei em algumas explicações que não são mutuamente excludentes:
1) Longe de serem onipotentes, as elites dos EUA e da União Europeia estão tão alienadas que não conseguiram prever o crescimento dos seus inimigos;
2) O eleitorado europeu de fato escapou ao controle com a guerra econômica contra a Rússia, que jogou o custo de vida para as alturas (não precisamos nem entrar no mérito dos auxílios à Ucrânia para perceber que a guerra está sendo muito ruim para os europeus);
3) Boa parte da dita “extrema direita” é um produto feito sob medida para fantasiar de antissistema o receituário econômico mais radical do sistema. Numa palavra, é perfeitamente possível que haja um Milei para cada país na esfera de influência dos EUA.
Coisas complexas dificilmente têm uma única explicação; assim, creio que seja mais prudente explicar o crescimento da dita “extrema direita” na Europa por uma combinação dessas três. Não precisaremos dizer que nenhum dos atores condenados pelos “especialistas” televisivos presta, mas tampouco deveremos crer que a mera condenação pelos “especialistas” televisivos significa que tais atores de fato sejam antissistema. A essa altura do campeonato, a CIA já deve ter aprendido que suas campanhas midiáticas contra políticos populares têm o efeito reverso. Assim, Milei fica numa situação curiosa: embora toda a imprensa diga que ele é mau como um pica-pau, a cobertura (ou antes acobertamento) do seu governo é extremamente favorável. O truque é pegar dados fiscais e omitir dados sociais. Se as contas do governo Milei estão bem, então o governo Milei é maravilhoso, mesmo que o argentino esteja comendo menos carne e leite, e que o preço da energia tenha disparado.
Essa explicação precisa ser levada em conta, já que o próprio Milei reivindicou o sucesso eleitoral europeu como parte de um fenômeno por ele integrado, que seriam “as novas direitas”. Uma caricatura retuitada por ele colocava-o, junto com Trump e Wilders, contendo a onda do marxismo cultural. Ora, mas Trump com certeza não é igual a Milei, já que ele defende a proteção à indústria nacional e está longe de ser um ancap.
Aqui vamos à explicação número 1: as elites dos EUA e da OTAN não são onipotentes, e é normal querer demonstrar mais poder do que se tem. Assim, entre os ancaps reivindicarem as vitórias da dita “extrema direita” e as vitórias de toda a dita “extrema direita” serem dos ancaps, há uma boa distância. Quisera a CIA que Trump fosse igual a Milei!
E justamente pelo fato de as elites dos EUA e da União Europeia não serem infalíveis, é impossível que elas consigam controlar todo o eleitorado europeu e fazê-lo aceitar, de bom grado, a Agenda Verde, as sanções à Rússia e os auxílios à Ucrânia, além da imigração desenfreada. Que fazer diante dessa situação? Penso eu que, das duas, uma: ou bem empurrar o fusionismo como nova ideologia oficial e torcer para que o aceitem de bom grado, ou bem assumir o caráter autoritário e tecnocrático da democracia liberal da CIA.
O fusionismo é uma ideologia inventada nos EUA na década de 1950 por Frank Meyer e propagandeada, com o enganoso nome de “conservadorismo”, por William F. Buckley Jr. O fusionismo separa a economia da moral e funde a moral conservadora à economia liberal. Ninguém sabe como é possível um motorista de Uber ter um lar tradicional, com dona de casa e filhos, mas é muito bonito defender da boca para fora a família tradicional e, ao mesmo tempo, a desregulamentação do mercado. Pouca gente sabe hoje, mas o garoto propaganda do conservadorismo estadunidense, o ex-agente da CIA William F. Buckley Jr., era favorável à legalização das drogas, ao mesmo tempo que defendia que os conservadores não as usassem. Como o motorista de Uber e a diarista vão impedir que seus filhos usem drogas sem apoio do Estado, ninguém sabe.
O fusionismo é o wokismo de direita: considera que o Estado é um assunto para tecnocratas e que a política deve se limitar a discutir costumes. A sociedade deve discutir a moralidade do sexo anal enquanto aquilo que é propriamente legislativo deve ser tocado por “especialistas”.
É possível, porém, que o fusionismo não cole, já que nenhum político consegue viver por muito tempo à base de discussão de costumes. Ruindo a alternativa fusionista, restará ao liberalismo assumir a sua face autoritária e alegar que os europeus precisam ser tratados de um jeito ainda mais duro que os alemães em 1945. Afinal, só nazistas se recusariam a apoiar o regime de Kiev com seu batalhão Azov!
ERRATA:
No meu último artigo, baseei-me numa matéria elogiosa do jornal petista Brasil 247 para elencar Ricardo Lewandowski entre os judeus étnicos indicados ao STF pelo PT. Parece tratar-se de um erro do artigo, já que Lewandowsky, ao contrário do dito na matéria, é um sobrenome comum entre poloneses eslavos, e a mãe do ministro, uma suíça, era uma católica de sobrenome italiano.