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Hugo Dionísio
September 27, 2025
© Photo: SCF

Um futuro que vem de um passado que pensámos ser excepção, mas que ameaça tornar-se em regra!

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Já não bastava a transformação em piadas de mau gosto de muitas das normas constantes do Tratado da União Europeia. Não contentes por desfazerem quase por completo a pouca credibilidade institucional e legislativa da União Europeia, apostando na guerra quando, logo no n.º 1 do artigo 3.º do TUE, se diz que a União tem por objectivo “promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos”, ou o disposto no artigo 8.º, n.º 1, segundo o qual “A União desenvolve relações privilegiadas com os países vizinhos, a fim de criar um espaço de prosperidade e boa vizinhança, fundado nos valores da União e caracterizado por relações estreitas e pacíficas, baseadas na cooperação”.

Desta feita, incapazes de conviver com a diferença de opinião, os “líderes” não eleitos desta brutal máquina burocrática preparam, soturnamente, um golpe que visa derrogar a regra da unanimidade das deliberações do Conselho Europeu em matéria de Política Externa e de Segurança Comum, o que inclui a Política Comum de Segurança e Defesa, substituindo-a pela regra da maioria qualificada. Se é para ir para a guerra, têm de ir todos, e não se fala mais nisso!

O “estudo” desta possibilidade, em desenvolvimento a partir do momento em que Eslováquia e Hungria tiveram o desplante de defender os seus interesses soberanos e a segurança energética, económica e social dos respectivos povos, não pode, infelizmente, ser encarado como uma excepção à constante exclusão, na prática diária, dos princípios instituídos nos tratados, em alguns casos apresentados aos povos que os aprovaram em referendo, mesmo que, em alguns casos, os referendos se tenham repetido até dar conta certa. O que nem foi o caso português, não fosse o povo lusitano enganar-se. Cá para nós, não sendo tal previsível à data, não obstante, os bem-comportados líderes europeus do sul garantiram que nem dos conteúdos se falasse. O facto é que o afastamento do direito de veto nas questões de defesa e segurança está em total conexão com o comportamento prepotente da Comissão da Sr.ª Von der Leyen.

Um dos casos mais paradigmáticos, e que não terá passado em claro às gentes mais atentas, é que, cabendo ao Presidente do Conselho Europeu “a representação externa da União nas matérias do âmbito da política externa e de segurança comum”, paradoxalmente, ninguém viu António Costa na sala oval, no dia em que a turma europeia lá foi tomar uma lição de relações internacionais do tutor federal da UE, de seu nome Donald Trump.

Sabendo que, por exemplo, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do TFUE, “a política externa e de segurança comum (…) é definida e executada pelo Conselho Europeu e pelo Conselho”, e sabendo o que se sabe sobre as prioridades cimeiras da política da União, não tem sido grande a surpresa assistir a um recatado Presidente do Conselho Europeu e a uma efusiva e veemente Presidente da Comissão Europeia, acompanhada da aguçadíssima Kaja Kallas.

Comprovando, de algum modo, as presunções daqueles que, como eu, acreditam mais que a atribuição da Presidência do Conselho Europeu está mais para um luxuoso degredo do que para uma escolha individual, tratando-se, antes, de uma contingência que, simultaneamente, foi justificação para o abandono do cargo de Primeiro-Ministro com maioria absoluta e, ao mesmo tempo, resultado de uma ameaça de prisão, caso António Costa persistisse na manutenção do poder, corporizada através de um inquérito com declarações comprometedoras de um outro homónimo. Mas que, apesar do exílio e das mudanças de opinião do visado, não foi arquivado, não fosse o mesmo tentar imiscuir-se nas eleições presidenciais ou em qualquer outro processo que impedisse a verdadeira mudança de regime a que assistimos. A verdade é que o ex-Primeiro-Ministro português está mais invisível na presidência do Conselho Europeu do que alguma vez esteve na liderança do governo de um país periférico como Portugal.

Kaja Kallas, que apenas tem competências para executar as decisões do órgão presidido por António Costa, comporta-se como dona e senhora da política europeia de segurança, o que faz em estreita conexão com Ursula von der Leyen, essa sim, a verdadeira chefe do departamento de guerra em que se transformaram os órgãos superiores da UE. Assistir a um comunicado da Comissão Europeia é como assistir às pré-declarações de guerra do tempo das grandes guerras. Os órgãos da UE transformaram-se numa espécie de ministérios de guerra da União Europeia.

Totalmente imunes à vergonha de subverterem todos os “elevados princípios e valores europeus” consagrados nos tratados, à medida que se vão multiplicando e alargando as fissuras na designada coesão europeia, deixando transparecer o desconforto de determinados Estados‑membros com as decisões da Presidente da Comissão Europeia, vão‑se também, em igual medida, multiplicando os esforços por parte desta, de Kaja Kallas, António Costa e até talvez de Mark Rutte, que é secretário‑geral da NATO, por conta e ação das maiores potências que comandam os destinos da União, no sentido de estudarem uma qualquer brecha jurídica que permita a derrogação da regra da unanimidade das decisões tomadas em matéria de política de Segurança e Defesa comum ou, em alternativa, encontrarem uma qualquer forma de chantagem que obrigue a Eslováquia e a Hungria a aceitarem as suas decisões ou, até, quem sabe, a aceitarem a alteração ao tratado que institui a União Europeia, aí inscrevendo que também este tipo de decisões passam a ser tomadas por maioria qualificada.

O que está evidente é que esta gente aceita com muito maus fígados as opiniões contrárias dos outros e, perante a incapacidade para levarem a Hungria e a Eslováquia a comprarem GNL norte‑americano cinco vezes mais dispendioso do que o gás via pipeline vindo da Federação Russa, todos pudemos assistir à impavidez, cinismo, silêncio cúmplice e velado agrado com que abordaram a destruição, pelos seus patrocinados ucranianos, das estruturas de bombeamento do gasoduto de Druzhba. Se não foi de uma forma, foi de outra. Nem uma condenação, nem uma palavra de compreensão pela consequência negativa que o atentado contra uma estrutura civil teve para alguns povos europeus.

Numa altura tão difícil como a que vivemos, em que o risco de confrontação nuclear nos deveria a todos assustar de morte e tornar-nos capazes de chegar aos mais difíceis compromissos em nome da paz, da vida, da esperança e da amizade. Não! Os afamados “líderes” europeus insistem na confrontação, incapazes de esgrimir um gesto, um vocábulo ou uma simples expressão de que estão preparados para dialogar, negociar e colocar um fim a este terror. Nem uma declaração conseguimos encontrar neste sentido. Apenas declarações prepotentes, segundo as quais será pela força que obrigarão a Rússia a negociar, leia-se, “capitular”.

Por cada vez que Vladimir Putin enuncia a sua disposição para dialogar, conversar, apenas encontramos a ladainha extremista e fanática do costume: “com os russos não se pode negociar”; “os russos não são de fiar”; “os russos são uns mentirosos”; “enquanto houver Putin, nem pensar”; “os russos só percebem a linguagem da força”; ou a “Rússia ser má, nós bons”, como diz o bandeirista ogre verde tantas e tantas vezes, qual máquina repetidora de ódio e loucura.

Não admira que, perante tal inflexibilidade, mesmo quando as autoridades russas anunciaram não se importar com a entrada da Ucrânia na UE, o que a colocaria, indiretamente, na NATO, apenas tendo de conviver com um exército seu colocado na Polónia, na Estónia, Letónia e Lituânia, nem assim as alminhas eurocráticas conseguiram furar a sua blindada bolha russofóbica. É como se não quisessem perder esta oportunidade para proceder a uma vingança histórica, para a qual tão bem aponta o final do último discurso sobre o estado da União, em que a Presidente da Comissão agraciou uma unidade como os “Homens da Floresta”, a qual, nos seus tempos áureos, durante a invasão nazi da Europa, não se cansou de cometer crimes contra a humanidade em solo lituano.

Assim, não querendo enjeitar nenhuma possibilidade de perderem esta oportunidade para castigarem quem é culpado por ter derrotado o nazi‑fascismo e ter-nos livrado, quase durante 80 anos, dessa loucura hedionda que é o fascismo, esta gente empenha-se na discussão sobre a introdução da votação por maioria qualificada em áreas como a expansão, política externa e política de segurança e defesa na União Europeia, em detrimento da atual exigência de unanimidade, ideia que tem vindo a ganhar força.

Frequentemente, os defensores desta mudança apelam, em tom justificativo, a uma maior eficiência e agilidade na tomada de decisões, evitando os embaraços de terem de dialogar e comprometer-se com os desavindos. Tal como fazem em todas as outras áreas da governação, em que marcham alegremente em direção ao mais elevado abismo que conseguem encontrar, sujeitando-nos a uma amarga perda de condições sociais e democráticas, também neste caso esta gente parece incapaz de perceber que a exigência de unanimidade em matérias como a guerra não apenas constitui o mais importante e decisivo instrumento de promoção da paz, de que o tratado fala, visando dificultar que um determinado bloco interno possa arrastar todos os outros para uma catástrofe, como, insistindo em tal caminho, estar-se-á a abrir a porta a que determinados Estados-membros comecem a cogitar se não estarão mais seguros sozinhos do que acompanhados. O que, não sendo uma catástrofe, é, pelo menos, uma contradição para quem tanto jura defender esta União Europeia.

Sob uma capa que refere a necessidade de “eficiência e agilidade” nas decisões sobre segurança e defesa europeias, o que estará em causa é, antes, a concepção de um pretexto para uma perigosíssima concentração de poder, bem como para a marginalização de determinados Estados-membros, exacerbando, ainda mais, as desigualdades existentes. A exigência de 55% de aprovação, correspondendo a 65% da população europeia, representada pelos estados maioritários, pode ser cumprida com pouco mais do que metade dos Estados-membros, que assim terão o poder de impor a sua tirania aos restantes.

Mas esta discussão só é possível porque temos assistido a uma acelerada erosão da soberania nacional dos povos da UE, em detrimento de uma máquina burocrática autofágica.

Atualmente, o princípio da unanimidade garante que nenhum Estado-membro possa ser forçado a aceitar decisões que contrariem os seus interesses nacionais fundamentais. Este mecanismo, embora possa, por vezes, levar a um processo decisório mais lento, funciona como uma salvaguarda essencial da soberania e do respeito pela diversidade dentro da UE. A transição para a maioria qualificada, em que uma decisão pode ser aprovada mesmo contra a vontade de alguns Estados, representaria uma mudança com resultados sísmicos.

Imaginemos um cenário em que a maioria qualificada é aplicada à expansão da UE. Um país com fortes contradições históricas e económicas com um potencial Estado candidato poderia ver os seus receios sobre a estabilidade regional ou a capacidade de integração ignorados, se a maioria dos outros Estados decidisse avançar. Não esqueçamos que Hungria, Roménia e até a Polónia, embora manietada pelos “yes men” do MI6, têm graves problemas com as forças políticas que compõem o regime de Kiev, aduladoras do período da ocupação nazi dos seus territórios, tendo então descarregado o seu fanatismo sobre milhares de seres humanos dessas nacionalidades.

Da mesma forma, em política externa, um Estado-membro poderia ser arrastado para posições ou sanções com as quais não concorda, comprometendo as suas relações diplomáticas e económicas. A capacidade de um país defender os seus interesses estratégicos e legítimos seria severamente comprometida. Defensores da manutenção da regra da unanimidade esgrimem com o argumento de que “a regra incentiva negociações mais alargadas, aumenta a legitimidade democrática, reforça a unidade, melhora a implementação e oferece aos pequenos Estados um escudo contra as exigências dos países maiores”, ao passo que os detratores argumentam que “a unanimidade dificulta o processo de tomada de decisões, fomenta uma mentalidade de menor denominador comum, convida a criar esquemas de ‘cavalos de Troia’ com intenções maliciosas e impede a UE de realizar todo o seu potencial na cena mundial”.

A verdade é que, aquando da adoção do Tratado de Lisboa, a ideia não passou e foi em nome da coesão europeia que, em matérias tão importantes como as da guerra e da paz, a regra da unanimidade continuasse a existir. Contudo, não significa que a nomenklatura eurocrática não se tenha esforçado por encontrar justificações doutrinárias para as “necessárias” derrogações (“abstenção construtiva”, “derrogação especial” e “cláusula passerelle”). Contudo, contra todas elas, os Estados-membros podem sempre invocar os seus interesses, estratégicos ou vitais, para exercer o seu veto.

Diz-nos a história que, quando um partido da guerra se convence desse caminho, apenas a luta organizada das massas e o sério questionamento da ordem antidemocrática imposta poderão travar tal destino. Afinal, duvido que haja muitos europeus que, se questionados, estariam na disposição de ir, ou enviar a sua prole, para morrer nas trincheiras do Donbass.

A adoção da maioria qualificada em áreas estratégicas não deixará, com toda a certeza, de aprofundar a existência de uma UE a duas velocidades, ou até mesmo fragmentá-la a médio/longo prazo. Os Estados que se sentirem consistentemente arredados das grandes discussões e cujos interesses forem sistematicamente preteridos pelas “grandes potências” europeias, podem começar a questionar o seu lugar e benefício na União.

Quando as decisões cruciais são tomadas sem o seu pleno consentimento, estes países não deixarão de desenvolver um sentimento de alienação e ressentimento. A longo prazo, ao minar a confiança mútua e a solidariedade, estes pilares essenciais de qualquer projeto de integração supranacional serão corroídos de morte. A União Europeia, que ainda diz orgulhar-se de ser um projeto de paz e cooperação, está, paulatinamente, a tornar-se um palco plutocrático, prenhe de regimes de excepção, excepções que se tornam regras, discricionariedade, unilateralismo e autocracia, de que a usurpação das funções de António Costa por von der Leyen é apenas um indício.

Como todos poderemos comprovar, dentro de pouco tempo, se nada for invertido, assistiremos a um drástico aumento do número de decisões que visam favorecer os interesses das grandes potências económicas, que poderão impor custos desproporcionais a países mais pequenos ou em desenvolvimento. Estas decisões podem ditar padrões de comércio, acordos de segurança ou até mesmo o envolvimento em conflitos, sem que os Estados menos influentes tenham tido voz suficiente para garantir que as suas vulnerabilidades e necessidades específicas sejam consideradas. Mesmo sem a derrogação da regra da unanimidade, os poderes que controlam a EU não deixarão de desenvolver as provocações e as bandeiras falsas necessárias ao condicionamento de quem quer ficar de fora deste confronto.

O princípio de uma união da democracia e dos povos exigiria que o bloco fosse capaz de ser justo para todos, e não um mecanismo que reforça as posições dominantes de alguns em detrimento de outros. Mas não existe nada de mais contraditório do que a conjugação da natureza real e material da UE com os princípios que preconiza. Trinta e quatro anos passados da queda da URSS, todos começamos a perceber melhor que tipo de construção é, de facto, a União Europeia, e como tal colide com os princípios que enuncia.

Numa época que exige à UE que seja o que não é — um polo cooperativo, fraterno e de amizade entre os povos europeus soberanos —, a natureza profunda desta construção burocrática, perante a crise existencial, atira-a para o único papel que com essa mesma natureza combina: o aprofundamento da vassalagem aos EUA, funcionando como bóia de salvação da hegemonia ou, em último caso, de barreira de exclusão das relações multipolares.

É neste quadro que a exigência de uma ditadura da maioria (o que se confunde tantas vezes com “democracia”) se coaduna com o papel que Trump exige à UE. E esta, perante a vertigem da sua autodestruição, é incapaz de recuar e tomar um caminho novo, um caminho que nos desvie a todos do destino fatal que nos está reservado. Mas, para tal acontecer, à cabeça dos órgãos da UE não poderiam estar as ideias velhas, as ideias ultrapassadas, transportadas pelos descendentes dos derrotados. Para tal, seria necessária uma nova geração, despida do ódio, amargura e frustração que a derrota do nazi-fascismo para eles comportou.

A ideia de que almejar maior “eficiência” justifica a perda de voz dos que a isto se opõem, em prol de uma tomada de decisão mais rápida para a maioria, é uma falácia perigosa, que visa tão só, com palavras bonitas, reservar-nos o futuro mais negro que conseguirmos imaginar.

Um futuro que vem de um passado que pensámos ser excepção, mas que ameaça tornar-se em regra!

Afastar o veto nacional para fazer da excepção… a regra!

Um futuro que vem de um passado que pensámos ser excepção, mas que ameaça tornar-se em regra!

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Já não bastava a transformação em piadas de mau gosto de muitas das normas constantes do Tratado da União Europeia. Não contentes por desfazerem quase por completo a pouca credibilidade institucional e legislativa da União Europeia, apostando na guerra quando, logo no n.º 1 do artigo 3.º do TUE, se diz que a União tem por objectivo “promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos”, ou o disposto no artigo 8.º, n.º 1, segundo o qual “A União desenvolve relações privilegiadas com os países vizinhos, a fim de criar um espaço de prosperidade e boa vizinhança, fundado nos valores da União e caracterizado por relações estreitas e pacíficas, baseadas na cooperação”.

Desta feita, incapazes de conviver com a diferença de opinião, os “líderes” não eleitos desta brutal máquina burocrática preparam, soturnamente, um golpe que visa derrogar a regra da unanimidade das deliberações do Conselho Europeu em matéria de Política Externa e de Segurança Comum, o que inclui a Política Comum de Segurança e Defesa, substituindo-a pela regra da maioria qualificada. Se é para ir para a guerra, têm de ir todos, e não se fala mais nisso!

O “estudo” desta possibilidade, em desenvolvimento a partir do momento em que Eslováquia e Hungria tiveram o desplante de defender os seus interesses soberanos e a segurança energética, económica e social dos respectivos povos, não pode, infelizmente, ser encarado como uma excepção à constante exclusão, na prática diária, dos princípios instituídos nos tratados, em alguns casos apresentados aos povos que os aprovaram em referendo, mesmo que, em alguns casos, os referendos se tenham repetido até dar conta certa. O que nem foi o caso português, não fosse o povo lusitano enganar-se. Cá para nós, não sendo tal previsível à data, não obstante, os bem-comportados líderes europeus do sul garantiram que nem dos conteúdos se falasse. O facto é que o afastamento do direito de veto nas questões de defesa e segurança está em total conexão com o comportamento prepotente da Comissão da Sr.ª Von der Leyen.

Um dos casos mais paradigmáticos, e que não terá passado em claro às gentes mais atentas, é que, cabendo ao Presidente do Conselho Europeu “a representação externa da União nas matérias do âmbito da política externa e de segurança comum”, paradoxalmente, ninguém viu António Costa na sala oval, no dia em que a turma europeia lá foi tomar uma lição de relações internacionais do tutor federal da UE, de seu nome Donald Trump.

Sabendo que, por exemplo, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do TFUE, “a política externa e de segurança comum (…) é definida e executada pelo Conselho Europeu e pelo Conselho”, e sabendo o que se sabe sobre as prioridades cimeiras da política da União, não tem sido grande a surpresa assistir a um recatado Presidente do Conselho Europeu e a uma efusiva e veemente Presidente da Comissão Europeia, acompanhada da aguçadíssima Kaja Kallas.

Comprovando, de algum modo, as presunções daqueles que, como eu, acreditam mais que a atribuição da Presidência do Conselho Europeu está mais para um luxuoso degredo do que para uma escolha individual, tratando-se, antes, de uma contingência que, simultaneamente, foi justificação para o abandono do cargo de Primeiro-Ministro com maioria absoluta e, ao mesmo tempo, resultado de uma ameaça de prisão, caso António Costa persistisse na manutenção do poder, corporizada através de um inquérito com declarações comprometedoras de um outro homónimo. Mas que, apesar do exílio e das mudanças de opinião do visado, não foi arquivado, não fosse o mesmo tentar imiscuir-se nas eleições presidenciais ou em qualquer outro processo que impedisse a verdadeira mudança de regime a que assistimos. A verdade é que o ex-Primeiro-Ministro português está mais invisível na presidência do Conselho Europeu do que alguma vez esteve na liderança do governo de um país periférico como Portugal.

Kaja Kallas, que apenas tem competências para executar as decisões do órgão presidido por António Costa, comporta-se como dona e senhora da política europeia de segurança, o que faz em estreita conexão com Ursula von der Leyen, essa sim, a verdadeira chefe do departamento de guerra em que se transformaram os órgãos superiores da UE. Assistir a um comunicado da Comissão Europeia é como assistir às pré-declarações de guerra do tempo das grandes guerras. Os órgãos da UE transformaram-se numa espécie de ministérios de guerra da União Europeia.

Totalmente imunes à vergonha de subverterem todos os “elevados princípios e valores europeus” consagrados nos tratados, à medida que se vão multiplicando e alargando as fissuras na designada coesão europeia, deixando transparecer o desconforto de determinados Estados‑membros com as decisões da Presidente da Comissão Europeia, vão‑se também, em igual medida, multiplicando os esforços por parte desta, de Kaja Kallas, António Costa e até talvez de Mark Rutte, que é secretário‑geral da NATO, por conta e ação das maiores potências que comandam os destinos da União, no sentido de estudarem uma qualquer brecha jurídica que permita a derrogação da regra da unanimidade das decisões tomadas em matéria de política de Segurança e Defesa comum ou, em alternativa, encontrarem uma qualquer forma de chantagem que obrigue a Eslováquia e a Hungria a aceitarem as suas decisões ou, até, quem sabe, a aceitarem a alteração ao tratado que institui a União Europeia, aí inscrevendo que também este tipo de decisões passam a ser tomadas por maioria qualificada.

O que está evidente é que esta gente aceita com muito maus fígados as opiniões contrárias dos outros e, perante a incapacidade para levarem a Hungria e a Eslováquia a comprarem GNL norte‑americano cinco vezes mais dispendioso do que o gás via pipeline vindo da Federação Russa, todos pudemos assistir à impavidez, cinismo, silêncio cúmplice e velado agrado com que abordaram a destruição, pelos seus patrocinados ucranianos, das estruturas de bombeamento do gasoduto de Druzhba. Se não foi de uma forma, foi de outra. Nem uma condenação, nem uma palavra de compreensão pela consequência negativa que o atentado contra uma estrutura civil teve para alguns povos europeus.

Numa altura tão difícil como a que vivemos, em que o risco de confrontação nuclear nos deveria a todos assustar de morte e tornar-nos capazes de chegar aos mais difíceis compromissos em nome da paz, da vida, da esperança e da amizade. Não! Os afamados “líderes” europeus insistem na confrontação, incapazes de esgrimir um gesto, um vocábulo ou uma simples expressão de que estão preparados para dialogar, negociar e colocar um fim a este terror. Nem uma declaração conseguimos encontrar neste sentido. Apenas declarações prepotentes, segundo as quais será pela força que obrigarão a Rússia a negociar, leia-se, “capitular”.

Por cada vez que Vladimir Putin enuncia a sua disposição para dialogar, conversar, apenas encontramos a ladainha extremista e fanática do costume: “com os russos não se pode negociar”; “os russos não são de fiar”; “os russos são uns mentirosos”; “enquanto houver Putin, nem pensar”; “os russos só percebem a linguagem da força”; ou a “Rússia ser má, nós bons”, como diz o bandeirista ogre verde tantas e tantas vezes, qual máquina repetidora de ódio e loucura.

Não admira que, perante tal inflexibilidade, mesmo quando as autoridades russas anunciaram não se importar com a entrada da Ucrânia na UE, o que a colocaria, indiretamente, na NATO, apenas tendo de conviver com um exército seu colocado na Polónia, na Estónia, Letónia e Lituânia, nem assim as alminhas eurocráticas conseguiram furar a sua blindada bolha russofóbica. É como se não quisessem perder esta oportunidade para proceder a uma vingança histórica, para a qual tão bem aponta o final do último discurso sobre o estado da União, em que a Presidente da Comissão agraciou uma unidade como os “Homens da Floresta”, a qual, nos seus tempos áureos, durante a invasão nazi da Europa, não se cansou de cometer crimes contra a humanidade em solo lituano.

Assim, não querendo enjeitar nenhuma possibilidade de perderem esta oportunidade para castigarem quem é culpado por ter derrotado o nazi‑fascismo e ter-nos livrado, quase durante 80 anos, dessa loucura hedionda que é o fascismo, esta gente empenha-se na discussão sobre a introdução da votação por maioria qualificada em áreas como a expansão, política externa e política de segurança e defesa na União Europeia, em detrimento da atual exigência de unanimidade, ideia que tem vindo a ganhar força.

Frequentemente, os defensores desta mudança apelam, em tom justificativo, a uma maior eficiência e agilidade na tomada de decisões, evitando os embaraços de terem de dialogar e comprometer-se com os desavindos. Tal como fazem em todas as outras áreas da governação, em que marcham alegremente em direção ao mais elevado abismo que conseguem encontrar, sujeitando-nos a uma amarga perda de condições sociais e democráticas, também neste caso esta gente parece incapaz de perceber que a exigência de unanimidade em matérias como a guerra não apenas constitui o mais importante e decisivo instrumento de promoção da paz, de que o tratado fala, visando dificultar que um determinado bloco interno possa arrastar todos os outros para uma catástrofe, como, insistindo em tal caminho, estar-se-á a abrir a porta a que determinados Estados-membros comecem a cogitar se não estarão mais seguros sozinhos do que acompanhados. O que, não sendo uma catástrofe, é, pelo menos, uma contradição para quem tanto jura defender esta União Europeia.

Sob uma capa que refere a necessidade de “eficiência e agilidade” nas decisões sobre segurança e defesa europeias, o que estará em causa é, antes, a concepção de um pretexto para uma perigosíssima concentração de poder, bem como para a marginalização de determinados Estados-membros, exacerbando, ainda mais, as desigualdades existentes. A exigência de 55% de aprovação, correspondendo a 65% da população europeia, representada pelos estados maioritários, pode ser cumprida com pouco mais do que metade dos Estados-membros, que assim terão o poder de impor a sua tirania aos restantes.

Mas esta discussão só é possível porque temos assistido a uma acelerada erosão da soberania nacional dos povos da UE, em detrimento de uma máquina burocrática autofágica.

Atualmente, o princípio da unanimidade garante que nenhum Estado-membro possa ser forçado a aceitar decisões que contrariem os seus interesses nacionais fundamentais. Este mecanismo, embora possa, por vezes, levar a um processo decisório mais lento, funciona como uma salvaguarda essencial da soberania e do respeito pela diversidade dentro da UE. A transição para a maioria qualificada, em que uma decisão pode ser aprovada mesmo contra a vontade de alguns Estados, representaria uma mudança com resultados sísmicos.

Imaginemos um cenário em que a maioria qualificada é aplicada à expansão da UE. Um país com fortes contradições históricas e económicas com um potencial Estado candidato poderia ver os seus receios sobre a estabilidade regional ou a capacidade de integração ignorados, se a maioria dos outros Estados decidisse avançar. Não esqueçamos que Hungria, Roménia e até a Polónia, embora manietada pelos “yes men” do MI6, têm graves problemas com as forças políticas que compõem o regime de Kiev, aduladoras do período da ocupação nazi dos seus territórios, tendo então descarregado o seu fanatismo sobre milhares de seres humanos dessas nacionalidades.

Da mesma forma, em política externa, um Estado-membro poderia ser arrastado para posições ou sanções com as quais não concorda, comprometendo as suas relações diplomáticas e económicas. A capacidade de um país defender os seus interesses estratégicos e legítimos seria severamente comprometida. Defensores da manutenção da regra da unanimidade esgrimem com o argumento de que “a regra incentiva negociações mais alargadas, aumenta a legitimidade democrática, reforça a unidade, melhora a implementação e oferece aos pequenos Estados um escudo contra as exigências dos países maiores”, ao passo que os detratores argumentam que “a unanimidade dificulta o processo de tomada de decisões, fomenta uma mentalidade de menor denominador comum, convida a criar esquemas de ‘cavalos de Troia’ com intenções maliciosas e impede a UE de realizar todo o seu potencial na cena mundial”.

A verdade é que, aquando da adoção do Tratado de Lisboa, a ideia não passou e foi em nome da coesão europeia que, em matérias tão importantes como as da guerra e da paz, a regra da unanimidade continuasse a existir. Contudo, não significa que a nomenklatura eurocrática não se tenha esforçado por encontrar justificações doutrinárias para as “necessárias” derrogações (“abstenção construtiva”, “derrogação especial” e “cláusula passerelle”). Contudo, contra todas elas, os Estados-membros podem sempre invocar os seus interesses, estratégicos ou vitais, para exercer o seu veto.

Diz-nos a história que, quando um partido da guerra se convence desse caminho, apenas a luta organizada das massas e o sério questionamento da ordem antidemocrática imposta poderão travar tal destino. Afinal, duvido que haja muitos europeus que, se questionados, estariam na disposição de ir, ou enviar a sua prole, para morrer nas trincheiras do Donbass.

A adoção da maioria qualificada em áreas estratégicas não deixará, com toda a certeza, de aprofundar a existência de uma UE a duas velocidades, ou até mesmo fragmentá-la a médio/longo prazo. Os Estados que se sentirem consistentemente arredados das grandes discussões e cujos interesses forem sistematicamente preteridos pelas “grandes potências” europeias, podem começar a questionar o seu lugar e benefício na União.

Quando as decisões cruciais são tomadas sem o seu pleno consentimento, estes países não deixarão de desenvolver um sentimento de alienação e ressentimento. A longo prazo, ao minar a confiança mútua e a solidariedade, estes pilares essenciais de qualquer projeto de integração supranacional serão corroídos de morte. A União Europeia, que ainda diz orgulhar-se de ser um projeto de paz e cooperação, está, paulatinamente, a tornar-se um palco plutocrático, prenhe de regimes de excepção, excepções que se tornam regras, discricionariedade, unilateralismo e autocracia, de que a usurpação das funções de António Costa por von der Leyen é apenas um indício.

Como todos poderemos comprovar, dentro de pouco tempo, se nada for invertido, assistiremos a um drástico aumento do número de decisões que visam favorecer os interesses das grandes potências económicas, que poderão impor custos desproporcionais a países mais pequenos ou em desenvolvimento. Estas decisões podem ditar padrões de comércio, acordos de segurança ou até mesmo o envolvimento em conflitos, sem que os Estados menos influentes tenham tido voz suficiente para garantir que as suas vulnerabilidades e necessidades específicas sejam consideradas. Mesmo sem a derrogação da regra da unanimidade, os poderes que controlam a EU não deixarão de desenvolver as provocações e as bandeiras falsas necessárias ao condicionamento de quem quer ficar de fora deste confronto.

O princípio de uma união da democracia e dos povos exigiria que o bloco fosse capaz de ser justo para todos, e não um mecanismo que reforça as posições dominantes de alguns em detrimento de outros. Mas não existe nada de mais contraditório do que a conjugação da natureza real e material da UE com os princípios que preconiza. Trinta e quatro anos passados da queda da URSS, todos começamos a perceber melhor que tipo de construção é, de facto, a União Europeia, e como tal colide com os princípios que enuncia.

Numa época que exige à UE que seja o que não é — um polo cooperativo, fraterno e de amizade entre os povos europeus soberanos —, a natureza profunda desta construção burocrática, perante a crise existencial, atira-a para o único papel que com essa mesma natureza combina: o aprofundamento da vassalagem aos EUA, funcionando como bóia de salvação da hegemonia ou, em último caso, de barreira de exclusão das relações multipolares.

É neste quadro que a exigência de uma ditadura da maioria (o que se confunde tantas vezes com “democracia”) se coaduna com o papel que Trump exige à UE. E esta, perante a vertigem da sua autodestruição, é incapaz de recuar e tomar um caminho novo, um caminho que nos desvie a todos do destino fatal que nos está reservado. Mas, para tal acontecer, à cabeça dos órgãos da UE não poderiam estar as ideias velhas, as ideias ultrapassadas, transportadas pelos descendentes dos derrotados. Para tal, seria necessária uma nova geração, despida do ódio, amargura e frustração que a derrota do nazi-fascismo para eles comportou.

A ideia de que almejar maior “eficiência” justifica a perda de voz dos que a isto se opõem, em prol de uma tomada de decisão mais rápida para a maioria, é uma falácia perigosa, que visa tão só, com palavras bonitas, reservar-nos o futuro mais negro que conseguirmos imaginar.

Um futuro que vem de um passado que pensámos ser excepção, mas que ameaça tornar-se em regra!

Um futuro que vem de um passado que pensámos ser excepção, mas que ameaça tornar-se em regra!

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Já não bastava a transformação em piadas de mau gosto de muitas das normas constantes do Tratado da União Europeia. Não contentes por desfazerem quase por completo a pouca credibilidade institucional e legislativa da União Europeia, apostando na guerra quando, logo no n.º 1 do artigo 3.º do TUE, se diz que a União tem por objectivo “promover a paz, os seus valores e o bem-estar dos seus povos”, ou o disposto no artigo 8.º, n.º 1, segundo o qual “A União desenvolve relações privilegiadas com os países vizinhos, a fim de criar um espaço de prosperidade e boa vizinhança, fundado nos valores da União e caracterizado por relações estreitas e pacíficas, baseadas na cooperação”.

Desta feita, incapazes de conviver com a diferença de opinião, os “líderes” não eleitos desta brutal máquina burocrática preparam, soturnamente, um golpe que visa derrogar a regra da unanimidade das deliberações do Conselho Europeu em matéria de Política Externa e de Segurança Comum, o que inclui a Política Comum de Segurança e Defesa, substituindo-a pela regra da maioria qualificada. Se é para ir para a guerra, têm de ir todos, e não se fala mais nisso!

O “estudo” desta possibilidade, em desenvolvimento a partir do momento em que Eslováquia e Hungria tiveram o desplante de defender os seus interesses soberanos e a segurança energética, económica e social dos respectivos povos, não pode, infelizmente, ser encarado como uma excepção à constante exclusão, na prática diária, dos princípios instituídos nos tratados, em alguns casos apresentados aos povos que os aprovaram em referendo, mesmo que, em alguns casos, os referendos se tenham repetido até dar conta certa. O que nem foi o caso português, não fosse o povo lusitano enganar-se. Cá para nós, não sendo tal previsível à data, não obstante, os bem-comportados líderes europeus do sul garantiram que nem dos conteúdos se falasse. O facto é que o afastamento do direito de veto nas questões de defesa e segurança está em total conexão com o comportamento prepotente da Comissão da Sr.ª Von der Leyen.

Um dos casos mais paradigmáticos, e que não terá passado em claro às gentes mais atentas, é que, cabendo ao Presidente do Conselho Europeu “a representação externa da União nas matérias do âmbito da política externa e de segurança comum”, paradoxalmente, ninguém viu António Costa na sala oval, no dia em que a turma europeia lá foi tomar uma lição de relações internacionais do tutor federal da UE, de seu nome Donald Trump.

Sabendo que, por exemplo, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do TFUE, “a política externa e de segurança comum (…) é definida e executada pelo Conselho Europeu e pelo Conselho”, e sabendo o que se sabe sobre as prioridades cimeiras da política da União, não tem sido grande a surpresa assistir a um recatado Presidente do Conselho Europeu e a uma efusiva e veemente Presidente da Comissão Europeia, acompanhada da aguçadíssima Kaja Kallas.

Comprovando, de algum modo, as presunções daqueles que, como eu, acreditam mais que a atribuição da Presidência do Conselho Europeu está mais para um luxuoso degredo do que para uma escolha individual, tratando-se, antes, de uma contingência que, simultaneamente, foi justificação para o abandono do cargo de Primeiro-Ministro com maioria absoluta e, ao mesmo tempo, resultado de uma ameaça de prisão, caso António Costa persistisse na manutenção do poder, corporizada através de um inquérito com declarações comprometedoras de um outro homónimo. Mas que, apesar do exílio e das mudanças de opinião do visado, não foi arquivado, não fosse o mesmo tentar imiscuir-se nas eleições presidenciais ou em qualquer outro processo que impedisse a verdadeira mudança de regime a que assistimos. A verdade é que o ex-Primeiro-Ministro português está mais invisível na presidência do Conselho Europeu do que alguma vez esteve na liderança do governo de um país periférico como Portugal.

Kaja Kallas, que apenas tem competências para executar as decisões do órgão presidido por António Costa, comporta-se como dona e senhora da política europeia de segurança, o que faz em estreita conexão com Ursula von der Leyen, essa sim, a verdadeira chefe do departamento de guerra em que se transformaram os órgãos superiores da UE. Assistir a um comunicado da Comissão Europeia é como assistir às pré-declarações de guerra do tempo das grandes guerras. Os órgãos da UE transformaram-se numa espécie de ministérios de guerra da União Europeia.

Totalmente imunes à vergonha de subverterem todos os “elevados princípios e valores europeus” consagrados nos tratados, à medida que se vão multiplicando e alargando as fissuras na designada coesão europeia, deixando transparecer o desconforto de determinados Estados‑membros com as decisões da Presidente da Comissão Europeia, vão‑se também, em igual medida, multiplicando os esforços por parte desta, de Kaja Kallas, António Costa e até talvez de Mark Rutte, que é secretário‑geral da NATO, por conta e ação das maiores potências que comandam os destinos da União, no sentido de estudarem uma qualquer brecha jurídica que permita a derrogação da regra da unanimidade das decisões tomadas em matéria de política de Segurança e Defesa comum ou, em alternativa, encontrarem uma qualquer forma de chantagem que obrigue a Eslováquia e a Hungria a aceitarem as suas decisões ou, até, quem sabe, a aceitarem a alteração ao tratado que institui a União Europeia, aí inscrevendo que também este tipo de decisões passam a ser tomadas por maioria qualificada.

O que está evidente é que esta gente aceita com muito maus fígados as opiniões contrárias dos outros e, perante a incapacidade para levarem a Hungria e a Eslováquia a comprarem GNL norte‑americano cinco vezes mais dispendioso do que o gás via pipeline vindo da Federação Russa, todos pudemos assistir à impavidez, cinismo, silêncio cúmplice e velado agrado com que abordaram a destruição, pelos seus patrocinados ucranianos, das estruturas de bombeamento do gasoduto de Druzhba. Se não foi de uma forma, foi de outra. Nem uma condenação, nem uma palavra de compreensão pela consequência negativa que o atentado contra uma estrutura civil teve para alguns povos europeus.

Numa altura tão difícil como a que vivemos, em que o risco de confrontação nuclear nos deveria a todos assustar de morte e tornar-nos capazes de chegar aos mais difíceis compromissos em nome da paz, da vida, da esperança e da amizade. Não! Os afamados “líderes” europeus insistem na confrontação, incapazes de esgrimir um gesto, um vocábulo ou uma simples expressão de que estão preparados para dialogar, negociar e colocar um fim a este terror. Nem uma declaração conseguimos encontrar neste sentido. Apenas declarações prepotentes, segundo as quais será pela força que obrigarão a Rússia a negociar, leia-se, “capitular”.

Por cada vez que Vladimir Putin enuncia a sua disposição para dialogar, conversar, apenas encontramos a ladainha extremista e fanática do costume: “com os russos não se pode negociar”; “os russos não são de fiar”; “os russos são uns mentirosos”; “enquanto houver Putin, nem pensar”; “os russos só percebem a linguagem da força”; ou a “Rússia ser má, nós bons”, como diz o bandeirista ogre verde tantas e tantas vezes, qual máquina repetidora de ódio e loucura.

Não admira que, perante tal inflexibilidade, mesmo quando as autoridades russas anunciaram não se importar com a entrada da Ucrânia na UE, o que a colocaria, indiretamente, na NATO, apenas tendo de conviver com um exército seu colocado na Polónia, na Estónia, Letónia e Lituânia, nem assim as alminhas eurocráticas conseguiram furar a sua blindada bolha russofóbica. É como se não quisessem perder esta oportunidade para proceder a uma vingança histórica, para a qual tão bem aponta o final do último discurso sobre o estado da União, em que a Presidente da Comissão agraciou uma unidade como os “Homens da Floresta”, a qual, nos seus tempos áureos, durante a invasão nazi da Europa, não se cansou de cometer crimes contra a humanidade em solo lituano.

Assim, não querendo enjeitar nenhuma possibilidade de perderem esta oportunidade para castigarem quem é culpado por ter derrotado o nazi‑fascismo e ter-nos livrado, quase durante 80 anos, dessa loucura hedionda que é o fascismo, esta gente empenha-se na discussão sobre a introdução da votação por maioria qualificada em áreas como a expansão, política externa e política de segurança e defesa na União Europeia, em detrimento da atual exigência de unanimidade, ideia que tem vindo a ganhar força.

Frequentemente, os defensores desta mudança apelam, em tom justificativo, a uma maior eficiência e agilidade na tomada de decisões, evitando os embaraços de terem de dialogar e comprometer-se com os desavindos. Tal como fazem em todas as outras áreas da governação, em que marcham alegremente em direção ao mais elevado abismo que conseguem encontrar, sujeitando-nos a uma amarga perda de condições sociais e democráticas, também neste caso esta gente parece incapaz de perceber que a exigência de unanimidade em matérias como a guerra não apenas constitui o mais importante e decisivo instrumento de promoção da paz, de que o tratado fala, visando dificultar que um determinado bloco interno possa arrastar todos os outros para uma catástrofe, como, insistindo em tal caminho, estar-se-á a abrir a porta a que determinados Estados-membros comecem a cogitar se não estarão mais seguros sozinhos do que acompanhados. O que, não sendo uma catástrofe, é, pelo menos, uma contradição para quem tanto jura defender esta União Europeia.

Sob uma capa que refere a necessidade de “eficiência e agilidade” nas decisões sobre segurança e defesa europeias, o que estará em causa é, antes, a concepção de um pretexto para uma perigosíssima concentração de poder, bem como para a marginalização de determinados Estados-membros, exacerbando, ainda mais, as desigualdades existentes. A exigência de 55% de aprovação, correspondendo a 65% da população europeia, representada pelos estados maioritários, pode ser cumprida com pouco mais do que metade dos Estados-membros, que assim terão o poder de impor a sua tirania aos restantes.

Mas esta discussão só é possível porque temos assistido a uma acelerada erosão da soberania nacional dos povos da UE, em detrimento de uma máquina burocrática autofágica.

Atualmente, o princípio da unanimidade garante que nenhum Estado-membro possa ser forçado a aceitar decisões que contrariem os seus interesses nacionais fundamentais. Este mecanismo, embora possa, por vezes, levar a um processo decisório mais lento, funciona como uma salvaguarda essencial da soberania e do respeito pela diversidade dentro da UE. A transição para a maioria qualificada, em que uma decisão pode ser aprovada mesmo contra a vontade de alguns Estados, representaria uma mudança com resultados sísmicos.

Imaginemos um cenário em que a maioria qualificada é aplicada à expansão da UE. Um país com fortes contradições históricas e económicas com um potencial Estado candidato poderia ver os seus receios sobre a estabilidade regional ou a capacidade de integração ignorados, se a maioria dos outros Estados decidisse avançar. Não esqueçamos que Hungria, Roménia e até a Polónia, embora manietada pelos “yes men” do MI6, têm graves problemas com as forças políticas que compõem o regime de Kiev, aduladoras do período da ocupação nazi dos seus territórios, tendo então descarregado o seu fanatismo sobre milhares de seres humanos dessas nacionalidades.

Da mesma forma, em política externa, um Estado-membro poderia ser arrastado para posições ou sanções com as quais não concorda, comprometendo as suas relações diplomáticas e económicas. A capacidade de um país defender os seus interesses estratégicos e legítimos seria severamente comprometida. Defensores da manutenção da regra da unanimidade esgrimem com o argumento de que “a regra incentiva negociações mais alargadas, aumenta a legitimidade democrática, reforça a unidade, melhora a implementação e oferece aos pequenos Estados um escudo contra as exigências dos países maiores”, ao passo que os detratores argumentam que “a unanimidade dificulta o processo de tomada de decisões, fomenta uma mentalidade de menor denominador comum, convida a criar esquemas de ‘cavalos de Troia’ com intenções maliciosas e impede a UE de realizar todo o seu potencial na cena mundial”.

A verdade é que, aquando da adoção do Tratado de Lisboa, a ideia não passou e foi em nome da coesão europeia que, em matérias tão importantes como as da guerra e da paz, a regra da unanimidade continuasse a existir. Contudo, não significa que a nomenklatura eurocrática não se tenha esforçado por encontrar justificações doutrinárias para as “necessárias” derrogações (“abstenção construtiva”, “derrogação especial” e “cláusula passerelle”). Contudo, contra todas elas, os Estados-membros podem sempre invocar os seus interesses, estratégicos ou vitais, para exercer o seu veto.

Diz-nos a história que, quando um partido da guerra se convence desse caminho, apenas a luta organizada das massas e o sério questionamento da ordem antidemocrática imposta poderão travar tal destino. Afinal, duvido que haja muitos europeus que, se questionados, estariam na disposição de ir, ou enviar a sua prole, para morrer nas trincheiras do Donbass.

A adoção da maioria qualificada em áreas estratégicas não deixará, com toda a certeza, de aprofundar a existência de uma UE a duas velocidades, ou até mesmo fragmentá-la a médio/longo prazo. Os Estados que se sentirem consistentemente arredados das grandes discussões e cujos interesses forem sistematicamente preteridos pelas “grandes potências” europeias, podem começar a questionar o seu lugar e benefício na União.

Quando as decisões cruciais são tomadas sem o seu pleno consentimento, estes países não deixarão de desenvolver um sentimento de alienação e ressentimento. A longo prazo, ao minar a confiança mútua e a solidariedade, estes pilares essenciais de qualquer projeto de integração supranacional serão corroídos de morte. A União Europeia, que ainda diz orgulhar-se de ser um projeto de paz e cooperação, está, paulatinamente, a tornar-se um palco plutocrático, prenhe de regimes de excepção, excepções que se tornam regras, discricionariedade, unilateralismo e autocracia, de que a usurpação das funções de António Costa por von der Leyen é apenas um indício.

Como todos poderemos comprovar, dentro de pouco tempo, se nada for invertido, assistiremos a um drástico aumento do número de decisões que visam favorecer os interesses das grandes potências económicas, que poderão impor custos desproporcionais a países mais pequenos ou em desenvolvimento. Estas decisões podem ditar padrões de comércio, acordos de segurança ou até mesmo o envolvimento em conflitos, sem que os Estados menos influentes tenham tido voz suficiente para garantir que as suas vulnerabilidades e necessidades específicas sejam consideradas. Mesmo sem a derrogação da regra da unanimidade, os poderes que controlam a EU não deixarão de desenvolver as provocações e as bandeiras falsas necessárias ao condicionamento de quem quer ficar de fora deste confronto.

O princípio de uma união da democracia e dos povos exigiria que o bloco fosse capaz de ser justo para todos, e não um mecanismo que reforça as posições dominantes de alguns em detrimento de outros. Mas não existe nada de mais contraditório do que a conjugação da natureza real e material da UE com os princípios que preconiza. Trinta e quatro anos passados da queda da URSS, todos começamos a perceber melhor que tipo de construção é, de facto, a União Europeia, e como tal colide com os princípios que enuncia.

Numa época que exige à UE que seja o que não é — um polo cooperativo, fraterno e de amizade entre os povos europeus soberanos —, a natureza profunda desta construção burocrática, perante a crise existencial, atira-a para o único papel que com essa mesma natureza combina: o aprofundamento da vassalagem aos EUA, funcionando como bóia de salvação da hegemonia ou, em último caso, de barreira de exclusão das relações multipolares.

É neste quadro que a exigência de uma ditadura da maioria (o que se confunde tantas vezes com “democracia”) se coaduna com o papel que Trump exige à UE. E esta, perante a vertigem da sua autodestruição, é incapaz de recuar e tomar um caminho novo, um caminho que nos desvie a todos do destino fatal que nos está reservado. Mas, para tal acontecer, à cabeça dos órgãos da UE não poderiam estar as ideias velhas, as ideias ultrapassadas, transportadas pelos descendentes dos derrotados. Para tal, seria necessária uma nova geração, despida do ódio, amargura e frustração que a derrota do nazi-fascismo para eles comportou.

A ideia de que almejar maior “eficiência” justifica a perda de voz dos que a isto se opõem, em prol de uma tomada de decisão mais rápida para a maioria, é uma falácia perigosa, que visa tão só, com palavras bonitas, reservar-nos o futuro mais negro que conseguirmos imaginar.

Um futuro que vem de um passado que pensámos ser excepção, mas que ameaça tornar-se em regra!

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