Na Ucrânia, fracasso da “contraofensiva” de Zelenski e divisões internas reduzem os riscos. No Oriente Médio, nem o Irã, nem o Hezbollah querem a guerra – mas em Tel Aviv, os chacais estão soltos, têm armas nucleares e sede de conflitos.
Por Rafael POCH
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As coisas não iam bem no mundo com a Ucrânia e aí aparece Gaza. A famosa “contraofensiva” ucraniana, em condições de inferioridade bélica, aérea e numérica, já é reconhecida como um desastre até nos meios de comunicação ocidentais. O seu resultado prático foi uma grande carnificina: dezenas de milhares de mortos, mutilados, órfãos e viúvas. 90 mil baixas entre 4 de junho e setembro, segundo o presidente Putin. Mas o aparecimento do ainda mais terrível e ignominioso massacre israelense em Gaza complica tudo ainda mais para Kiev.
As dúvidas sobre a “rentabilidade” da ajuda dos EUA à Ucrânia em armas e dinheiro aumentaram em Washington. Pelo menos metade dos congressistas republicanos opõe-se à continuidade do financiamento de um poço sem fundo, cuja motivação reconhecida, “esgotar a Rússia” com vista à mudança de regime em Moscou, demonstra-se ilusória. O regime russo não se enfraqueceu, como nós próprios previmos erradamente em fevereiro de 2022; pelo contrário, fortaleceu-se. A Rússia é mais forte hoje do que naquela época.
O sistema de compensação por ferimentos de guerra ou morte parece funcionar e amortecer as consequências para a sociedade. A indústria da guerra funciona como uma locomotiva econômica dinamizadora de uma certa virada keynesiana, e o próprio conflito torna irreversível a ruptura com o Ocidente e a abordagem “eurasiana” de Moscou em relação ao Leste e ao Sul global. É verdade que também não há ofensiva russa no fronte, mas apenas uma pressão lenta, sem expor demasiado as próprias tropas, mas avançando muito lentamente. Isto poderia ser considerado uma situação de impasse militar que desgasta ambos os lados, se não fosse o fato de o tempo estar trabalhando para Moscou e corroendo o ânimo ucraniano.
Na ausência de uma perspectiva mínima de que as coisas possam melhorar, a resistência numantina não tem sentido e, seja qual for a forma como a encaramos, a Ucrânia carece dessas perspectivas.
Em Washington está se espalhando a ideia de que não é possível fazer tudo. Ajudar a Ucrânia na Europa, ajudar Israel no Médio Oriente e prepara-se para uma possível guerra com a China no Leste Asiático. Se tivermos de escolher entre a Ucrânia e Israel é claro que Israel vence — e haverá menos munições e menos dinheiro para Kiev. É esse o quadro que está corroendo o governo ucraniano.
Com o seu discurso numantino, o presidente Zelensky passou de superstar a ator coadjuvante no espetáculo ocidental. Há maior realismo entre os comandantes do seu exército, com uma tensão e rivalidade crescentes e de longa data entre o presidente e o general Valery Zaluzhny, chefe das forças armadas e possível rival político. Desde a presidência, as entrevistas e artigos de Zaluzhny no The Economist sobre a situação real no campo de batalha foram desfigurados. Zelensky demitiu o chefe das forças especiais, general Viktor Jorenko, sem consultar Zaluzhny ou dar qualquer motivo. Outro colaborador do chefe militar morreu esta semana enquanto abria, ou manuseava, um explosivo de “presente de aniversário”, no que poderia ser um atentado. E outro ex-assessor presidencial, Aleksei (agora Oleksi) Arestovich, fixou residência na Suíça por razões de segurança, depois de aumentar o tom das suas críticas ao presidente. Ninguém se lembra quando, em junho, o conhecido e agora realista Arestovich previu a vitória da contraofensiva fracassada “em duas ou três semanas”. Agora esse personagem, que fala russo e tem reputação entre os ucranianos de língua russa, insinua a sua possível candidatura presidencial numa eleição que Zelensky descarta… Em Kiev, chegou a hora das conspirações, e quem sabe se dos golpes de Estado, o que pode levar a algum tipo de acordo com dolorosas cessões territoriais à Rússia. Do jeito que estão as coisas, só poderia ser um acordo extremamente desfavorável e sem Zelensky, porque o presidente da “vitória até que as fronteiras de 2014 sejam recuperadas” não poderia assumi-lo…
Além de tudo isso, o que acontece em Gaza aumenta enormemente a temperatura global. O ataque do Hamas em 7 de outubro foi um desastre completo para Israel. A chave para a sua preparação longa e discreta foi o regresso à era pré-digital, com linhas de comunicação fechadas e sem que amigos no Líbano ou em Teerã tivessem conhecimento. Ninguém duvida que houve crueldade, vítimas civis e crimes de guerra. Mais um elo sangrento e indigno numa cadeia histórica de resistência justa e legítima, como as atrocidades contra civis da FLN na Argélia ou as dos indígenas no Far West. Mas, a menos que sigamos a versão do exército israelense, o que aconteceu exatamente ainda não foi esclarecido. As próprias vítimas israelenses e os edifícios queimados falam da intensidade do “fogo amigo” com armas pesadas que os palestinos nunca tiveram. Os perpetradores disseram que não esperavam conseguir tanto. Parece que agiram “espontaneamente” e escaparam pela fresta da cerca. De que outra forma explicar que fizeram reféns tailandeses sem valor de troca para serem trocados com os milhares de reféns que Israel mantém nas suas prisões? Tudo está por se saber, mas a humilhação do quarto ou quinto exército do mundo, dos seus sofisticados sistemas de escuta e informação, e dos seus políticos racistas e de extrema-direita para quem a Palestina era uma questão resolvida, tem sido enorme e é o ponto central.
Agora o que se trata é de restaurar o medo dos árabes diante de Israel militarmente humilhado. O atual massacre cumpre essa função: restaurar o medo, devastando tudo e aproveitando a situação para acelerar a limpeza étnica mantida com intensidade variável desde 1948. No início de novembro já tinham matado mais crianças palestinas do que desde 1967. Na Cisjordânia, desde 7 de outubro, o exército e os colonos armados, aos quais o governo distribuiu 150 mil armas de fogo, mataram 136 palestinos, 43 eram crianças. O resultado para os palestinos é mais do que ambíguo, porque militarmente não podem vencer, como aconteceu com os rebeldes do gueto de Varsóvia. São decisões que, com certeza, só quem não tem mais nada a perder pode entender…
Na Síria há ataques diários de aeronaves israelenses e combates envolvendo tropas dos EUA. O Egito e a Jordânia rejeitam o plano israelense de transferir para eles os palestinos deportados. Mais preocupante para Israel poderá ser a atitude da Turquia… Toda a região está em brasa. Em qualquer caso, se uma segunda frente não for aberta na fronteira libanesa, Gaza e o Hamas podem ser literalmente aniquilados pelo rolo compressor militar de Israel. Por outro lado, se essa frente se abrisse e eclodisse uma guerra regional, as suas consequências seriam imprevisíveis. O Irã e o Hezbollah têm capacidades de mísseis para responder com ataques à frota dos Estados Unidos, destruir as suas bases militares na região, perturbar o tráfego de petróleo no Estreito de Ormuz e causar grande destruição em cidades israelenses. Nesse caso, Israel poderia usar as suas armas nucleares contra o Irã. O menos importante é a ordem dos acontecimentos. O que conta é a cadeia potencial para a catástrofe. O assunto é sério.
Há pouco tempo não havia nada pior do que os perigos decorrentes da guerra na Ucrânia. Hoje, isso existe. Nunca, nem mesmo durante a Guerra Fria, vivemos tão perigosamente como vivemos agora.
Tradução: Rôney Rodrigues