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Eduardo Vasco
February 13, 2024
© Photo: Public domain

O que Putin está fazendo é combater a violação da autodeterminação da Rússia. Ao empurrar a OTAN para fora da Ucrânia, objetivamente ele também atua pela liberdade da Ucrânia, escravizada pelas potências imperialistas.

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Este artigo não tem por objetivo definir o que são as nacionalidades e as nações, mas sim discutir uma política pragmática que resolva (ao menos a curto e médio prazo) a questão da autodeterminação dos ucranianos, com base nas ideias de Lênin e na prática do Estado soviético e russo atual.

Trata-se, aqui, de uma pequena polêmica que será desenvolvida com o texto “Ucrania, creación de Lenin”, publicado originalmente por Pedro Fernández Barbadillo no portal “Libertad Digital” e reproduzido na Strategic Culture Foundation.

A autodeterminação no Império Russo

Durante a vigência do Império Russo, o povo que vivia na região então chamada de “Pequena Rússia” (Ucrânia) era oprimido pelo governo imperial russo, assim como a maioria da população do império, formada por nacionalidades carentes de todos os tipos de direitos.

A Rússia observou o surgimento de um movimento nacionalista a partir de meados do século XIX, na esteira da “Primavera dos Povos” de 1848, quando tanto as massas populares das grandes nações europeias, como também os povos de nacionalidades colonizadas e oprimidas por essas (dentro da Europa) se rebelaram contra a monarquia e a aristocracia.

O Império Russo era o mais reacionário e atrasado de toda a Europa e encabeçava a contrarrevolução. Não lhe interessava nenhuma mudança significativa, nem mesmo nas outras potências europeias, pois sabia que isso influenciaria mudanças políticas no seu próprio território. Por isso apoiou a repressão contra os húngaros pela Áustria, por exemplo, bem como reprimiu os poloneses. A agitação nacionalista atravessava a Europa Central e Oriental e até mesmo a I Guerra Mundial teve como estopim uma ação nacionalista (o assassinato do rei austríaco pelos sérvios), embora fosse uma guerra imperialista.

Assim, assusta ler, no artigo acima citado, que só existiam movimentos nacionalistas na Polônia, Irlanda, países bálticos e Arábia e que, só depois de Brest-Litovski e a queda dos Habsburgo, em 1918, eles se estenderam pela Europa Oriental!

O nacionalismo era um sentimento natural diante da opressão sofrida pelos impérios moribundos. Sua essência é a mesma que a do grande movimento de libertação nacional ocorrido na Ásia e na África na metade do século XX.

Para Lênin e os bolcheviques, herdeiros das teses de Marx e Engels e, como marxistas, das ideias iluministas que guiaram a luta pela independência até então, era uma obrigação reconhecer e dar suporte àqueles que desejavam a independência perante um Estado opressor. Essa independência não estava em contradição com a ideia suprema dos marxistas, a união dos proletários de todo o mundo. Escreveu Lênin em junho de 1917:

“Somente o reconhecimento deste direito torna possível advogar a livre união dos ucranianos e grão-russos, uma voluntária associação de dois povos num só Estado”

Lênin e os bolcheviques, apesar de buscarem – e conseguirem – tomar o poder dentro da Rússia, não respondiam absolutamente por nenhuma política levada a cabo pelo czarismo. O uso que fariam do Estado russo seria o inverso do que havia sido feito pela monarquia: o Estado dos sovietes era o Estado da liberdade, não da opressão.

Quem estuda geopolítica sabe muito bem que o uso do “soft power” é muito mais desejável que o uso do “hard power” para qualquer nação. Os Estados Unidos, por exemplo, sabem que a opressão sobre os povos do mundo todo é desgastante, impopular e instável. Ainda mais se ela for aberta e evidente. Por isso falam em levar a democracia e a liberdade, ainda que na prática a opressão econômica sobre os países “independentes” seja tão escravizadora quanto a opressão militar. Quem quer viver esmagado por uma opressão como essa? Absolutamente ninguém!

Isto é, analisando estritamente do ponto de vista pragmático e não ideológico, é mais desejável para uma superpotência dominar pelo consentimento do que pela coerção. Daí que, mesmo para as viúvas do czarismo, seria negativa uma dominação territorial da Ucrânia e de outras nações vizinhas.

Por outro lado, a realidade também se impunha. Os bolcheviques haviam herdado um país em ruínas, destruído por obra do próprio regime czarista. Pedro Fernández Barbadillo pensa que a Revolução Russa – a qual ele chama de “golpe de Estado” – foi um raio em céu azul, executada por “um punhado de agitadores bolcheviques” enviados pelo II Reich para enfraquecer a Rússia e entregá-la à Alemanha. Essa é a mesma ladainha promovida pelos ressentidos de 1917.

A verdade é que o Império Russo caiu de podre. Não conseguia mais competir com os imperialistas. A derrota humilhante para o Japão em 1905 foi prova disso. A situação do exército russo no início de 1917 não deixa dúvida nenhuma. Se os bolcheviques não tivessem tomado o poder, possivelmente a Rússia não teria se tornado a potência soviética, derrotada somente sete décadas depois, mas com certeza os trabalhadores teriam, ainda assim, derrotado a monarquia definitivamente e levado a civilização ao povo russo. Foi uma necessidade histórica, não um golpe de sorte. O enorme movimento popular, camponês e operário teria tomado conta do país de uma forma ou de outra, pois a miséria, a fome, a falta de terra para cultivar e as mortes em massa não tinham como ser toleradas por mais tempo. E mais: aqueles mesmos que acusavam os bolcheviques de estarem a serviço da Alemanha aliaram-se às potências estrangeiras, que invadiram a Rússia, para combater os seus compatriotas. Realmente, eles tinham um grande amor por sua pátria!

A potência soviética, prova do acerto de Lênin

O cerco por 14 exércitos invasores e a destruição econômica e material causada pela administração desastrosa do czar – em todos os sentidos possíveis – apontava uma situação de total desvantagem para os bolcheviques. De fato, muitos, entre os próprios dirigentes do novo regime, não acreditavam que o Estado soviético sairia vitorioso. Todos os jornais ocidentais garantiam que o poder soviético cairia em questão de semanas. A continuação da participação russa na guerra mundial significaria a derrota iminente da Rússia. Lênin percebeu que a única solução viável para a paz dentro da Rússia e a chance de reconstruir o país seria fazer concessões às potências imperialistas.

Sun Tzu já ensinava, há 2.500 anos, que, se o inimigo é superior a você, evite-o. Ainda mais se forem 14 exércitos! É preciso saber quando lutar e quando não lutar. No caso específico da Ucrânia à época da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, eram cinco exércitos de 100.000 homens cada, que ocupavam parte da Ucrânia, e o exército enfraquecido da Rússia não tinha condições de socorrer o exército enfraquecido das forças soviéticas da Ucrânia.

Finalmente, após o Tratado, que o próprio Lênin nunca escondeu que foi humilhante para a Rússia, mas que era a única opção viável, e diante da derrota da Alemanha na I Guerra, em meio à Guerra Civil Russa o Exército Vermelho atacou os contrarrevolucionários aliados aos invasores na Ucrânia. O comandante do Exército Vermelho, Leon Trotsky, exortou assim os soldados vermelhos:

“Mantenham isto firme em suas mentes: sua tarefa não é conquistar a Ucrânia, mas libertá-la. Quando os bandos de Denikin tiverem sido finalmente esmagados, o povo trabalhador da Ucrânia livre vai decidir por conta própria sobre quais termos ele vai viver com a Rússia Soviética. Estamos todos seguros, e nós sabemos, que o povo trabalhador da Ucrânia vai optar pela mais estreita união fraterna conosco.”

O Exército Vermelho derrotou as tropas contrarrevolucionárias e invasoras. A Ucrânia passou ao controle do seu próprio povo, os trabalhadores ucranianos, em união voluntária e fraternal com os russos. Essa união foi ratificada e formalizada em 30 de dezembro de 1922, quando Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia formaram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Foi a comprovação do acerto da política de Lênin a respeito do direito à autodeterminação dos povos. Ele previu, ainda em 1915, que somente a luta pela autodeterminação e a união voluntária entre os povos viabilizaria a formação de um Estado multinacional forte e a caminho do progresso:

“A defesa desse direito, longe de fomentar a criação de pequenos Estados, leva, pelo contrário, à formação mais livre, mais audaz e, portanto, mais ampla e extensa de grandes Estados e de federações de Estados, mais benéficas para as massas e mais em consonância com o desenvolvimento econômico.”

De fato, o princípio do direito à autodeterminação dos povos é um princípio burguês, surgido quando a burguesia ainda constituía uma classe progressista e revolucionária, e tem sido reivindicado desde a Revolução Francesa de 1789, passando pelas revoluções de 1848, até os dias de hoje. Mas a própria burguesia abandonou esse princípio, quando ela deixou de ser uma classe progressista e passou a liderar a reação internacional contra os povos do mundo. Quem o defende agora são os trabalhadores, e, em menor medida, setores da burguesia dos países que sofrem precisamente da opressão nacional pelas grandes potências imperialistas.

A formação da URSS significa essa transição. Os bolcheviques não reivindicavam o direito de autodeterminação dos povos como uma palavra vazia, sem efeito, mas o levavam a termo. A seguinte afirmação de Pedro Fernández Barbadillo é absolutamente falsa:

“Este princípio político é um dos mais destrutivos no direito internacional e tem causado uma grande instabilidade, pois foi uma maneira de que as grandes potências interviessem nas pequenas e médias com a desculpa de proteger minorias étnicas.”

O direito de autodeterminação dos povos, na verdade, é um dos mais básicos e essenciais, porque ele é um reconhecimento da legitimidade da luta dos povos oprimidos pela sua libertação. Se esse direito não existisse, não faria grande diferença, porque os povos continuariam lutando da mesma forma pela sua independência. Porque trata-se de uma necessidade. O que estão fazendo os povos da Palestina, do Iraque e da Síria neste exato momento é precisamente lutar por sua autodeterminação. A Palestina foi ocupada há quase 80 anos por uma força estrangeira, o Iraque e a Síria têm bases militares imperialistas em seus territórios.

Não é o direito à autodeterminação dos povos que causa instabilidade nos países, mas sim o seu desrespeito pelas potências imperialistas. Se a Síria não fosse oprimida pelo imperialismo americano e europeu, tanto militar como economicamente, ou seja, se ela fosse integralmente independente, a situação dos curdos seria muito facilmente resolvida. A opressão exercida por Saddam Hussein sobre os curdos do Iraque só foi possível – ao menos naquele nível – graças ao apoio que ele recebeu dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Saddam Hussein era um instrumento da potência americana para esta oprimir o povo iraquiano – assim como o iraniano, que teve seu país invadido pelas tropas de Hussein.

É óbvio que as grandes potências utilizam as minorias étnicas para desestabilizar países mundo afora. O colonialismo europeu já fazia isso na África séculos atrás. Mas isso não significa que as reivindicações dessas minorias sejam ilegítimas. O problema das potências imperialistas é que seus governos não têm princípios, mas sim uma política de conveniência. Quando não convinha apoiar os direitos dos curdos do Iraque, elas não apoiavam – ajudavam a reprimi-los. Quando convém, supostamente os apoiam. Lênin, por sua vez, atuava de acordo com seus princípios e nunca de acordo com conveniências.

Mais uma afirmação falsa do articulista contra o qual estamos argumentando é a seguinte:

“Os vermelhos admitiam o direito de autodeterminação somente se servisse para destruir as instituições e lealdades tradicionais.”

Alguns exemplos que citamos acima refutam sua afirmação. Na Ucrânia e na Finlândia, onde apoiar sua independência não era positivo do ponto de vista imediato, os “vermelhos” a apoiaram, porque sabiam que estrategicamente, a longo prazo, isso seria positivo. Lênin apoiou até mesmo a autodeterminação da Geórgia quando ela já era parte da URSS! Novamente, a máxima dos bolcheviques leninistas era a de que os povos deveriam ser convencidos a se unirem, e não forçados. Mais do que qualquer um, isso beneficiava ao povo da Rússia soviética, vanguarda da revolução internacional contra a burguesia e as potências imperialistas. Uma política justa que respeitasse a plena liberdade dos povos vizinhos garantia aos revolucionários, ainda que isso levasse tempo, a confiança dos outros povos.

Barbadillo contra Barbadillo

Infelizmente, a política correta de Lênin foi traída por Stalin. Stalin – e só ele, não em conjunto com Lênin, como afirma Barbadillo – criou uma “oligarquia local” (os apparatchiks, a burocracia stalinista) nas repúblicas que formavam a União Soviética, em meados da década de 1920. E, ao invés de assegurar a independência dos trabalhadores e povos de toda a URSS, que garantiria o seu apoio à união livre dos povos soviéticos, ele impôs a russificação dessas repúblicas, imitando o que faziam “os czares nos países que conquistavam” – segundo as próprias palavras do autor.

E é então que Barbadillo começa a contradizer tudo o que havia dito! Sem diferenciar a política stalinista da política leninista, isto é, culpando os “vermelhos” e a Revolução de Outubro, escreve que Moscou desejava o desaparecimento dos ucranianos, considerados “inimigos do Estado soviético”, pelo que foram reprimidos com o “Holodomor” e as deportações e perseguições. Se, no começo de seu artigo, ele indicava que o nacionalismo ucraniano era inexistente, agora diz que os ucranianos passaram a ser “antirrussos”!

Fica exposto o porquê de todos os ataques do autor a Lênin e aos bolcheviques. Não se trata de uma defesa da Rússia, mas sim de puro anticomunismo. De uma defesa da opressão imposta pelo Império Russo aos ucranianos, ele passa para a defesa dos ucranianos contra a alegada opressão imposta pelos comunistas. Acima, citamos que as potências imperialistas não têm princípios e atuam conforme sua conveniência. Essa política não se resume a Estados e governos, mas também é adotada por meros indivíduos do nível do senhor Barbadillo!

Para que não fique a menor dúvida sobre a intenção puramente anticomunista de seu artigo, ele menciona a “quinta coluna comunista nos países europeus e americanos”, já, aparentemente, na segunda metade do século XX. Ou seja, aqueles que lutavam precisamente contra as potências imperialistas, que oprimiam as nações pequenas e médias do mundo todo, são para ele uma “quinta coluna” dentro desses países, a serviço dos russos. Reconhece, ao mesmo tempo, mesmo que timidamente, que os que lutavam pela independência dos países latino-americanos (então ocupados por ditaduras militares a serviço dos EUA) e contra a subordinação das nações europeias ao imperialismo americano eram inimigos desses países. Mas só podiam ser inimigos dos governos desses países, verdadeiros fantoches da principal potência imperialista do mundo, e não dos povos desses países, que desejavam uma verdadeira autodeterminação.

Barbadillo é espanhol. Naquela época, a Espanha era controlada pela ditadura fascista de Francisco Franco. Embora os EUA se vendessem como os promotores da liberdade e da democracia, os que teriam derrotado a barbárie fascista e nazista na II Guerra, utilizavam a Espanha fascista como uma colônia e enchiam os bolsos do ditador. Quem fazia oposição a isso eram justamente os comunistas. Hoje, mesmo 50 anos depois da derrocada do franquismo, a Espanha continua um Estado vassalo dos Estados Unidos. É um país imperialista de nível inferior, que vive das conquistas do passado colonizador e da opressão que ainda impõe à Catalunha e ao País Basco. Ao contrário do que fazem na China (sobre Taiwan, Hong Kong e Xinjiang), na Síria, Iraque e Irã (sobre os curdos), na América Latina (sobre os indígenas), os Estados Unidos nunca promoveram uma campanha a favor da autodeterminação dos povos catalão, basco ou galego. Precisamente porque isso iria desestabilizar o imperialismo vassalo espanhol. Assim como a legítima independência da Escócia desestabilizaria o caquético imperialismo britânico, outro vassalo dos EUA.

Não cabe ao presente artigo dissertar sobre se a ideologia socialista é mais ou menos inerente ao ser humano que o nacionalismo. Barbadillo defende que o nacionalismo é “muito mais forte” e “até inerente” no ser humano que o socialismo, e que essa é uma das lições sobre a existência da União Soviética. Essa conclusão ocorre depois de dizer que Lênin criou o nacionalismo ucraniano e de indicar que não existe nacionalismo catalão, escocês ou flamengo! E pior, depois de defender como tese essencial a de que a autodeterminação dos povos (ou seja, o reconhecimento das lutas nacionais) não passa de pretexto para as grandes potências intervirem nos outros países!

Que contradição! Mas, digo novamente: as potências imperialistas e seus defensores não têm princípios. Atuam por mera conveniência.

Putin escreve certo por linhas tortas

Muito se tem discutido desde o início da operação militar especial, em 24 de fevereiro de 2022, sobre a autodeterminação da Ucrânia. O imperialismo americano e europeu, que tem escravizado a Ucrânia há mais de 30 anos, e de fato impedido a sua autodeterminação, acusa a Rússia de violar essa autodeterminação.

Mas a propaganda ocidental esconde que, além de violarem a autodeterminação da Ucrânia, os EUA e a OTAN também violam a autodeterminação da Rússia. E isso, desde sempre! Ainda quando Lênin estava vivo, a Rússia foi invadida, bloqueada e isolada do mundo. Depois, lhe foi imposta uma “guerra fria”, uma sabotagem monumental de seu direito de existir. Por fim, essa guerra – que era externa e interna, uma vez que os burocratas stalinistas estavam, de fato, a serviço da destruição da URSS – culminou com o tombamento da Rússia e das nações vizinhas diante do império neoliberal. Até hoje a Rússia luta por sua autodeterminação, ainda não alcançada devido à intensa opressão imperialista. O cerco da OTAN é o exemplo mais evidente dessa opressão.

Portanto, o que Putin está fazendo é combater a violação da autodeterminação da Rússia. Ao empurrar a OTAN para fora da Ucrânia, objetivamente ele também atua pela liberdade da Ucrânia, escravizada pelas potências imperialistas. Putin já conseguiu libertar parte do Donbass, onde grande parte da população é de nacionalidade russa e já vinha lutando pela autodeterminação desde o golpe imperialista de 2014 em Kiev. Segundo a lógica de Barbadillo, a Rússia estaria usando o direito à autodeterminação dos povos como uma maneira para intervir na Ucrânia sob a desculpa de proteger a minoria étnica russa.

E ele realmente pensa assim, pois compara a ação de Putin no Donbass com a ação de Hitler na Europa Central para “reunir os alemães em um só Estado”. A grande diferença é que a Alemanha de Hitler era uma nação imperialista se expandindo sobre nações oprimidas, enquanto a Rússia de Putin é uma nação oprimida combatendo a expansão das potências imperialistas. A mente confusa de Barbadillo, que antes pensava que o nacionalismo era inexistente e depois que era inerente ao ser humano, é incapaz de diferenciar uma nação opressora de uma nação oprimida.

O Império Russo oprimia os ucranianos, mas ele já não existe mais. Não importa se existem partidários de Putin que queiram, ou mesmo se o próprio Putin queira reconstruir aquele império – como dizem seus detratores. O Império Russo é coisa do passado que nunca mais irá voltar. As condições de desenvolvimento do sistema capitalista mundial não permitem isso. Os russos sabem disso. O próprio governo russo admite que seu país pertence ao “Sul Global” e não tem pretensões de domínio mundial como tinha a Alemanha e como sempre tiveram os EUA.

Analisando as condições objetivas, sem nenhum filtro ideológico, é mais possível a reconstrução da União Soviética do que a do Império Russo. Os povos da Crimeia e do Donbass desejaram a sua reintegração à Rússia e a reconquistaram. O povo bielorrusso é favorável a uma nova união com a Rússia e há quase 30 anos Lukashenko vem trabalhando dentro da perspectiva do Estado da União. A União Econômica Eurasiática reintegra cada vez mais as nações da Ásia Central à Rússia.

Embora neste momento essa nova união não seja socialista, essas medidas impulsionadas por Putin não são opostas à política de Lênin. O ex-dirigente russo já havia mencionado uma situação semelhante – e ainda menos democrática – ocorrida na segunda metade do século XIX, quando Bismarck unificou a Alemanha. Lênin, tal como Marx e Engels, considerava a unificação alemã como um fator progressista e, assim como Putin com o Donbass e a Crimeia, “Bismarck impulsionava o desenvolvimento econômico unificando os alemães dispersos, que eram oprimidos por outros povos”. Essas palavras foram escritas em 1915, no artigo “O orgulho nacional dos russos”. Ele também dizia, como se respondesse a Barbadillo:

“Nós de modo algum somos partidários incondicionais de nações infalivelmente pequenas; em igualdade de outras condições, estamos absolutamente em prol da centralização e contra o ideal pequeno-burguês das relações federativas.”

A ressalva destacada pelo próprio Lênin (“em igualdade de outras condições”) é para salientar que, ao contrário dos imperialistas, os partidários de Lênin defendem uma união baseada na igualdade, e não na opressão sobre outras nações. Contanto que haja direitos iguais, os socialistas são favoráveis à total união das nações em um mesmo Estado, como foi executada poucos anos depois com a fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

A “Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado”, de 1918, dizia, em seu Capítulo IV, Artigo 8.º:

“Ao se esforçar em criar a união realmente livre e voluntária e, por conseguinte, mais completa e sólida das classes trabalhadoras de todas as nações da Rússia, o III Congresso Pan-russo dos Sovietes se limita a assentar os princípios essenciais da Federação das Repúblicas dos Sovietes da Rússia, reservando aos operários e aos camponeses de cada nação o direito de decidir livremente em seu próprio Congresso nacional dos Sovietes, se desejam, e sobre quais bases, participar no Governo federal e nas outras instituições federais dos Sovietes.”

Cinco anos depois, a Constituição da URSS de 1923 estipulava:

“4.º Cada República federada se reserva o direito de se separar livremente da União.”

E o Artigo 6.º garantia que, “para a reforma, restrição ou a derrogação do artigo 4.º será necessário o consentimento de todas as Repúblicas federadas”. Ao mesmo tempo, o Artigo 7.º assegurava: “os cidadãos da Federação gozarão da cidadania única da União.”

A centralização imposta posteriormente por Stalin não ocorreu por vias democráticas, pois os sovietes e demais organismos independentes dos trabalhadores, dos camponeses e do povo em geral já haviam sido desmantelados. Contudo, ela foi ao encontro do preconizado por Lênin em 1915 a favor da unidade do Estado multinacional.

Embora não seja tão completo como nos primórdios da URSS, o direito à autodeterminação foi reconhecido pelo atual governo russo com relação a Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaparojia. As populações desses territórios libertados da ocupação das forças armadas e agrupamentos fascistas ucranianos (e da OTAN) puderam votar livremente em referendos apoiados pela Rússia, assim como havia feito a população da Crimeia em 2014. Eles decidiram livremente se separar da Ucrânia e se unir à Rússia posteriormente. Os EUA, a OTAN e a Ucrânia não reconhecem esse direito, a Rússia sim. Bem como ela reconhece o direito dos povos do mundo todo, na Europa – com o apoio tácito aos catalães e escoceses –, na África, na Ásia, na América Latina e em seu próprio território, apesar de, na prática, as minorias nacionais ainda não desfrutarem de integral igualdade com os russos – assim como os trabalhadores russos não desfrutam de nenhuma igualdade em relação aos seus patrões russos (ainda assim, o respeito aos direitos nacionais é maior na Rússia do que na Espanha ou no Reino Unido).

Se não fosse a defesa do direito à autodeterminação dos povos, iniciada por Lênin e a União Soviética, e continuada por Putin – ainda que sem a mesma contundência dos bolcheviques, por razões de defesa de interesses distintos –, hoje a Rússia não teria o prestígio que tem entre os países pobres e explorados. Se não fosse por essa defesa, os povos da África, da Ásia e da América Latina não estariam hoje apoiando a Rússia em sua luta contra a OTAN e a dominação imperial do mundo. Os países oprimidos veem a Rússia como uma forte aliada na defesa de seus direitos de autodeterminação graças à autoridade que a Rússia tem devido ao seu histórico de defesa desse direito desde a época soviética. E isso começou com Lênin, ainda que alguns tenham dificuldade de reconhecer isso.

 

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Explicando a política de Lênin e as ações de Putin na Ucrânia

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Este artigo não tem por objetivo definir o que são as nacionalidades e as nações, mas sim discutir uma política pragmática que resolva (ao menos a curto e médio prazo) a questão da autodeterminação dos ucranianos, com base nas ideias de Lênin e na prática do Estado soviético e russo atual.

Trata-se, aqui, de uma pequena polêmica que será desenvolvida com o texto “Ucrania, creación de Lenin”, publicado originalmente por Pedro Fernández Barbadillo no portal “Libertad Digital” e reproduzido na Strategic Culture Foundation.

A autodeterminação no Império Russo

Durante a vigência do Império Russo, o povo que vivia na região então chamada de “Pequena Rússia” (Ucrânia) era oprimido pelo governo imperial russo, assim como a maioria da população do império, formada por nacionalidades carentes de todos os tipos de direitos.

A Rússia observou o surgimento de um movimento nacionalista a partir de meados do século XIX, na esteira da “Primavera dos Povos” de 1848, quando tanto as massas populares das grandes nações europeias, como também os povos de nacionalidades colonizadas e oprimidas por essas (dentro da Europa) se rebelaram contra a monarquia e a aristocracia.

O Império Russo era o mais reacionário e atrasado de toda a Europa e encabeçava a contrarrevolução. Não lhe interessava nenhuma mudança significativa, nem mesmo nas outras potências europeias, pois sabia que isso influenciaria mudanças políticas no seu próprio território. Por isso apoiou a repressão contra os húngaros pela Áustria, por exemplo, bem como reprimiu os poloneses. A agitação nacionalista atravessava a Europa Central e Oriental e até mesmo a I Guerra Mundial teve como estopim uma ação nacionalista (o assassinato do rei austríaco pelos sérvios), embora fosse uma guerra imperialista.

Assim, assusta ler, no artigo acima citado, que só existiam movimentos nacionalistas na Polônia, Irlanda, países bálticos e Arábia e que, só depois de Brest-Litovski e a queda dos Habsburgo, em 1918, eles se estenderam pela Europa Oriental!

O nacionalismo era um sentimento natural diante da opressão sofrida pelos impérios moribundos. Sua essência é a mesma que a do grande movimento de libertação nacional ocorrido na Ásia e na África na metade do século XX.

Para Lênin e os bolcheviques, herdeiros das teses de Marx e Engels e, como marxistas, das ideias iluministas que guiaram a luta pela independência até então, era uma obrigação reconhecer e dar suporte àqueles que desejavam a independência perante um Estado opressor. Essa independência não estava em contradição com a ideia suprema dos marxistas, a união dos proletários de todo o mundo. Escreveu Lênin em junho de 1917:

“Somente o reconhecimento deste direito torna possível advogar a livre união dos ucranianos e grão-russos, uma voluntária associação de dois povos num só Estado”

Lênin e os bolcheviques, apesar de buscarem – e conseguirem – tomar o poder dentro da Rússia, não respondiam absolutamente por nenhuma política levada a cabo pelo czarismo. O uso que fariam do Estado russo seria o inverso do que havia sido feito pela monarquia: o Estado dos sovietes era o Estado da liberdade, não da opressão.

Quem estuda geopolítica sabe muito bem que o uso do “soft power” é muito mais desejável que o uso do “hard power” para qualquer nação. Os Estados Unidos, por exemplo, sabem que a opressão sobre os povos do mundo todo é desgastante, impopular e instável. Ainda mais se ela for aberta e evidente. Por isso falam em levar a democracia e a liberdade, ainda que na prática a opressão econômica sobre os países “independentes” seja tão escravizadora quanto a opressão militar. Quem quer viver esmagado por uma opressão como essa? Absolutamente ninguém!

Isto é, analisando estritamente do ponto de vista pragmático e não ideológico, é mais desejável para uma superpotência dominar pelo consentimento do que pela coerção. Daí que, mesmo para as viúvas do czarismo, seria negativa uma dominação territorial da Ucrânia e de outras nações vizinhas.

Por outro lado, a realidade também se impunha. Os bolcheviques haviam herdado um país em ruínas, destruído por obra do próprio regime czarista. Pedro Fernández Barbadillo pensa que a Revolução Russa – a qual ele chama de “golpe de Estado” – foi um raio em céu azul, executada por “um punhado de agitadores bolcheviques” enviados pelo II Reich para enfraquecer a Rússia e entregá-la à Alemanha. Essa é a mesma ladainha promovida pelos ressentidos de 1917.

A verdade é que o Império Russo caiu de podre. Não conseguia mais competir com os imperialistas. A derrota humilhante para o Japão em 1905 foi prova disso. A situação do exército russo no início de 1917 não deixa dúvida nenhuma. Se os bolcheviques não tivessem tomado o poder, possivelmente a Rússia não teria se tornado a potência soviética, derrotada somente sete décadas depois, mas com certeza os trabalhadores teriam, ainda assim, derrotado a monarquia definitivamente e levado a civilização ao povo russo. Foi uma necessidade histórica, não um golpe de sorte. O enorme movimento popular, camponês e operário teria tomado conta do país de uma forma ou de outra, pois a miséria, a fome, a falta de terra para cultivar e as mortes em massa não tinham como ser toleradas por mais tempo. E mais: aqueles mesmos que acusavam os bolcheviques de estarem a serviço da Alemanha aliaram-se às potências estrangeiras, que invadiram a Rússia, para combater os seus compatriotas. Realmente, eles tinham um grande amor por sua pátria!

A potência soviética, prova do acerto de Lênin

O cerco por 14 exércitos invasores e a destruição econômica e material causada pela administração desastrosa do czar – em todos os sentidos possíveis – apontava uma situação de total desvantagem para os bolcheviques. De fato, muitos, entre os próprios dirigentes do novo regime, não acreditavam que o Estado soviético sairia vitorioso. Todos os jornais ocidentais garantiam que o poder soviético cairia em questão de semanas. A continuação da participação russa na guerra mundial significaria a derrota iminente da Rússia. Lênin percebeu que a única solução viável para a paz dentro da Rússia e a chance de reconstruir o país seria fazer concessões às potências imperialistas.

Sun Tzu já ensinava, há 2.500 anos, que, se o inimigo é superior a você, evite-o. Ainda mais se forem 14 exércitos! É preciso saber quando lutar e quando não lutar. No caso específico da Ucrânia à época da assinatura do Tratado de Brest-Litovsk, eram cinco exércitos de 100.000 homens cada, que ocupavam parte da Ucrânia, e o exército enfraquecido da Rússia não tinha condições de socorrer o exército enfraquecido das forças soviéticas da Ucrânia.

Finalmente, após o Tratado, que o próprio Lênin nunca escondeu que foi humilhante para a Rússia, mas que era a única opção viável, e diante da derrota da Alemanha na I Guerra, em meio à Guerra Civil Russa o Exército Vermelho atacou os contrarrevolucionários aliados aos invasores na Ucrânia. O comandante do Exército Vermelho, Leon Trotsky, exortou assim os soldados vermelhos:

“Mantenham isto firme em suas mentes: sua tarefa não é conquistar a Ucrânia, mas libertá-la. Quando os bandos de Denikin tiverem sido finalmente esmagados, o povo trabalhador da Ucrânia livre vai decidir por conta própria sobre quais termos ele vai viver com a Rússia Soviética. Estamos todos seguros, e nós sabemos, que o povo trabalhador da Ucrânia vai optar pela mais estreita união fraterna conosco.”

O Exército Vermelho derrotou as tropas contrarrevolucionárias e invasoras. A Ucrânia passou ao controle do seu próprio povo, os trabalhadores ucranianos, em união voluntária e fraternal com os russos. Essa união foi ratificada e formalizada em 30 de dezembro de 1922, quando Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e Transcaucásia formaram a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Foi a comprovação do acerto da política de Lênin a respeito do direito à autodeterminação dos povos. Ele previu, ainda em 1915, que somente a luta pela autodeterminação e a união voluntária entre os povos viabilizaria a formação de um Estado multinacional forte e a caminho do progresso:

“A defesa desse direito, longe de fomentar a criação de pequenos Estados, leva, pelo contrário, à formação mais livre, mais audaz e, portanto, mais ampla e extensa de grandes Estados e de federações de Estados, mais benéficas para as massas e mais em consonância com o desenvolvimento econômico.”

De fato, o princípio do direito à autodeterminação dos povos é um princípio burguês, surgido quando a burguesia ainda constituía uma classe progressista e revolucionária, e tem sido reivindicado desde a Revolução Francesa de 1789, passando pelas revoluções de 1848, até os dias de hoje. Mas a própria burguesia abandonou esse princípio, quando ela deixou de ser uma classe progressista e passou a liderar a reação internacional contra os povos do mundo. Quem o defende agora são os trabalhadores, e, em menor medida, setores da burguesia dos países que sofrem precisamente da opressão nacional pelas grandes potências imperialistas.

A formação da URSS significa essa transição. Os bolcheviques não reivindicavam o direito de autodeterminação dos povos como uma palavra vazia, sem efeito, mas o levavam a termo. A seguinte afirmação de Pedro Fernández Barbadillo é absolutamente falsa:

“Este princípio político é um dos mais destrutivos no direito internacional e tem causado uma grande instabilidade, pois foi uma maneira de que as grandes potências interviessem nas pequenas e médias com a desculpa de proteger minorias étnicas.”

O direito de autodeterminação dos povos, na verdade, é um dos mais básicos e essenciais, porque ele é um reconhecimento da legitimidade da luta dos povos oprimidos pela sua libertação. Se esse direito não existisse, não faria grande diferença, porque os povos continuariam lutando da mesma forma pela sua independência. Porque trata-se de uma necessidade. O que estão fazendo os povos da Palestina, do Iraque e da Síria neste exato momento é precisamente lutar por sua autodeterminação. A Palestina foi ocupada há quase 80 anos por uma força estrangeira, o Iraque e a Síria têm bases militares imperialistas em seus territórios.

Não é o direito à autodeterminação dos povos que causa instabilidade nos países, mas sim o seu desrespeito pelas potências imperialistas. Se a Síria não fosse oprimida pelo imperialismo americano e europeu, tanto militar como economicamente, ou seja, se ela fosse integralmente independente, a situação dos curdos seria muito facilmente resolvida. A opressão exercida por Saddam Hussein sobre os curdos do Iraque só foi possível – ao menos naquele nível – graças ao apoio que ele recebeu dos Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Saddam Hussein era um instrumento da potência americana para esta oprimir o povo iraquiano – assim como o iraniano, que teve seu país invadido pelas tropas de Hussein.

É óbvio que as grandes potências utilizam as minorias étnicas para desestabilizar países mundo afora. O colonialismo europeu já fazia isso na África séculos atrás. Mas isso não significa que as reivindicações dessas minorias sejam ilegítimas. O problema das potências imperialistas é que seus governos não têm princípios, mas sim uma política de conveniência. Quando não convinha apoiar os direitos dos curdos do Iraque, elas não apoiavam – ajudavam a reprimi-los. Quando convém, supostamente os apoiam. Lênin, por sua vez, atuava de acordo com seus princípios e nunca de acordo com conveniências.

Mais uma afirmação falsa do articulista contra o qual estamos argumentando é a seguinte:

“Os vermelhos admitiam o direito de autodeterminação somente se servisse para destruir as instituições e lealdades tradicionais.”

Alguns exemplos que citamos acima refutam sua afirmação. Na Ucrânia e na Finlândia, onde apoiar sua independência não era positivo do ponto de vista imediato, os “vermelhos” a apoiaram, porque sabiam que estrategicamente, a longo prazo, isso seria positivo. Lênin apoiou até mesmo a autodeterminação da Geórgia quando ela já era parte da URSS! Novamente, a máxima dos bolcheviques leninistas era a de que os povos deveriam ser convencidos a se unirem, e não forçados. Mais do que qualquer um, isso beneficiava ao povo da Rússia soviética, vanguarda da revolução internacional contra a burguesia e as potências imperialistas. Uma política justa que respeitasse a plena liberdade dos povos vizinhos garantia aos revolucionários, ainda que isso levasse tempo, a confiança dos outros povos.

Barbadillo contra Barbadillo

Infelizmente, a política correta de Lênin foi traída por Stalin. Stalin – e só ele, não em conjunto com Lênin, como afirma Barbadillo – criou uma “oligarquia local” (os apparatchiks, a burocracia stalinista) nas repúblicas que formavam a União Soviética, em meados da década de 1920. E, ao invés de assegurar a independência dos trabalhadores e povos de toda a URSS, que garantiria o seu apoio à união livre dos povos soviéticos, ele impôs a russificação dessas repúblicas, imitando o que faziam “os czares nos países que conquistavam” – segundo as próprias palavras do autor.

E é então que Barbadillo começa a contradizer tudo o que havia dito! Sem diferenciar a política stalinista da política leninista, isto é, culpando os “vermelhos” e a Revolução de Outubro, escreve que Moscou desejava o desaparecimento dos ucranianos, considerados “inimigos do Estado soviético”, pelo que foram reprimidos com o “Holodomor” e as deportações e perseguições. Se, no começo de seu artigo, ele indicava que o nacionalismo ucraniano era inexistente, agora diz que os ucranianos passaram a ser “antirrussos”!

Fica exposto o porquê de todos os ataques do autor a Lênin e aos bolcheviques. Não se trata de uma defesa da Rússia, mas sim de puro anticomunismo. De uma defesa da opressão imposta pelo Império Russo aos ucranianos, ele passa para a defesa dos ucranianos contra a alegada opressão imposta pelos comunistas. Acima, citamos que as potências imperialistas não têm princípios e atuam conforme sua conveniência. Essa política não se resume a Estados e governos, mas também é adotada por meros indivíduos do nível do senhor Barbadillo!

Para que não fique a menor dúvida sobre a intenção puramente anticomunista de seu artigo, ele menciona a “quinta coluna comunista nos países europeus e americanos”, já, aparentemente, na segunda metade do século XX. Ou seja, aqueles que lutavam precisamente contra as potências imperialistas, que oprimiam as nações pequenas e médias do mundo todo, são para ele uma “quinta coluna” dentro desses países, a serviço dos russos. Reconhece, ao mesmo tempo, mesmo que timidamente, que os que lutavam pela independência dos países latino-americanos (então ocupados por ditaduras militares a serviço dos EUA) e contra a subordinação das nações europeias ao imperialismo americano eram inimigos desses países. Mas só podiam ser inimigos dos governos desses países, verdadeiros fantoches da principal potência imperialista do mundo, e não dos povos desses países, que desejavam uma verdadeira autodeterminação.

Barbadillo é espanhol. Naquela época, a Espanha era controlada pela ditadura fascista de Francisco Franco. Embora os EUA se vendessem como os promotores da liberdade e da democracia, os que teriam derrotado a barbárie fascista e nazista na II Guerra, utilizavam a Espanha fascista como uma colônia e enchiam os bolsos do ditador. Quem fazia oposição a isso eram justamente os comunistas. Hoje, mesmo 50 anos depois da derrocada do franquismo, a Espanha continua um Estado vassalo dos Estados Unidos. É um país imperialista de nível inferior, que vive das conquistas do passado colonizador e da opressão que ainda impõe à Catalunha e ao País Basco. Ao contrário do que fazem na China (sobre Taiwan, Hong Kong e Xinjiang), na Síria, Iraque e Irã (sobre os curdos), na América Latina (sobre os indígenas), os Estados Unidos nunca promoveram uma campanha a favor da autodeterminação dos povos catalão, basco ou galego. Precisamente porque isso iria desestabilizar o imperialismo vassalo espanhol. Assim como a legítima independência da Escócia desestabilizaria o caquético imperialismo britânico, outro vassalo dos EUA.

Não cabe ao presente artigo dissertar sobre se a ideologia socialista é mais ou menos inerente ao ser humano que o nacionalismo. Barbadillo defende que o nacionalismo é “muito mais forte” e “até inerente” no ser humano que o socialismo, e que essa é uma das lições sobre a existência da União Soviética. Essa conclusão ocorre depois de dizer que Lênin criou o nacionalismo ucraniano e de indicar que não existe nacionalismo catalão, escocês ou flamengo! E pior, depois de defender como tese essencial a de que a autodeterminação dos povos (ou seja, o reconhecimento das lutas nacionais) não passa de pretexto para as grandes potências intervirem nos outros países!

Que contradição! Mas, digo novamente: as potências imperialistas e seus defensores não têm princípios. Atuam por mera conveniência.

Putin escreve certo por linhas tortas

Muito se tem discutido desde o início da operação militar especial, em 24 de fevereiro de 2022, sobre a autodeterminação da Ucrânia. O imperialismo americano e europeu, que tem escravizado a Ucrânia há mais de 30 anos, e de fato impedido a sua autodeterminação, acusa a Rússia de violar essa autodeterminação.

Mas a propaganda ocidental esconde que, além de violarem a autodeterminação da Ucrânia, os EUA e a OTAN também violam a autodeterminação da Rússia. E isso, desde sempre! Ainda quando Lênin estava vivo, a Rússia foi invadida, bloqueada e isolada do mundo. Depois, lhe foi imposta uma “guerra fria”, uma sabotagem monumental de seu direito de existir. Por fim, essa guerra – que era externa e interna, uma vez que os burocratas stalinistas estavam, de fato, a serviço da destruição da URSS – culminou com o tombamento da Rússia e das nações vizinhas diante do império neoliberal. Até hoje a Rússia luta por sua autodeterminação, ainda não alcançada devido à intensa opressão imperialista. O cerco da OTAN é o exemplo mais evidente dessa opressão.

Portanto, o que Putin está fazendo é combater a violação da autodeterminação da Rússia. Ao empurrar a OTAN para fora da Ucrânia, objetivamente ele também atua pela liberdade da Ucrânia, escravizada pelas potências imperialistas. Putin já conseguiu libertar parte do Donbass, onde grande parte da população é de nacionalidade russa e já vinha lutando pela autodeterminação desde o golpe imperialista de 2014 em Kiev. Segundo a lógica de Barbadillo, a Rússia estaria usando o direito à autodeterminação dos povos como uma maneira para intervir na Ucrânia sob a desculpa de proteger a minoria étnica russa.

E ele realmente pensa assim, pois compara a ação de Putin no Donbass com a ação de Hitler na Europa Central para “reunir os alemães em um só Estado”. A grande diferença é que a Alemanha de Hitler era uma nação imperialista se expandindo sobre nações oprimidas, enquanto a Rússia de Putin é uma nação oprimida combatendo a expansão das potências imperialistas. A mente confusa de Barbadillo, que antes pensava que o nacionalismo era inexistente e depois que era inerente ao ser humano, é incapaz de diferenciar uma nação opressora de uma nação oprimida.

O Império Russo oprimia os ucranianos, mas ele já não existe mais. Não importa se existem partidários de Putin que queiram, ou mesmo se o próprio Putin queira reconstruir aquele império – como dizem seus detratores. O Império Russo é coisa do passado que nunca mais irá voltar. As condições de desenvolvimento do sistema capitalista mundial não permitem isso. Os russos sabem disso. O próprio governo russo admite que seu país pertence ao “Sul Global” e não tem pretensões de domínio mundial como tinha a Alemanha e como sempre tiveram os EUA.

Analisando as condições objetivas, sem nenhum filtro ideológico, é mais possível a reconstrução da União Soviética do que a do Império Russo. Os povos da Crimeia e do Donbass desejaram a sua reintegração à Rússia e a reconquistaram. O povo bielorrusso é favorável a uma nova união com a Rússia e há quase 30 anos Lukashenko vem trabalhando dentro da perspectiva do Estado da União. A União Econômica Eurasiática reintegra cada vez mais as nações da Ásia Central à Rússia.

Embora neste momento essa nova união não seja socialista, essas medidas impulsionadas por Putin não são opostas à política de Lênin. O ex-dirigente russo já havia mencionado uma situação semelhante – e ainda menos democrática – ocorrida na segunda metade do século XIX, quando Bismarck unificou a Alemanha. Lênin, tal como Marx e Engels, considerava a unificação alemã como um fator progressista e, assim como Putin com o Donbass e a Crimeia, “Bismarck impulsionava o desenvolvimento econômico unificando os alemães dispersos, que eram oprimidos por outros povos”. Essas palavras foram escritas em 1915, no artigo “O orgulho nacional dos russos”. Ele também dizia, como se respondesse a Barbadillo:

“Nós de modo algum somos partidários incondicionais de nações infalivelmente pequenas; em igualdade de outras condições, estamos absolutamente em prol da centralização e contra o ideal pequeno-burguês das relações federativas.”

A ressalva destacada pelo próprio Lênin (“em igualdade de outras condições”) é para salientar que, ao contrário dos imperialistas, os partidários de Lênin defendem uma união baseada na igualdade, e não na opressão sobre outras nações. Contanto que haja direitos iguais, os socialistas são favoráveis à total união das nações em um mesmo Estado, como foi executada poucos anos depois com a fundação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

A “Declaração dos direitos do povo trabalhador e explorado”, de 1918, dizia, em seu Capítulo IV, Artigo 8.º:

“Ao se esforçar em criar a união realmente livre e voluntária e, por conseguinte, mais completa e sólida das classes trabalhadoras de todas as nações da Rússia, o III Congresso Pan-russo dos Sovietes se limita a assentar os princípios essenciais da Federação das Repúblicas dos Sovietes da Rússia, reservando aos operários e aos camponeses de cada nação o direito de decidir livremente em seu próprio Congresso nacional dos Sovietes, se desejam, e sobre quais bases, participar no Governo federal e nas outras instituições federais dos Sovietes.”

Cinco anos depois, a Constituição da URSS de 1923 estipulava:

“4.º Cada República federada se reserva o direito de se separar livremente da União.”

E o Artigo 6.º garantia que, “para a reforma, restrição ou a derrogação do artigo 4.º será necessário o consentimento de todas as Repúblicas federadas”. Ao mesmo tempo, o Artigo 7.º assegurava: “os cidadãos da Federação gozarão da cidadania única da União.”

A centralização imposta posteriormente por Stalin não ocorreu por vias democráticas, pois os sovietes e demais organismos independentes dos trabalhadores, dos camponeses e do povo em geral já haviam sido desmantelados. Contudo, ela foi ao encontro do preconizado por Lênin em 1915 a favor da unidade do Estado multinacional.

Embora não seja tão completo como nos primórdios da URSS, o direito à autodeterminação foi reconhecido pelo atual governo russo com relação a Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaparojia. As populações desses territórios libertados da ocupação das forças armadas e agrupamentos fascistas ucranianos (e da OTAN) puderam votar livremente em referendos apoiados pela Rússia, assim como havia feito a população da Crimeia em 2014. Eles decidiram livremente se separar da Ucrânia e se unir à Rússia posteriormente. Os EUA, a OTAN e a Ucrânia não reconhecem esse direito, a Rússia sim. Bem como ela reconhece o direito dos povos do mundo todo, na Europa – com o apoio tácito aos catalães e escoceses –, na África, na Ásia, na América Latina e em seu próprio território, apesar de, na prática, as minorias nacionais ainda não desfrutarem de integral igualdade com os russos – assim como os trabalhadores russos não desfrutam de nenhuma igualdade em relação aos seus patrões russos (ainda assim, o respeito aos direitos nacionais é maior na Rússia do que na Espanha ou no Reino Unido).

Se não fosse a defesa do direito à autodeterminação dos povos, iniciada por Lênin e a União Soviética, e continuada por Putin – ainda que sem a mesma contundência dos bolcheviques, por razões de defesa de interesses distintos –, hoje a Rússia não teria o prestígio que tem entre os países pobres e explorados. Se não fosse por essa defesa, os povos da África, da Ásia e da América Latina não estariam hoje apoiando a Rússia em sua luta contra a OTAN e a dominação imperial do mundo. Os países oprimidos veem a Rússia como uma forte aliada na defesa de seus direitos de autodeterminação graças à autoridade que a Rússia tem devido ao seu histórico de defesa desse direito desde a época soviética. E isso começou com Lênin, ainda que alguns tenham dificuldade de reconhecer isso.