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Bruna Frascolla
May 27, 2024
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

O debate acerca do tamanho do Estado costuma ser puxado pelos liberais. O Estado, diz-se, deve ser mínimo e eficiente, ao passo que o atual é gigante e inchado. Nenhum exemplo de Estado ideal é apontado no mundo; no máximo, fala-se da aposentadoria chilena. Mas sempre se diz que o Estado é grande demais e eficiente de menos, sem que haja no horizonte um exemplo tangível de Estado bem sucedido. São sempre americanófilos, claro, mas culpam Teddy Roosevelt ou “os esquerdistas” por todas as mazelas do Estado dos EUA. Uma vez que se elimine a esquerda e todos sejam de direita, os EUA serão o perfeito Estado democrático e liberal.

A obra Sobre a liberdade (1859), de John Stuart Mill, nos mostra como os termos da discussão estão mal postos. Após sua notória defesa da liberdade de expressão, feita a partir da ideia de que ela é um veículo necessário para o progresso, Mill rascunha, no capítulo “Aplicações”, instruções práticas para aqueles que quiserem implementar as suas ideias.

O tal do Estado mínimo aparece por lá na forma das limitações que ele deveria ter diante dos poderes da sociedade civil. Para Mill é temível, por exemplo, que o Estado contrate como burocratas os mais capacitados entre os seus cidadãos, pois isso privaria deles a sociedade civil e haveria o perigo de criar-se uma burocracia tão poderosa quanto a do czar. No entanto, o Estado de Mill deve regular uma coisa tão íntima e essencial quanto a reprodução humana.

Vale lermos a tresloucada passagem: “O próprio fato de trazer à existência um ser humano é uma das ações mais responsáveis no âmbito da vida humana. Assumir essa responsabilidade – conceder uma vida que pode ser uma maldição ou uma bênção – sem que o ser a quem a vida foi concedida tenha pelo menos as oportunidades normais para uma existência desejável é um crime contra esse ser. E, num país superpovoado ou sob ameaça de sê-lo, gerar crianças além de um número muito pequeno, com o efeito de reduzir a remuneração pelo trabalho por causa da competição, é séria afronta contra todos os que vivem da remuneração por seu trabalho. As leis que, em muitos países do continente, proíbem o matrimônio a menos que as partes possam demonstrar que têm os meios de sustentar sua família não excedem os poderes legítimos do Estado: e, sejam tais leis convenientes ou não […], não são objetáveis como violações da liberdade.”

Ou seja, o Estado não deve ser “grande” o bastante para ter empresas públicas, mas deve ser “grande” o bastante para tomar conta, no nível individual, dos assim chamados “direitos reprodutivos” de seus cidadãos – termo cunhado nessa nossa era milliana. O Estado existir para promover ativamente o bem ao cidadão é ser “inchado”; já o Estado se abster de definir o que é o bem e existir tolher o cidadão é ser “eficiente”. O Estado pode não definir diretamente o que é o bem, mas define que tal ou tal coisa é má – como, por exemplo, nascer, quando se é pobre. E mais: pode até criminalizar a reprodução dos pobres, já que ter filhos é entendido como crime contra esses mesmos filhos.

Mill escreveu isso quando não existia nem a pílula, quanto menos o divórcio e o ultrassom. Por isso, não é de admirar que sua argumentação exclua a questão do aborto. No entanto, ele introduz aí estranha ideia de pensar num ser humano como uma variável, em vez de um ente real. Tal ideia viria a ser usada a torto e a direito por utilitaristas do final do século XX (como Peter Singer na sua Ética Prática) para defender aborto de fetos defeituosos e até infanticídio. Já no começo do século XXI, o economista Steven Levitt defenderia, em seu Freakonomics que o aborto de pobres é um meio legítimo de reduzir a violência.

Mill começou a pensar nas crianças como um número a ser sustentado pela sociedade; Singer segue a linha, e pensa-as também como números a serem sustentados pelos pais. Em ambos os casos, mascaram o seu calculismo como compaixão, dizendo que não desejam para “as crianças” (que não existem) que elas nasçam em más condições. O fato é que, se um filho de pobre ou um feto deficiente for abortado, ninguém está sendo salvo da pobreza ou da doença; ao contrário, um pobre e um deficiente estão sendo preventivamente mortos no ventre – ou, no caso de Mill, os pobres estão sendo impedidos de constituir família, devendo viver somente para o trabalho.

É claro que um fator que leva os empregados a exercerem pressão sobre o patrão é o número de bocas a alimentar – sobretudo na época em que havia muitas bocas e as mulheres não eram educadas para trabalhar fora. No entanto, Mill também finge que pensa no bem do trabalhador: o mecanismo apresentado por ele para aumentar os salários é diminuir a quantidade de trabalhadores por meio da redução da natalidade (embora também se possa, raciocinando assim, mandar parte dos trabalhadores para uma câmara de gás). Seria a lei da oferta e da procura, e os liberais de hoje não tardariam em aceitá-la como Voz da Ciência, sem cogitar que talvez os empregadores – ainda mais na época de Mill! – possam pagar salários de fome por ganância, retendo grandes lucros. O liberalismo de Mill, tão exaltado pelos liberais até hoje, não passa de um mecanismo de controle social por meio de um Estado que atende aos interesses dos donos do capital.

E, no século XXI, Mill é o grande vitorioso cultural. Tornou-se lugar comum expressar o receio de colocar filhos “neste mundo”. A esquerda, que recusa o liberalismo só da boca para fora, exalta como libertação feminina o fim do lar prolífico sustentado com apenas um salário. Em vez de aumentar o salário com a redução da taxa de natalidade da classe operária, o que o liberalismo conseguiu, auxiliadíssimo pelo feminismo, foi abaixar os salários com o aumento da oferta da mão de obra, via ingresso compulsório das mulheres no mercado de trabalho. Antes da propaganda liberal, era normal um salário bancar um lar; depois do sucesso da propaganda liberal, os homens e as mulheres estão solitários, endividados e sem conseguir quitar uma moradia própria – achando, por isso, que seus filhos não merecem nascer. Mas estão muito “libertos”, porque podem fazer todo tipo de sexo e usar todo tipo drogas, ou comprar todo tipo de entretenimento.

Obviamente, essa moralidade era rechaçada pelos nossos antepassados. Para isso, foi preciso combater a “tirania da opinião”, tarefa na qual Mill obteve mais um sucesso. Em Sobre a liberdade, ele é bem claro quanto à necessidade de impedir que as massas ditem a moralidade por meio da opinião, mesmo prescindindo do Estado: “a proteção contra a tirania do magistrado não é suficiente; também é preciso proteção contra a tirania da opinião e do sentimento prevalente”, diz ele no capítulo Introdutório. O Estado de Mill é contramajoritário e deve proteger direito à propaganda de quaisquer ideias abjetas. Deve, portanto, tolher os impulsos morais do povo.

Assim, foi grande a vitória do liberalismo milliano na Alemanha neste maio de 2024, quando, após pressão de um grupo ativista pró-pedofilia chamado Krumme-13, o parlamento aprovou que a posse de pornografia infantil passasse a ser punida com pena mínima, transformando-se, deste modo, em algo análogo à nossa contravenção, em vez de crime. Com sorte, a mão do Estado ainda passará uma lei para proteger os pedófilos de preconceito – e tudo isso em nome do bem comum, já que assim os pais que não puderem arcar com os custos da criação dos filhos poderão vendê-los a quem os alimente.

O Estado repressor e eugenista do liberal John Stuart Mill

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

O debate acerca do tamanho do Estado costuma ser puxado pelos liberais. O Estado, diz-se, deve ser mínimo e eficiente, ao passo que o atual é gigante e inchado. Nenhum exemplo de Estado ideal é apontado no mundo; no máximo, fala-se da aposentadoria chilena. Mas sempre se diz que o Estado é grande demais e eficiente de menos, sem que haja no horizonte um exemplo tangível de Estado bem sucedido. São sempre americanófilos, claro, mas culpam Teddy Roosevelt ou “os esquerdistas” por todas as mazelas do Estado dos EUA. Uma vez que se elimine a esquerda e todos sejam de direita, os EUA serão o perfeito Estado democrático e liberal.

A obra Sobre a liberdade (1859), de John Stuart Mill, nos mostra como os termos da discussão estão mal postos. Após sua notória defesa da liberdade de expressão, feita a partir da ideia de que ela é um veículo necessário para o progresso, Mill rascunha, no capítulo “Aplicações”, instruções práticas para aqueles que quiserem implementar as suas ideias.

O tal do Estado mínimo aparece por lá na forma das limitações que ele deveria ter diante dos poderes da sociedade civil. Para Mill é temível, por exemplo, que o Estado contrate como burocratas os mais capacitados entre os seus cidadãos, pois isso privaria deles a sociedade civil e haveria o perigo de criar-se uma burocracia tão poderosa quanto a do czar. No entanto, o Estado de Mill deve regular uma coisa tão íntima e essencial quanto a reprodução humana.

Vale lermos a tresloucada passagem: “O próprio fato de trazer à existência um ser humano é uma das ações mais responsáveis no âmbito da vida humana. Assumir essa responsabilidade – conceder uma vida que pode ser uma maldição ou uma bênção – sem que o ser a quem a vida foi concedida tenha pelo menos as oportunidades normais para uma existência desejável é um crime contra esse ser. E, num país superpovoado ou sob ameaça de sê-lo, gerar crianças além de um número muito pequeno, com o efeito de reduzir a remuneração pelo trabalho por causa da competição, é séria afronta contra todos os que vivem da remuneração por seu trabalho. As leis que, em muitos países do continente, proíbem o matrimônio a menos que as partes possam demonstrar que têm os meios de sustentar sua família não excedem os poderes legítimos do Estado: e, sejam tais leis convenientes ou não […], não são objetáveis como violações da liberdade.”

Ou seja, o Estado não deve ser “grande” o bastante para ter empresas públicas, mas deve ser “grande” o bastante para tomar conta, no nível individual, dos assim chamados “direitos reprodutivos” de seus cidadãos – termo cunhado nessa nossa era milliana. O Estado existir para promover ativamente o bem ao cidadão é ser “inchado”; já o Estado se abster de definir o que é o bem e existir tolher o cidadão é ser “eficiente”. O Estado pode não definir diretamente o que é o bem, mas define que tal ou tal coisa é má – como, por exemplo, nascer, quando se é pobre. E mais: pode até criminalizar a reprodução dos pobres, já que ter filhos é entendido como crime contra esses mesmos filhos.

Mill escreveu isso quando não existia nem a pílula, quanto menos o divórcio e o ultrassom. Por isso, não é de admirar que sua argumentação exclua a questão do aborto. No entanto, ele introduz aí estranha ideia de pensar num ser humano como uma variável, em vez de um ente real. Tal ideia viria a ser usada a torto e a direito por utilitaristas do final do século XX (como Peter Singer na sua Ética Prática) para defender aborto de fetos defeituosos e até infanticídio. Já no começo do século XXI, o economista Steven Levitt defenderia, em seu Freakonomics que o aborto de pobres é um meio legítimo de reduzir a violência.

Mill começou a pensar nas crianças como um número a ser sustentado pela sociedade; Singer segue a linha, e pensa-as também como números a serem sustentados pelos pais. Em ambos os casos, mascaram o seu calculismo como compaixão, dizendo que não desejam para “as crianças” (que não existem) que elas nasçam em más condições. O fato é que, se um filho de pobre ou um feto deficiente for abortado, ninguém está sendo salvo da pobreza ou da doença; ao contrário, um pobre e um deficiente estão sendo preventivamente mortos no ventre – ou, no caso de Mill, os pobres estão sendo impedidos de constituir família, devendo viver somente para o trabalho.

É claro que um fator que leva os empregados a exercerem pressão sobre o patrão é o número de bocas a alimentar – sobretudo na época em que havia muitas bocas e as mulheres não eram educadas para trabalhar fora. No entanto, Mill também finge que pensa no bem do trabalhador: o mecanismo apresentado por ele para aumentar os salários é diminuir a quantidade de trabalhadores por meio da redução da natalidade (embora também se possa, raciocinando assim, mandar parte dos trabalhadores para uma câmara de gás). Seria a lei da oferta e da procura, e os liberais de hoje não tardariam em aceitá-la como Voz da Ciência, sem cogitar que talvez os empregadores – ainda mais na época de Mill! – possam pagar salários de fome por ganância, retendo grandes lucros. O liberalismo de Mill, tão exaltado pelos liberais até hoje, não passa de um mecanismo de controle social por meio de um Estado que atende aos interesses dos donos do capital.

E, no século XXI, Mill é o grande vitorioso cultural. Tornou-se lugar comum expressar o receio de colocar filhos “neste mundo”. A esquerda, que recusa o liberalismo só da boca para fora, exalta como libertação feminina o fim do lar prolífico sustentado com apenas um salário. Em vez de aumentar o salário com a redução da taxa de natalidade da classe operária, o que o liberalismo conseguiu, auxiliadíssimo pelo feminismo, foi abaixar os salários com o aumento da oferta da mão de obra, via ingresso compulsório das mulheres no mercado de trabalho. Antes da propaganda liberal, era normal um salário bancar um lar; depois do sucesso da propaganda liberal, os homens e as mulheres estão solitários, endividados e sem conseguir quitar uma moradia própria – achando, por isso, que seus filhos não merecem nascer. Mas estão muito “libertos”, porque podem fazer todo tipo de sexo e usar todo tipo drogas, ou comprar todo tipo de entretenimento.

Obviamente, essa moralidade era rechaçada pelos nossos antepassados. Para isso, foi preciso combater a “tirania da opinião”, tarefa na qual Mill obteve mais um sucesso. Em Sobre a liberdade, ele é bem claro quanto à necessidade de impedir que as massas ditem a moralidade por meio da opinião, mesmo prescindindo do Estado: “a proteção contra a tirania do magistrado não é suficiente; também é preciso proteção contra a tirania da opinião e do sentimento prevalente”, diz ele no capítulo Introdutório. O Estado de Mill é contramajoritário e deve proteger direito à propaganda de quaisquer ideias abjetas. Deve, portanto, tolher os impulsos morais do povo.

Assim, foi grande a vitória do liberalismo milliano na Alemanha neste maio de 2024, quando, após pressão de um grupo ativista pró-pedofilia chamado Krumme-13, o parlamento aprovou que a posse de pornografia infantil passasse a ser punida com pena mínima, transformando-se, deste modo, em algo análogo à nossa contravenção, em vez de crime. Com sorte, a mão do Estado ainda passará uma lei para proteger os pedófilos de preconceito – e tudo isso em nome do bem comum, já que assim os pais que não puderem arcar com os custos da criação dos filhos poderão vendê-los a quem os alimente.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

O debate acerca do tamanho do Estado costuma ser puxado pelos liberais. O Estado, diz-se, deve ser mínimo e eficiente, ao passo que o atual é gigante e inchado. Nenhum exemplo de Estado ideal é apontado no mundo; no máximo, fala-se da aposentadoria chilena. Mas sempre se diz que o Estado é grande demais e eficiente de menos, sem que haja no horizonte um exemplo tangível de Estado bem sucedido. São sempre americanófilos, claro, mas culpam Teddy Roosevelt ou “os esquerdistas” por todas as mazelas do Estado dos EUA. Uma vez que se elimine a esquerda e todos sejam de direita, os EUA serão o perfeito Estado democrático e liberal.

A obra Sobre a liberdade (1859), de John Stuart Mill, nos mostra como os termos da discussão estão mal postos. Após sua notória defesa da liberdade de expressão, feita a partir da ideia de que ela é um veículo necessário para o progresso, Mill rascunha, no capítulo “Aplicações”, instruções práticas para aqueles que quiserem implementar as suas ideias.

O tal do Estado mínimo aparece por lá na forma das limitações que ele deveria ter diante dos poderes da sociedade civil. Para Mill é temível, por exemplo, que o Estado contrate como burocratas os mais capacitados entre os seus cidadãos, pois isso privaria deles a sociedade civil e haveria o perigo de criar-se uma burocracia tão poderosa quanto a do czar. No entanto, o Estado de Mill deve regular uma coisa tão íntima e essencial quanto a reprodução humana.

Vale lermos a tresloucada passagem: “O próprio fato de trazer à existência um ser humano é uma das ações mais responsáveis no âmbito da vida humana. Assumir essa responsabilidade – conceder uma vida que pode ser uma maldição ou uma bênção – sem que o ser a quem a vida foi concedida tenha pelo menos as oportunidades normais para uma existência desejável é um crime contra esse ser. E, num país superpovoado ou sob ameaça de sê-lo, gerar crianças além de um número muito pequeno, com o efeito de reduzir a remuneração pelo trabalho por causa da competição, é séria afronta contra todos os que vivem da remuneração por seu trabalho. As leis que, em muitos países do continente, proíbem o matrimônio a menos que as partes possam demonstrar que têm os meios de sustentar sua família não excedem os poderes legítimos do Estado: e, sejam tais leis convenientes ou não […], não são objetáveis como violações da liberdade.”

Ou seja, o Estado não deve ser “grande” o bastante para ter empresas públicas, mas deve ser “grande” o bastante para tomar conta, no nível individual, dos assim chamados “direitos reprodutivos” de seus cidadãos – termo cunhado nessa nossa era milliana. O Estado existir para promover ativamente o bem ao cidadão é ser “inchado”; já o Estado se abster de definir o que é o bem e existir tolher o cidadão é ser “eficiente”. O Estado pode não definir diretamente o que é o bem, mas define que tal ou tal coisa é má – como, por exemplo, nascer, quando se é pobre. E mais: pode até criminalizar a reprodução dos pobres, já que ter filhos é entendido como crime contra esses mesmos filhos.

Mill escreveu isso quando não existia nem a pílula, quanto menos o divórcio e o ultrassom. Por isso, não é de admirar que sua argumentação exclua a questão do aborto. No entanto, ele introduz aí estranha ideia de pensar num ser humano como uma variável, em vez de um ente real. Tal ideia viria a ser usada a torto e a direito por utilitaristas do final do século XX (como Peter Singer na sua Ética Prática) para defender aborto de fetos defeituosos e até infanticídio. Já no começo do século XXI, o economista Steven Levitt defenderia, em seu Freakonomics que o aborto de pobres é um meio legítimo de reduzir a violência.

Mill começou a pensar nas crianças como um número a ser sustentado pela sociedade; Singer segue a linha, e pensa-as também como números a serem sustentados pelos pais. Em ambos os casos, mascaram o seu calculismo como compaixão, dizendo que não desejam para “as crianças” (que não existem) que elas nasçam em más condições. O fato é que, se um filho de pobre ou um feto deficiente for abortado, ninguém está sendo salvo da pobreza ou da doença; ao contrário, um pobre e um deficiente estão sendo preventivamente mortos no ventre – ou, no caso de Mill, os pobres estão sendo impedidos de constituir família, devendo viver somente para o trabalho.

É claro que um fator que leva os empregados a exercerem pressão sobre o patrão é o número de bocas a alimentar – sobretudo na época em que havia muitas bocas e as mulheres não eram educadas para trabalhar fora. No entanto, Mill também finge que pensa no bem do trabalhador: o mecanismo apresentado por ele para aumentar os salários é diminuir a quantidade de trabalhadores por meio da redução da natalidade (embora também se possa, raciocinando assim, mandar parte dos trabalhadores para uma câmara de gás). Seria a lei da oferta e da procura, e os liberais de hoje não tardariam em aceitá-la como Voz da Ciência, sem cogitar que talvez os empregadores – ainda mais na época de Mill! – possam pagar salários de fome por ganância, retendo grandes lucros. O liberalismo de Mill, tão exaltado pelos liberais até hoje, não passa de um mecanismo de controle social por meio de um Estado que atende aos interesses dos donos do capital.

E, no século XXI, Mill é o grande vitorioso cultural. Tornou-se lugar comum expressar o receio de colocar filhos “neste mundo”. A esquerda, que recusa o liberalismo só da boca para fora, exalta como libertação feminina o fim do lar prolífico sustentado com apenas um salário. Em vez de aumentar o salário com a redução da taxa de natalidade da classe operária, o que o liberalismo conseguiu, auxiliadíssimo pelo feminismo, foi abaixar os salários com o aumento da oferta da mão de obra, via ingresso compulsório das mulheres no mercado de trabalho. Antes da propaganda liberal, era normal um salário bancar um lar; depois do sucesso da propaganda liberal, os homens e as mulheres estão solitários, endividados e sem conseguir quitar uma moradia própria – achando, por isso, que seus filhos não merecem nascer. Mas estão muito “libertos”, porque podem fazer todo tipo de sexo e usar todo tipo drogas, ou comprar todo tipo de entretenimento.

Obviamente, essa moralidade era rechaçada pelos nossos antepassados. Para isso, foi preciso combater a “tirania da opinião”, tarefa na qual Mill obteve mais um sucesso. Em Sobre a liberdade, ele é bem claro quanto à necessidade de impedir que as massas ditem a moralidade por meio da opinião, mesmo prescindindo do Estado: “a proteção contra a tirania do magistrado não é suficiente; também é preciso proteção contra a tirania da opinião e do sentimento prevalente”, diz ele no capítulo Introdutório. O Estado de Mill é contramajoritário e deve proteger direito à propaganda de quaisquer ideias abjetas. Deve, portanto, tolher os impulsos morais do povo.

Assim, foi grande a vitória do liberalismo milliano na Alemanha neste maio de 2024, quando, após pressão de um grupo ativista pró-pedofilia chamado Krumme-13, o parlamento aprovou que a posse de pornografia infantil passasse a ser punida com pena mínima, transformando-se, deste modo, em algo análogo à nossa contravenção, em vez de crime. Com sorte, a mão do Estado ainda passará uma lei para proteger os pedófilos de preconceito – e tudo isso em nome do bem comum, já que assim os pais que não puderem arcar com os custos da criação dos filhos poderão vendê-los a quem os alimente.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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