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Bruna Frascolla
September 11, 2025
© Photo: Public domain

Pode-se dizer que o projeto liberal de ordem global surgiu em rebelião contra o mundo ibérico e a autoridade católica

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No último texto, argumentei que é mais interessante fazer uma apreciação do capitalismo confrontando-o com o projeto ibérico de civilização do que com o efêmero projeto comunista. Vamos então à obra.

Pode-se dizer que o projeto liberal de ordem global surgiu em rebelião contra o mundo ibérico e a autoridade católica. Esse projeto ibérico dava-se num momento de crise que se converteu numa oportunidade sem precedentes: a queda de Constantinopla e a conquista do Norte da África por muçulmanos fez com que as milenares rotas comerciais mediterrâneas ficassem comprometidas. Enquanto o maior reino católico medieval – a França – consumia suas energias numa guerra interminável com a Inglaterra, a Espanha, recém liberta do Califado Omíada, despontava como nova potência católica, e contava com todos os favores de Roma, pois seu poderio militar conseguia proteger a cristandade dos mouros. O pequeno reino de Portugal, porém, destacava-se com façanhas de outra ordem: recebera os cruzados, que contavam com grande expertise em finanças e navegação, e começara a explorar o mundo para encontrar outras rotas. E assim, ainda no século XV, Portugal começou a bordejar a África e a negociar com reinos africanos escravagistas.

Em 1488, o português Bartolomeu Dias dobra pela primeira vez o Cabo da Boa Esperança. Agora, as nações europeias vislumbram pela primeira vez a possibilidade de ir comprar as especiarias direto na fonte, sem precisar de atravessadores otomanos, e aumentar assim o seu lucro.

É evidente, então, que a Era dos Descobrimentos teve um motor econômico. Ainda assim, vale destacar que, além das especiarias das Índias, os portugueses buscavam o lendário Reino do Preste João. Os portugueses queriam encontrar um reino africano cercado cercado por infiéis e salvá-lo. Valendo-se do ânimo de cruzadas da época, Portugal consegue duas bulas papais (Dum Diversas, de 1452, e Romanus Pontifex, de 1455) que lhe garantem monopólio na África, bem como o direito de subjugar os inimigos de Cristo e conduzi-los à fé cristã. Por um bom tempo, Portugal iria conjugar a atuação de comerciantes e missionários – uma relação contraditória, na qual uma parte muitas vezes desfazia o trabalho da outra. As atividades comerciais na África costeira permitiam a Portugal replicar o modelo islâmico de produção de açúcar em novos locais descobertos, como a inabitada Ilha da Madeira (1419). O modelo islâmico incluía a compra e castração de negros. Felizmente os portugueses não imitaram tudo.

A Espanha entra forte no jogo em 1493. Meses após a chegada de Colombo à América, a Espanha consegue quatro bulas papais que talvez lhe garantissem o resto do mundo (na medida em que os conhecimentos cartográficos o permitiam). Lá, os espanhóis teriam os mesmos direitos e deveres que os portugueses tinham na África. No ano seguinte, porém, Espanha e Portugal chegam a um acordo entre si em Tordesilhas, que dá a Portugal um pedacinho da América e da Ásia. Em 1500, Cabral descobre oficialmente o Brasil quando, em tese, ia para a Índia e desviou da rota. Ao longo da história, Portugal usaria de muita criatividade cartográfica para fazer crescer os seus domínios.

Portugal é, então, o reino europeu que primeiro realizou o ímpeto mercante contornando as restrições otomanas. O Estado fez isso, porém, ao abrigo da autoridade papal, e isso tinha uma consequência: ocupar-se com a moralização dessas áreas conquistadas, levando ordens missionárias.

Em 1516, é coroado o primeiro Habsburgo no trono espanhol, e abre-se a possibilidade de se unir, num mesmo corpo político, o mundo germânico (Sacro Império incluso), o mediterrâneo e o ibérico. Em 1517, tem início a Reforma Protestante, com a qual parte do mundo germânico recusa a autoridade de Roma e, portanto, todas as normas do “direito internacional” vigentes até então.

***

Na América, podemos ver os distintos gênios das coroas espanhola e portuguesa. Enquanto a coroa espanhola, em 1551, cria a primeira universidade do continente americano em Lima, Portugal só aceitaria criar um curso superior no Brasil no século XIX, quando a Corte se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro. Mesmo que os habitantes da Bahia reivindicassem no século XVII a transformação do Colégio do seu Jesuítas (que formou Antonio Vieira!) numa instituição superior, Portugal preferia concentrar toda a formação superior em Coimbra.

A Espanha desde o princípio se empenhou em recriar na América instituições características da cristandade medieval enquanto absorvia as populações ameríndias. Já Portugal começou no Brasil replicando o seu modelo de capitanias existente na Ilha da Madeira: concedia capitanias a empresários privados, os quais compravam escravos africanos e produziam açúcar, para em seguida tributar. O Brasil surgiu como uma parceria público-privada canavieira. O nome do país também evidencia o foco mercantil do projeto português: o pau brasil, descoberto nesta terra, é útil para fazer tintura vermelha. Ganhar dinheiro com pau brasil era mais fácil do que ganhar dinheiro com cana: não precisa adquirir terra, nem montar um engenho, nem comprar escravos. Basta negociar com os nativos na costa. Por isso o Brasil atraía uma porção de piratas bretões.

Além de não atrair esse tipo de gente, a Madeira era deserta, ao passo que o Brasil era povoado por índios canibais. Somente uma capitania funcionou como o planejado (Pernambuco). Em 1549, a Coroa estatiza uma capitania cujo donatário havia sido comido por índios e funda sua primeira civitas na América: a Cidade da Bahia ou Salvador, na qual há uma sede do governo. O ponto da nova cidade (e, possivelmente, a própria capitania) é escolhido em função de sua privilegiada posição defensiva. Além de índios canibais, os portugueses precisam vigiar os corsários bretões que buscam pau brasil. Ou seja, se em 1549 a Coroa portuguesa funda a primeira cidade, apenas dois anos depois a Espanha funda a primeira universidade. É comum argumentar-se que a Espanha investiu mais na América porque deparou-se logo de cara com ouro e prata, mas o caso da universidade serve para mostrar que a Espanha de fato tinha um perfil mais institucional ou estatista do que Portugal.

As capitanias hereditárias foram criadas em 1534. Não foram necessários vinte anos para Portugal perceber que sua abordagem “liberal” (perdoem o anacronismo) não funcionava e criar assim um braço do governo na América. Mas, como queremos analisar o liberalismo, digamos assim: Portugal era liberal em comparação à Espanha, seu modelo inicial não funcionou e foi necessário mover-se no sentido estatizante da Espanha para seguir adiante.

***

Mas houve, mais ou menos nessa época, uma movimentação distinta, e que podemos considerar propriamente liberal. Chegamos até 1551, vamos para 1555: nesse ano, recebe aprovação real a “Mysterie and Compagnie of the Merchant Adventurers for the Discoverie of Regions, Dominions, Islands and Places Unknown”, ou “Mistério e Companhia de Aventureiros Mercadores para a Descoberta de Domínios, Ilhas e Lugares Desconhecidos”. Nessa época, a Inglaterra já rompeu com Roma. Se um monarca católico vai ao Papa para reivindicar a exploração comercial de um determinado lugar, na Inglaterra os comerciantes vão ao monarca pedir o monopólio para a sua companhia. O monarca então dá uma carta, e assim surge uma chartered company. Essa pomposa companhia, que acabou conhecida com o nome de Muscovy Company (Companhia de Moscou) era, além de chartered company, uma sociedade anônima. É a primeira companhia importante com essas características.

Diante do enriquecimento dos reinos ibéricos, a Inglaterra adotou primeiro uma solução de curtíssimo prazo – o simples roubo, por meio de navios piratas – e depois criou esse modelo no qual os acionistas investem numa companhia que, como indica o seu nome, deve ser capaz de fazer tantas descobertas quanto Portugal e Espanha. Sua intenção original era descobrir uma rota norte que partisse da Inglaterra, bordejasse a China e chegasse às cobiçadas Ilhas Molucas (atual Indonésia), cheias de especiarias. No fim, a Companhia criou uma rota que leva até Moscou, daí o nome que acabou adotando.

Na última década do século XVI, a Inglaterra tinha a Muscovy Company, a Levant Company (para comerciar com os otomanos) e a Sierra Leone Company (para vender escravos no Caribe). Como rival, despontava a Holanda, que também tinha companhias.

Esse modelo é, de nascença, ainda menos estatista ou institucional do que Portugal. Se Portugal tinha desde o princípio mercadores e representantes da Igreja, o modelo dos Estados protestantes excluía a Igreja e ficava só com mercadores. Seus objetivos não incluíam a fé, nem precisavam de um verniz moral para reivindicar a legitimidade junto ao papa. Em vez disso, seu objetivo era o simples o lucro dos acionistas, o que acarretava receitas para o seu Estado por meio de impostos. Nessa equação, o Estado entra somente no aspecto material, e não tem princípios filosóficos ou religiosos que o levem estender-se para novos terrenos.

Aí está a raiz do projeto liberal e laicista, contraposto ao projeto ibérico que casa o comércio com institucionalidade religiosa e governamental. Uma vez distinguidas as coisas, poderemos apreciar os destinos do projeto liberal nos novos mundos.

O projeto liberal começou quando o rei, e não o papa, liberou empreendimentos comerciais globais

Pode-se dizer que o projeto liberal de ordem global surgiu em rebelião contra o mundo ibérico e a autoridade católica

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No último texto, argumentei que é mais interessante fazer uma apreciação do capitalismo confrontando-o com o projeto ibérico de civilização do que com o efêmero projeto comunista. Vamos então à obra.

Pode-se dizer que o projeto liberal de ordem global surgiu em rebelião contra o mundo ibérico e a autoridade católica. Esse projeto ibérico dava-se num momento de crise que se converteu numa oportunidade sem precedentes: a queda de Constantinopla e a conquista do Norte da África por muçulmanos fez com que as milenares rotas comerciais mediterrâneas ficassem comprometidas. Enquanto o maior reino católico medieval – a França – consumia suas energias numa guerra interminável com a Inglaterra, a Espanha, recém liberta do Califado Omíada, despontava como nova potência católica, e contava com todos os favores de Roma, pois seu poderio militar conseguia proteger a cristandade dos mouros. O pequeno reino de Portugal, porém, destacava-se com façanhas de outra ordem: recebera os cruzados, que contavam com grande expertise em finanças e navegação, e começara a explorar o mundo para encontrar outras rotas. E assim, ainda no século XV, Portugal começou a bordejar a África e a negociar com reinos africanos escravagistas.

Em 1488, o português Bartolomeu Dias dobra pela primeira vez o Cabo da Boa Esperança. Agora, as nações europeias vislumbram pela primeira vez a possibilidade de ir comprar as especiarias direto na fonte, sem precisar de atravessadores otomanos, e aumentar assim o seu lucro.

É evidente, então, que a Era dos Descobrimentos teve um motor econômico. Ainda assim, vale destacar que, além das especiarias das Índias, os portugueses buscavam o lendário Reino do Preste João. Os portugueses queriam encontrar um reino africano cercado cercado por infiéis e salvá-lo. Valendo-se do ânimo de cruzadas da época, Portugal consegue duas bulas papais (Dum Diversas, de 1452, e Romanus Pontifex, de 1455) que lhe garantem monopólio na África, bem como o direito de subjugar os inimigos de Cristo e conduzi-los à fé cristã. Por um bom tempo, Portugal iria conjugar a atuação de comerciantes e missionários – uma relação contraditória, na qual uma parte muitas vezes desfazia o trabalho da outra. As atividades comerciais na África costeira permitiam a Portugal replicar o modelo islâmico de produção de açúcar em novos locais descobertos, como a inabitada Ilha da Madeira (1419). O modelo islâmico incluía a compra e castração de negros. Felizmente os portugueses não imitaram tudo.

A Espanha entra forte no jogo em 1493. Meses após a chegada de Colombo à América, a Espanha consegue quatro bulas papais que talvez lhe garantissem o resto do mundo (na medida em que os conhecimentos cartográficos o permitiam). Lá, os espanhóis teriam os mesmos direitos e deveres que os portugueses tinham na África. No ano seguinte, porém, Espanha e Portugal chegam a um acordo entre si em Tordesilhas, que dá a Portugal um pedacinho da América e da Ásia. Em 1500, Cabral descobre oficialmente o Brasil quando, em tese, ia para a Índia e desviou da rota. Ao longo da história, Portugal usaria de muita criatividade cartográfica para fazer crescer os seus domínios.

Portugal é, então, o reino europeu que primeiro realizou o ímpeto mercante contornando as restrições otomanas. O Estado fez isso, porém, ao abrigo da autoridade papal, e isso tinha uma consequência: ocupar-se com a moralização dessas áreas conquistadas, levando ordens missionárias.

Em 1516, é coroado o primeiro Habsburgo no trono espanhol, e abre-se a possibilidade de se unir, num mesmo corpo político, o mundo germânico (Sacro Império incluso), o mediterrâneo e o ibérico. Em 1517, tem início a Reforma Protestante, com a qual parte do mundo germânico recusa a autoridade de Roma e, portanto, todas as normas do “direito internacional” vigentes até então.

***

Na América, podemos ver os distintos gênios das coroas espanhola e portuguesa. Enquanto a coroa espanhola, em 1551, cria a primeira universidade do continente americano em Lima, Portugal só aceitaria criar um curso superior no Brasil no século XIX, quando a Corte se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro. Mesmo que os habitantes da Bahia reivindicassem no século XVII a transformação do Colégio do seu Jesuítas (que formou Antonio Vieira!) numa instituição superior, Portugal preferia concentrar toda a formação superior em Coimbra.

A Espanha desde o princípio se empenhou em recriar na América instituições características da cristandade medieval enquanto absorvia as populações ameríndias. Já Portugal começou no Brasil replicando o seu modelo de capitanias existente na Ilha da Madeira: concedia capitanias a empresários privados, os quais compravam escravos africanos e produziam açúcar, para em seguida tributar. O Brasil surgiu como uma parceria público-privada canavieira. O nome do país também evidencia o foco mercantil do projeto português: o pau brasil, descoberto nesta terra, é útil para fazer tintura vermelha. Ganhar dinheiro com pau brasil era mais fácil do que ganhar dinheiro com cana: não precisa adquirir terra, nem montar um engenho, nem comprar escravos. Basta negociar com os nativos na costa. Por isso o Brasil atraía uma porção de piratas bretões.

Além de não atrair esse tipo de gente, a Madeira era deserta, ao passo que o Brasil era povoado por índios canibais. Somente uma capitania funcionou como o planejado (Pernambuco). Em 1549, a Coroa estatiza uma capitania cujo donatário havia sido comido por índios e funda sua primeira civitas na América: a Cidade da Bahia ou Salvador, na qual há uma sede do governo. O ponto da nova cidade (e, possivelmente, a própria capitania) é escolhido em função de sua privilegiada posição defensiva. Além de índios canibais, os portugueses precisam vigiar os corsários bretões que buscam pau brasil. Ou seja, se em 1549 a Coroa portuguesa funda a primeira cidade, apenas dois anos depois a Espanha funda a primeira universidade. É comum argumentar-se que a Espanha investiu mais na América porque deparou-se logo de cara com ouro e prata, mas o caso da universidade serve para mostrar que a Espanha de fato tinha um perfil mais institucional ou estatista do que Portugal.

As capitanias hereditárias foram criadas em 1534. Não foram necessários vinte anos para Portugal perceber que sua abordagem “liberal” (perdoem o anacronismo) não funcionava e criar assim um braço do governo na América. Mas, como queremos analisar o liberalismo, digamos assim: Portugal era liberal em comparação à Espanha, seu modelo inicial não funcionou e foi necessário mover-se no sentido estatizante da Espanha para seguir adiante.

***

Mas houve, mais ou menos nessa época, uma movimentação distinta, e que podemos considerar propriamente liberal. Chegamos até 1551, vamos para 1555: nesse ano, recebe aprovação real a “Mysterie and Compagnie of the Merchant Adventurers for the Discoverie of Regions, Dominions, Islands and Places Unknown”, ou “Mistério e Companhia de Aventureiros Mercadores para a Descoberta de Domínios, Ilhas e Lugares Desconhecidos”. Nessa época, a Inglaterra já rompeu com Roma. Se um monarca católico vai ao Papa para reivindicar a exploração comercial de um determinado lugar, na Inglaterra os comerciantes vão ao monarca pedir o monopólio para a sua companhia. O monarca então dá uma carta, e assim surge uma chartered company. Essa pomposa companhia, que acabou conhecida com o nome de Muscovy Company (Companhia de Moscou) era, além de chartered company, uma sociedade anônima. É a primeira companhia importante com essas características.

Diante do enriquecimento dos reinos ibéricos, a Inglaterra adotou primeiro uma solução de curtíssimo prazo – o simples roubo, por meio de navios piratas – e depois criou esse modelo no qual os acionistas investem numa companhia que, como indica o seu nome, deve ser capaz de fazer tantas descobertas quanto Portugal e Espanha. Sua intenção original era descobrir uma rota norte que partisse da Inglaterra, bordejasse a China e chegasse às cobiçadas Ilhas Molucas (atual Indonésia), cheias de especiarias. No fim, a Companhia criou uma rota que leva até Moscou, daí o nome que acabou adotando.

Na última década do século XVI, a Inglaterra tinha a Muscovy Company, a Levant Company (para comerciar com os otomanos) e a Sierra Leone Company (para vender escravos no Caribe). Como rival, despontava a Holanda, que também tinha companhias.

Esse modelo é, de nascença, ainda menos estatista ou institucional do que Portugal. Se Portugal tinha desde o princípio mercadores e representantes da Igreja, o modelo dos Estados protestantes excluía a Igreja e ficava só com mercadores. Seus objetivos não incluíam a fé, nem precisavam de um verniz moral para reivindicar a legitimidade junto ao papa. Em vez disso, seu objetivo era o simples o lucro dos acionistas, o que acarretava receitas para o seu Estado por meio de impostos. Nessa equação, o Estado entra somente no aspecto material, e não tem princípios filosóficos ou religiosos que o levem estender-se para novos terrenos.

Aí está a raiz do projeto liberal e laicista, contraposto ao projeto ibérico que casa o comércio com institucionalidade religiosa e governamental. Uma vez distinguidas as coisas, poderemos apreciar os destinos do projeto liberal nos novos mundos.

Pode-se dizer que o projeto liberal de ordem global surgiu em rebelião contra o mundo ibérico e a autoridade católica

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

No último texto, argumentei que é mais interessante fazer uma apreciação do capitalismo confrontando-o com o projeto ibérico de civilização do que com o efêmero projeto comunista. Vamos então à obra.

Pode-se dizer que o projeto liberal de ordem global surgiu em rebelião contra o mundo ibérico e a autoridade católica. Esse projeto ibérico dava-se num momento de crise que se converteu numa oportunidade sem precedentes: a queda de Constantinopla e a conquista do Norte da África por muçulmanos fez com que as milenares rotas comerciais mediterrâneas ficassem comprometidas. Enquanto o maior reino católico medieval – a França – consumia suas energias numa guerra interminável com a Inglaterra, a Espanha, recém liberta do Califado Omíada, despontava como nova potência católica, e contava com todos os favores de Roma, pois seu poderio militar conseguia proteger a cristandade dos mouros. O pequeno reino de Portugal, porém, destacava-se com façanhas de outra ordem: recebera os cruzados, que contavam com grande expertise em finanças e navegação, e começara a explorar o mundo para encontrar outras rotas. E assim, ainda no século XV, Portugal começou a bordejar a África e a negociar com reinos africanos escravagistas.

Em 1488, o português Bartolomeu Dias dobra pela primeira vez o Cabo da Boa Esperança. Agora, as nações europeias vislumbram pela primeira vez a possibilidade de ir comprar as especiarias direto na fonte, sem precisar de atravessadores otomanos, e aumentar assim o seu lucro.

É evidente, então, que a Era dos Descobrimentos teve um motor econômico. Ainda assim, vale destacar que, além das especiarias das Índias, os portugueses buscavam o lendário Reino do Preste João. Os portugueses queriam encontrar um reino africano cercado cercado por infiéis e salvá-lo. Valendo-se do ânimo de cruzadas da época, Portugal consegue duas bulas papais (Dum Diversas, de 1452, e Romanus Pontifex, de 1455) que lhe garantem monopólio na África, bem como o direito de subjugar os inimigos de Cristo e conduzi-los à fé cristã. Por um bom tempo, Portugal iria conjugar a atuação de comerciantes e missionários – uma relação contraditória, na qual uma parte muitas vezes desfazia o trabalho da outra. As atividades comerciais na África costeira permitiam a Portugal replicar o modelo islâmico de produção de açúcar em novos locais descobertos, como a inabitada Ilha da Madeira (1419). O modelo islâmico incluía a compra e castração de negros. Felizmente os portugueses não imitaram tudo.

A Espanha entra forte no jogo em 1493. Meses após a chegada de Colombo à América, a Espanha consegue quatro bulas papais que talvez lhe garantissem o resto do mundo (na medida em que os conhecimentos cartográficos o permitiam). Lá, os espanhóis teriam os mesmos direitos e deveres que os portugueses tinham na África. No ano seguinte, porém, Espanha e Portugal chegam a um acordo entre si em Tordesilhas, que dá a Portugal um pedacinho da América e da Ásia. Em 1500, Cabral descobre oficialmente o Brasil quando, em tese, ia para a Índia e desviou da rota. Ao longo da história, Portugal usaria de muita criatividade cartográfica para fazer crescer os seus domínios.

Portugal é, então, o reino europeu que primeiro realizou o ímpeto mercante contornando as restrições otomanas. O Estado fez isso, porém, ao abrigo da autoridade papal, e isso tinha uma consequência: ocupar-se com a moralização dessas áreas conquistadas, levando ordens missionárias.

Em 1516, é coroado o primeiro Habsburgo no trono espanhol, e abre-se a possibilidade de se unir, num mesmo corpo político, o mundo germânico (Sacro Império incluso), o mediterrâneo e o ibérico. Em 1517, tem início a Reforma Protestante, com a qual parte do mundo germânico recusa a autoridade de Roma e, portanto, todas as normas do “direito internacional” vigentes até então.

***

Na América, podemos ver os distintos gênios das coroas espanhola e portuguesa. Enquanto a coroa espanhola, em 1551, cria a primeira universidade do continente americano em Lima, Portugal só aceitaria criar um curso superior no Brasil no século XIX, quando a Corte se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro. Mesmo que os habitantes da Bahia reivindicassem no século XVII a transformação do Colégio do seu Jesuítas (que formou Antonio Vieira!) numa instituição superior, Portugal preferia concentrar toda a formação superior em Coimbra.

A Espanha desde o princípio se empenhou em recriar na América instituições características da cristandade medieval enquanto absorvia as populações ameríndias. Já Portugal começou no Brasil replicando o seu modelo de capitanias existente na Ilha da Madeira: concedia capitanias a empresários privados, os quais compravam escravos africanos e produziam açúcar, para em seguida tributar. O Brasil surgiu como uma parceria público-privada canavieira. O nome do país também evidencia o foco mercantil do projeto português: o pau brasil, descoberto nesta terra, é útil para fazer tintura vermelha. Ganhar dinheiro com pau brasil era mais fácil do que ganhar dinheiro com cana: não precisa adquirir terra, nem montar um engenho, nem comprar escravos. Basta negociar com os nativos na costa. Por isso o Brasil atraía uma porção de piratas bretões.

Além de não atrair esse tipo de gente, a Madeira era deserta, ao passo que o Brasil era povoado por índios canibais. Somente uma capitania funcionou como o planejado (Pernambuco). Em 1549, a Coroa estatiza uma capitania cujo donatário havia sido comido por índios e funda sua primeira civitas na América: a Cidade da Bahia ou Salvador, na qual há uma sede do governo. O ponto da nova cidade (e, possivelmente, a própria capitania) é escolhido em função de sua privilegiada posição defensiva. Além de índios canibais, os portugueses precisam vigiar os corsários bretões que buscam pau brasil. Ou seja, se em 1549 a Coroa portuguesa funda a primeira cidade, apenas dois anos depois a Espanha funda a primeira universidade. É comum argumentar-se que a Espanha investiu mais na América porque deparou-se logo de cara com ouro e prata, mas o caso da universidade serve para mostrar que a Espanha de fato tinha um perfil mais institucional ou estatista do que Portugal.

As capitanias hereditárias foram criadas em 1534. Não foram necessários vinte anos para Portugal perceber que sua abordagem “liberal” (perdoem o anacronismo) não funcionava e criar assim um braço do governo na América. Mas, como queremos analisar o liberalismo, digamos assim: Portugal era liberal em comparação à Espanha, seu modelo inicial não funcionou e foi necessário mover-se no sentido estatizante da Espanha para seguir adiante.

***

Mas houve, mais ou menos nessa época, uma movimentação distinta, e que podemos considerar propriamente liberal. Chegamos até 1551, vamos para 1555: nesse ano, recebe aprovação real a “Mysterie and Compagnie of the Merchant Adventurers for the Discoverie of Regions, Dominions, Islands and Places Unknown”, ou “Mistério e Companhia de Aventureiros Mercadores para a Descoberta de Domínios, Ilhas e Lugares Desconhecidos”. Nessa época, a Inglaterra já rompeu com Roma. Se um monarca católico vai ao Papa para reivindicar a exploração comercial de um determinado lugar, na Inglaterra os comerciantes vão ao monarca pedir o monopólio para a sua companhia. O monarca então dá uma carta, e assim surge uma chartered company. Essa pomposa companhia, que acabou conhecida com o nome de Muscovy Company (Companhia de Moscou) era, além de chartered company, uma sociedade anônima. É a primeira companhia importante com essas características.

Diante do enriquecimento dos reinos ibéricos, a Inglaterra adotou primeiro uma solução de curtíssimo prazo – o simples roubo, por meio de navios piratas – e depois criou esse modelo no qual os acionistas investem numa companhia que, como indica o seu nome, deve ser capaz de fazer tantas descobertas quanto Portugal e Espanha. Sua intenção original era descobrir uma rota norte que partisse da Inglaterra, bordejasse a China e chegasse às cobiçadas Ilhas Molucas (atual Indonésia), cheias de especiarias. No fim, a Companhia criou uma rota que leva até Moscou, daí o nome que acabou adotando.

Na última década do século XVI, a Inglaterra tinha a Muscovy Company, a Levant Company (para comerciar com os otomanos) e a Sierra Leone Company (para vender escravos no Caribe). Como rival, despontava a Holanda, que também tinha companhias.

Esse modelo é, de nascença, ainda menos estatista ou institucional do que Portugal. Se Portugal tinha desde o princípio mercadores e representantes da Igreja, o modelo dos Estados protestantes excluía a Igreja e ficava só com mercadores. Seus objetivos não incluíam a fé, nem precisavam de um verniz moral para reivindicar a legitimidade junto ao papa. Em vez disso, seu objetivo era o simples o lucro dos acionistas, o que acarretava receitas para o seu Estado por meio de impostos. Nessa equação, o Estado entra somente no aspecto material, e não tem princípios filosóficos ou religiosos que o levem estender-se para novos terrenos.

Aí está a raiz do projeto liberal e laicista, contraposto ao projeto ibérico que casa o comércio com institucionalidade religiosa e governamental. Uma vez distinguidas as coisas, poderemos apreciar os destinos do projeto liberal nos novos mundos.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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