O emburrecimento das universidades Ocidente afora provavelmente tem sua origem num modelo de gestão estadunidense de 2002, o qual desvaloriza tanto o professor quanto a produção de conhecimento.
Junte-se a nós no Telegram , Twitter
e VK
.
Escreva para nós: info@strategic-culture.su
É inegável que houve, Ocidente afora, um emburrecimento daquelas instituições que deveriam prezar pela preservação e pelo avanço do conhecimento: as universidades. Na direita em geral e em setores da velha esquerda, esse emburrecimento costuma ser explicado pela adesão das instituições ao wokismo, que troca a produção de conhecimento pelo ativismo mais fútil e performático. Além disso, o conhecimento importa menos do que os atributos identitários das pessoas que porventura o produzam. Não se espera mais que a universidade produza a cura do câncer; em vez disso, demanda-se que a universidade empregue mulheres trans lésbicas e negros não-binários portadores de necessidades especiais.
Seria conveniente que os críticos notassem que o wokismo é uma ideologia promovida pelo mercado financeiro, que cria parâmetros e tabelas ESG para avaliar empresas segundo a sua adesão ao wokismo e à agenda verde. Não ter uma CEO fêmea, ou não comprar os carros elétricos de Elon Musk, pode vir a ser um pretexto para desvalorizar as ações de uma empresa, ou recusar-lhe crédito barato.
Assim, o artigo “Como as métricas de mercado quebraram a universidade”, da professora estadunidense Hollis Robbins, é muito oportuno por mostrar a digital da lógica de mercado sobre a universidade woke.
Segundo ela, a “abordagem da hiper-politização da academia […] tem que começar pela admissão de que o planejamento centralizado baseado em métricas nutriu essa tendência em primeiro lugar. Embora outros fatores tenham pesado, a universidade centralizada se tornou uma incubadora de extremismo ideológico sobretudo porque o seu desenho estrutural transforma os estudantes em consumidores e incentiva o corpo docente a buscar visibilidade por meio de controvérsia em vez de sucesso acadêmico.”
Não se tratou uma tendência espontânea. Houve um plano e um mentor: “O líder mais visível do movimento de centralização foi o presidente da Universidade Estadual do Arizona, Michael Crow, articulou primeiro o seu modelo de uma ‘Nova Universidade Americana’ ao assumir o controle em 2002. Sua ‘reinvenção’ e ‘transformação’ incluíram quebrar ‘silos’ disciplinares para colocar os estudantes antes das universidades e o ‘impacto’ antes de todo o resto. […] O que isso significou na prática foi o enfraquecimento da autonomia dos departamentos, a dissolução da governança das disciplinas e a entrega à administração do poder de determinar contratações, prioridades de pesquisas e estruturas acadêmicas. Como Crow explicou numa avaliação retrospectiva das suas conquistas na Universidade do Arizona: ‘Transformamo-nos numa instituição estudantecêntrica – isto é, o propósito da instituição é servir ao estudante e aprimorar os resultados na comunidade, não só prover um espaço para os professores serem grandes acadêmicos, ou cientistas, ou criadores.’ Sob o cartaz de ‘acesso para todos’ e ‘impacto social’, o poder foi retirado dos departamentos acadêmicos, as disciplinas colapsaram em massivos institutos interdisciplinares, e o corpo docente/faculdade ficou de lado.”
Como brasileira, ler essas linhas me espantou um bocado, porque o processo de centralização das universidades brasileiras ocorrido no segundo governo Lula foi apresentado por um dos seus elaboradores (o reitor Naomar de Almeida) sob o nome de Universidade Nova em 2007. Esta seria o resultado tanto das ideias do educador brasileiro Anísio Teixeira quanto do Processo de Bolonha. Não obstante, reconheço na Universidade Federal da Bahia (minha alma mater) o processo institucional descrito: as faculdades e os departamentos foram atacados como locais de “especialização precoce”, mal a ser combatido por meio da criação de novos institutos interdisciplinares, além da possibilidade de o aluno cursar o que quiser – o que resultou em alunos dos recém-criados bacharelados interdisciplinares invadindo as disciplinas de ioga dos cursos de educação física. No fim das contas, se tratava da cópia de um modelo inaugurado em 2002 nos EUA.
De resto toda a reestruturação das universidades federais promovida pelo ministro Haddad (sob o nome de Reuni) aconteceu acompanhada pela expansão (exigia-se tanto a criação de novas instituições e cursos, quanto que houvesse mais alunos por professor), pela substituição dos vestibulares locais por uma prova que imita o SAT (substituindo-se assim o indispensável conhecimento memorizado por algo parecido com um teste de QI) e por uma adoção mambembe das affirmative actions (o Brasil acabou inventando tribunais raciais para determinar quem é negro e tem direito às vagas).
Paralelamente, cresceram no mercado brasileiro as propriedades de empresas educacionais lucrativas, como a estadunidense Adtalem Global Education Inc. O governo as financiava de dois jeitos: ou pelo programa Prouni, no qual pagava as mensalidades dos alunos, ou pelo Fies, no qual concedia empréstimos especiais ao alunos. Nesses casos, o que contribuiu mais para o emburrecimento da sociedade não foi o wokismo, mas a inflação dos diplomas e a queda da qualidade de ensino. Junto com essa expansão do setor privado, ocorreram mudanças na legislação que permitiram a substituição de professores por aulas gravadas.
Voltemos aos EUA. Quanto à ideologização, a Prof.ª Robbins a explica por meio da demanda dos alunos, que agora são vistos como clientes a serem atraídos por uma marca. Além disso, “os professores com estabilidade passam mais tempo respondendo às exigências de relatórios, ajustando as práticas para seguir os novos padrões de ementas e expectativas dos cursos. O planejamento central incentiva a contratação de instrutores em contratos temporários. O caminho para ter menos resistência – e maior segurança no emprego – reside em se alinhar com os estudantes e abraçar correntes ideológicas.”
Da descrição acima, reconheço os meus professores reclamando dos relatórios a serem entregues para Brasília – especialmente da pós-graduação, que também tinha que ter muitos e muitos alunos para se justificar, de modo que os alunos eram admitidos mesmo que só estivessem interessados em receber uma bolsa de pesquisa e adiar o inexorável desemprego. O resultado disso foi uma horda de doutores para poucas vagas de trabalho – as quais, ainda por cima, costumam ser temporárias, como nos EUA. O resultado era doutores demais e empregos de menos. Por isso os pós-graduandos não ousavam dizer nada fora da ideologia da moda, com medo de jamais passarem nos concursos públicos que dão empregos estáveis e são feitos pelos professores. Desde a década de 2010, o wokismo é a ortodoxia nas universidades públicas. O governo federal adotou esse modismo e deu poderes aos seus puxa-sacos Brasil afora. Na universidade brasileira, então, o wokismo tem mais a ver com o puxa-saquismo dos docentes e aspirantes a docentes do que com a pressão do alunado. Isso confirma a explicação da professora, pois as perturbações wokes nos EUA, onde os professores têm menos poder, são muito mais graves do que no Brasil (onde nunca aconteceu nada parecido com o caso de Evergreen, e raramente há violência física).
A Prof.ª Robbins também aponta o efeito das métricas sobre a qualidade. Primeiro, há a pressão para aprovar alunos com o fito de favorecer as tais métricas – fato arquiconhecido no Brasil, seja no âmbito público ou privado. Além disso, as métricas “favorecem turmas cheias ou online que podem dar conta de centenas de estudantes ao mesmo tempo. Todo o mundo sabe que uma aula para 300 pessoas é mais ‘eficiente’ do que seminários para quinze ou vinte alunos, independentemente da qualidade pedagógica. Em seminários menores, posições extremadas enfrentam questionamentos e discussão de pares e professores. Há pouca oportunidade de diálogo ou troca intelectual no formato online. Um professor carismático pode apresentar pontos de vista rebeldes da moda para centenas de estudantes de uma vez, sem nenhuma oportunidade real de debate. As métricas vão mostrar uma alta nas matrículas e uso eficiente de recursos.”
Aqui temos os problemas das universidades privadas brasileiras da época da expansão, exceto pelo professor carismático alcançando o posto de celebridade – pois no Brasil as universidades públicas ainda são as mais cobiçadas e nelas não há aulas com 300 alunos. No entanto, o fenômeno dos professores carismáticos também começa a dar o ar da graça por aqui no âmbito, com iniciativas como a Faculdade Mar Atlântico, propriedade de um instagrammer de direita, e as pós-graduações vendidas pelo ICL, uma plataforma de marketing digital voltada para a esquerda. O universo dos coaches se cruza, online, com o dos diplomas universitários. A ver se cola.
Bom, o que podemos concluir é que o emburrecimento das universidades Ocidente afora provavelmente tem sua origem num modelo de gestão estadunidense de 2002, o qual desvaloriza tanto o professor quanto a produção de conhecimento para valorizar métricas mercadológicas de “eficiência” que tratam o aluno como cliente. Tracei o paralelo com o Brasil e o leitor estrangeiro decerto poderá comparar com o seu país natal.