Português
December 24, 2023
© Photo: Public domain

Apesar da ostensiva força de segurança, pessoas lotaram as ruas e conseguiram mostrar que não se intimidam com as ameaças do governo

Verbena CÓRDULA

Junte-se a nós no Telegram Twitter  e VK .

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Era dezembro de 2001. Naquele momento, governava o presidente Fernando De la Rúa. E a Argentina “explodiu”, com mobilização que marcou um momento crucial na história política daquele país vizinho. A Argentina é um exemplo marcante da força da mobilização popular em tempos de crise econômica e instabilidade política. E foi por isso que logo após o atual presidente da República, Javier Milei, anunciar um pacote de medidas que, entre outras coisas, retira direitos históricos e arduamente conquistados pela classe trabalhadora, o povo foi às ruas mostrar sua indignação na noite de 20 de dezembro de 2023.

No final do século 20, a Argentinz enfrentou uma profunda crise econômica, caracterizada por altos níveis de desemprego, crescente desigualdade social, instabilidade financeira e políticas de ajustes, que atingiu de cheio a classe trabalhadora, e também a classe média acomodada. O governo do então presidente Fernando de la Rúa, eleito em 1999 com a promessa de estabilidade e reformas, viu sua popularidade despencar à medida que a crise se agravava. A situação atingiu o ápice em dezembro de 2001, quando uma série de protestos e manifestações eclodiram por todo o país. Milhões de argentinos e argentinas saíram às ruas para expressar sua indignação com a situação econômica, exigindo mudanças imediatas. Os protestos, conhecidos como o “Argentinazo”, foram marcados por uma variedade de manifestações pacíficas, mas também por episódios de violência e saques, refletindo a intensidade do descontentamento e desespero da população.

A resposta do governo à crise foi incapaz de conter a agitação social, o que acabou desembocando na renúncia de Fernando De la Rúa, no dia 20 de dezembro daquele mesmo ano. A renúncia do mandatário foi vista como um momento histórico, resultado da pressão popular exercida pelas massivas mobilizações nas ruas. No entanto, a queda de De la Rúa não trouxe estabilidade imediata ao país vizinho.  Pelo contrário. Trouxe um período de turbulência política, com uma sucessão rápida de presidentes interinos e uma crise institucional profunda, que marcou a história daquele país.

A Argentina se destaca em vários aspectos quando se trata de mobilização social e política. Uma das características distintivas é a tradição de um forte movimento sindical e operário, que historicamente desempenhou um papel fundamental na mobilização daquela sociedade. Os sindicatos argentinos têm sido ativos na defesa dos direitos trabalhistas e sociais, exercendo influência considerável na política nacional, embora haja críticas relacionadas ao atrelamento político das centrais sindicais sobretudo ao peronismo. Mas, uma coisa é certa: na América Latina não há sindicalismo mais forte que o argentino, capaz de assegurar salários dignos para profissões como motorista de transporte coletivo, porteiros, entre outras.

Supressão de direitos no governo de Milei

Mas, independentemente do movimento sindical, é fato que o povo argentino se manifesta frequentemente a respeito de questões sociais, políticas e econômicas, de modo a ocupar as ruas com a finalidade de protestar, de reivindicar direitos e expressar sua insatisfação. Os argentinos e argentinas têm sido notáveis por sua disposição em se envolver ativamente na esfera pública, seja por meio de manifestações, movimentos sociais organizados ou debates políticos.

Com relação específica ao governo atual, a coisa começou a ficar feia sobretudo porque, à frente do Ministério de Segurança da Argentina, Patricia Bullrich pôs em prática ações controversas que levantaram preocupações sobre a abordagem autoritária do governo em relação ao direito a protestar. Como acontece todos os anos, a população argentina realizou uma mobilização no último dia 20 de dezembro, para recordar os acontecimentos de 2001, mas foi duramente hostilizada pela ministra em questão, que implementou protocolo que autorizava o uso de força caso as pessoas que se manifestassem obstruíssem vias públicas. No entanto, apesar da ostensiva força de segurança dirigida para fazer valer o protocolo em questão, as pessoas manifestaram-se e, se não obstruíram completamente as principais vias da capital bonaerense, conseguiram mostrar que não se intimidariam com as ameaças do governo.

As políticas em relação aos protestos sociais e manifestações implementadas por Patricia Bullrich levantaram críticas, obviamente, porque restringem o direito legítimo dos cidadãos de se expressarem livremente. Essa abordagem, no entanto, não é nova, pois a ministra em sua gestão anterior (no governo de Maurício Macri) foi repressiva, levando a confrontos e detenções que questionaram os limites do exercício da liberdade de expressão, e dos direitos humanos. Sua anterior gestão esteve envolvida em casos que geraram polêmicas, como a morte do ativista Santiago Maldonado, que ocorreu durante uma operação policial em uma comunidade de indígenas Mapuche, em 2017. O jovem “desapareceu” após um confronto com a polícia e seu corpo foi encontrado mais tarde em um rio, fato que levantou profundas críticas sobre o uso da força por parte das autoridades, bem como críticas acerca de como foi investigado o ocorrido.

Mas “a gota que encheu o copo”, nesta quarta-feira (20), foi o pronunciamento do Presidente Javier Milei, gravado e transmitido em cadeia nacional, dando conta que, por Decreto, derrubou centenas de Leis consagradas naquele país. Transmitida às 21 horas, a mensagem de Milei levou, logo após finalizada, milhares (talvez milhões, pois se deu em todo o país, e não somente na capital Buenos Aires) de pessoas às ruas, a protestar contra o que classificam como “massacre” ao povo, pois conforme mencionado, aniquila direitos historicamente conquistados.

O objetivo deste texto é homenagear o povo argentino, que, como costumo dizer, tem no seu DNA nucleotídeos formados por uma Base nitrogenada (Adenina, Timina, Guanina ou Citosina), uma Desoxirribose (um açúcar por cinco carbonos) e um grupamento fosfato, mas tem, ainda, uma dose muito significativa de “não mexa com meus direito”. Fiquei consternada ao ver que Milei foi eleito com quase 56% dos votos válidos, mas, no fundo, tinha a esperança de que esse vacilo (como o que ocorreu aqui no Brasil em 2018) logo, logo se transformaria em uma reação. E foi rápido. E espero que tenha sido só o começo, de uma onda de mobilizações pelo país afora. E que o helicóptero já esteja a postos, à espera de Milei, que, como Fernando De la Rúa, não aguente a pressão e renuncie.

Diálogos do Sul: Povo argentino reage à brutalidade do neoliberalismo de Milei (uol.com.br)

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.
Povo argentino reage a brutalidade do neoliberalismo de Milei

Apesar da ostensiva força de segurança, pessoas lotaram as ruas e conseguiram mostrar que não se intimidam com as ameaças do governo

Verbena CÓRDULA

Junte-se a nós no Telegram Twitter  e VK .

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Era dezembro de 2001. Naquele momento, governava o presidente Fernando De la Rúa. E a Argentina “explodiu”, com mobilização que marcou um momento crucial na história política daquele país vizinho. A Argentina é um exemplo marcante da força da mobilização popular em tempos de crise econômica e instabilidade política. E foi por isso que logo após o atual presidente da República, Javier Milei, anunciar um pacote de medidas que, entre outras coisas, retira direitos históricos e arduamente conquistados pela classe trabalhadora, o povo foi às ruas mostrar sua indignação na noite de 20 de dezembro de 2023.

No final do século 20, a Argentinz enfrentou uma profunda crise econômica, caracterizada por altos níveis de desemprego, crescente desigualdade social, instabilidade financeira e políticas de ajustes, que atingiu de cheio a classe trabalhadora, e também a classe média acomodada. O governo do então presidente Fernando de la Rúa, eleito em 1999 com a promessa de estabilidade e reformas, viu sua popularidade despencar à medida que a crise se agravava. A situação atingiu o ápice em dezembro de 2001, quando uma série de protestos e manifestações eclodiram por todo o país. Milhões de argentinos e argentinas saíram às ruas para expressar sua indignação com a situação econômica, exigindo mudanças imediatas. Os protestos, conhecidos como o “Argentinazo”, foram marcados por uma variedade de manifestações pacíficas, mas também por episódios de violência e saques, refletindo a intensidade do descontentamento e desespero da população.

A resposta do governo à crise foi incapaz de conter a agitação social, o que acabou desembocando na renúncia de Fernando De la Rúa, no dia 20 de dezembro daquele mesmo ano. A renúncia do mandatário foi vista como um momento histórico, resultado da pressão popular exercida pelas massivas mobilizações nas ruas. No entanto, a queda de De la Rúa não trouxe estabilidade imediata ao país vizinho.  Pelo contrário. Trouxe um período de turbulência política, com uma sucessão rápida de presidentes interinos e uma crise institucional profunda, que marcou a história daquele país.

A Argentina se destaca em vários aspectos quando se trata de mobilização social e política. Uma das características distintivas é a tradição de um forte movimento sindical e operário, que historicamente desempenhou um papel fundamental na mobilização daquela sociedade. Os sindicatos argentinos têm sido ativos na defesa dos direitos trabalhistas e sociais, exercendo influência considerável na política nacional, embora haja críticas relacionadas ao atrelamento político das centrais sindicais sobretudo ao peronismo. Mas, uma coisa é certa: na América Latina não há sindicalismo mais forte que o argentino, capaz de assegurar salários dignos para profissões como motorista de transporte coletivo, porteiros, entre outras.

Supressão de direitos no governo de Milei

Mas, independentemente do movimento sindical, é fato que o povo argentino se manifesta frequentemente a respeito de questões sociais, políticas e econômicas, de modo a ocupar as ruas com a finalidade de protestar, de reivindicar direitos e expressar sua insatisfação. Os argentinos e argentinas têm sido notáveis por sua disposição em se envolver ativamente na esfera pública, seja por meio de manifestações, movimentos sociais organizados ou debates políticos.

Com relação específica ao governo atual, a coisa começou a ficar feia sobretudo porque, à frente do Ministério de Segurança da Argentina, Patricia Bullrich pôs em prática ações controversas que levantaram preocupações sobre a abordagem autoritária do governo em relação ao direito a protestar. Como acontece todos os anos, a população argentina realizou uma mobilização no último dia 20 de dezembro, para recordar os acontecimentos de 2001, mas foi duramente hostilizada pela ministra em questão, que implementou protocolo que autorizava o uso de força caso as pessoas que se manifestassem obstruíssem vias públicas. No entanto, apesar da ostensiva força de segurança dirigida para fazer valer o protocolo em questão, as pessoas manifestaram-se e, se não obstruíram completamente as principais vias da capital bonaerense, conseguiram mostrar que não se intimidariam com as ameaças do governo.

As políticas em relação aos protestos sociais e manifestações implementadas por Patricia Bullrich levantaram críticas, obviamente, porque restringem o direito legítimo dos cidadãos de se expressarem livremente. Essa abordagem, no entanto, não é nova, pois a ministra em sua gestão anterior (no governo de Maurício Macri) foi repressiva, levando a confrontos e detenções que questionaram os limites do exercício da liberdade de expressão, e dos direitos humanos. Sua anterior gestão esteve envolvida em casos que geraram polêmicas, como a morte do ativista Santiago Maldonado, que ocorreu durante uma operação policial em uma comunidade de indígenas Mapuche, em 2017. O jovem “desapareceu” após um confronto com a polícia e seu corpo foi encontrado mais tarde em um rio, fato que levantou profundas críticas sobre o uso da força por parte das autoridades, bem como críticas acerca de como foi investigado o ocorrido.

Mas “a gota que encheu o copo”, nesta quarta-feira (20), foi o pronunciamento do Presidente Javier Milei, gravado e transmitido em cadeia nacional, dando conta que, por Decreto, derrubou centenas de Leis consagradas naquele país. Transmitida às 21 horas, a mensagem de Milei levou, logo após finalizada, milhares (talvez milhões, pois se deu em todo o país, e não somente na capital Buenos Aires) de pessoas às ruas, a protestar contra o que classificam como “massacre” ao povo, pois conforme mencionado, aniquila direitos historicamente conquistados.

O objetivo deste texto é homenagear o povo argentino, que, como costumo dizer, tem no seu DNA nucleotídeos formados por uma Base nitrogenada (Adenina, Timina, Guanina ou Citosina), uma Desoxirribose (um açúcar por cinco carbonos) e um grupamento fosfato, mas tem, ainda, uma dose muito significativa de “não mexa com meus direito”. Fiquei consternada ao ver que Milei foi eleito com quase 56% dos votos válidos, mas, no fundo, tinha a esperança de que esse vacilo (como o que ocorreu aqui no Brasil em 2018) logo, logo se transformaria em uma reação. E foi rápido. E espero que tenha sido só o começo, de uma onda de mobilizações pelo país afora. E que o helicóptero já esteja a postos, à espera de Milei, que, como Fernando De la Rúa, não aguente a pressão e renuncie.

Diálogos do Sul: Povo argentino reage à brutalidade do neoliberalismo de Milei (uol.com.br)