Como a vida humana é um fenômeno material, todas as suas angústias se tornam patologias.
Escreva para nós: info@strategic-culture.su
Uma dúvida que me ocorreu ao redigir o último texto é: Será possível, dentro dos moldes da cultura ocidental, defender a liberdade negando o cristianismo? Afinal, na nossa cultura temos, como chaves interpretativas opostas, o princípio religioso da criação e o princípio científico daseleção natural. Do lado cristão, temos que Deus criou o homem dotado de livre arbítrio: o homem faz tal e tal coisa dotada de conteúdo moral porque é livre. Do lado darwinista, o homem é o resultado viável de um atroz processo de seleção natural. Assim, será preciso explicar a ação humana com base nesse processo. Isso não é impossível, pois, como vimos, a moral é necessária até numa sociedade de ladrões. No entanto, se a moralidade não é mais que o resultado de um processo de seleção natural, é muito difícil dizer que um homem é livre. Quando um joão-de-barro constrói sua casa, esse é um ato decorrente da seleção natural – e não é um ato livre, porque o joão-de-barro não é racional e não poderia agir de outra forma.
Daí não se segue que precisamos opor evolução a criacionismo. Assim como o terraplanismo, o criacionismo é uma pseudociência criada por literalistas bíblicos. Mas se nem todo cristão é criacionista, todo defensor militante da evolução é um defensor militante do ateísmo. Ora, o mecanismo evolutivo descoberto por Darwin evidentemente não prova a inexistência divina, pois basta dizer que Deus criou o mundo com criaturas que evoluem. Em geral, os ateus mais inteligentes concordam que não dá para provar a inexistência divina, por isso preferem discutir o ônus da prova: é possível dizer que Deus criou o mundo com criaturas que evoluem; é possível dizer que há um bule orbitando o sol entre a terra e Marte. Provar é outra história.
No frigir dos ovos, o darwinismo consiste numa explicação da vida por meio de leis intrínsecas à matéria. Essa explicação remonta ao epicurismo, para o qual tudo o que existe são átomos e movimento. Do movimento incessante da matéria surgem corpos ordenados; e, uma vez que a ordem se desarranje, o corpo perece e os átomos continuam se movimentando. Assim, não cabe perguntar por que um animal é bem feito, pois, se ele não fosse “bem feito”, pereceria. Darwin juntou um material e mostrou que esse processo epicurista, que implica a destruição do inviável, é capaz de explicar a vida, ao contrário da ideia de uma Criação estática. Mas Darwin era filho da Inglaterra do seu tempo.
A modernidade redescobriu muitas correntes filosóficas greco-romanas que a Igreja havia jogado na proverbial lata de lixo da História. Uma corrente foi o epicurismo; outra, o pensamento pitagórico, para o qual o Número é o princípio de tudo. Galileu se apropriou desse princípio, e traduziu-o na ideia de Deus escreveu o livro da natureza em linguagem matemática. Depois, quem se apropriou dessa tradução de Galileu foi Newton, uma espécie de místico protestante dedicado (entre outras coisas) à exegese literal da Bíblia. A ele se seguiu toda uma escola de pensamento, articulada nas Boyle Lectures, que prepararia o terreno para o criacionismo. Assim, se acreditarmos que Galileu, Newton e Darwin estão certos, então acreditamos que o Criador é versado em matemática e que não existe Criador!
Se nos tempos de Galileu e Newton (séculos XVI a XVIII) a leis matemáticas eram vistas como provas de um Criador versado em matemática, mas nos tempos de Darwin e dos darwinistas (séculos XIX até hoje), as leis evolutivas servem para provar que não há criação, então é razoável concluirmos que o que mudou foi a mentalidade da época. Na modernidade, os cientistas acreditavam em Deus; na pós-modernidade, os cientistas acreditavam no ateísmo. Por isso deram tratamentos diferentes a princípios antigos redescobertos em diferentes eras.
Ao que parece, então, convém ao físico raciocinar como um literalista bíblico, e convém a um biólogo raciocinar como um ateu. Darwin não anulou a física galileana nem a newtoniana, e a ampla aceitação da suposição cosmológica do Pe. Lemaître não destronou Darwin da biologia. A ciência avança com base nos pressupostos mais díspares. E são todos pressupostos dotados de uma natureza moral, dentre os quais a ovelha negra é o darwinismo. (Há quem diga, contudo, que o determinismo é um calvinismo laico, por causa da predestinação, que também traz complicações filosóficas para a noção de liberdade. Mesmo que isso me pareça absolutamente correto, ainda assim, há uma diferença muito grande entre uma moral puritana e uma moral inspirada no darwinismo.)
No mínimo desde Lucrécio o epicurismo era dotado de uma contundente mensagem moral. Em resumo, toda a vida é caótica, os deuses não ligam para os mortais, a religião nasce da ignorância das causas e é fonte de temores irrazoáveis, como o medo da morte. Quem quiser se inteirar do epicurismo e da história de sua redescoberta poderá ler A Virada: O nascimento do mundo moderno, do Prof. Stephen Greenblatt, de Harvard. O livro ganhou o National Book Award e nada menos que o Pulitzer. E o livro é uma tremenda peça de propaganda que, enquanto conta a história de Poggio Bracciolini, canta as virtudes eternas do epicurismo e repete os clichês protestantes contra a “Idade das Trevas” (embora o autor seja judeu). O fato de que esse livro tenha tido uma recepção institucional tão exitosa é um indício de que as elites do mundo anglófono estão tão comprometidas com o darwinismo que defendem ativamente até a sua raiz, o epicurismo.
Voltemos por fim ao ponto inicial. Se o darwinismo não explica a moral humana, explica, por outro lado, a moral dos humanos que acreditam no darwinismo. Como não se espera que o homem aja como um animal diferente dos demais, então se aceita, por exemplo, que os machos copulam com quantas fêmeas conseguirem, e que as fêmeas copulam com qualquer macho detentor de recursos. Tem-se até uma ciência da “psicologia evolutiva” muito eficaz em explicar os galinhas e as biscates, mas de êxito duvidoso para explicar homens e mulheres corretos. Um bilionário crê que a coisa certa a ser feita é engravidar o maior número de mulheres, de preferência por fertilização in vitro com embriões selecionados, a fim de presentear a humanidade com seu maravilhoso DNA.
Como a vida humana é um fenômeno material, todas as suas angústias se tornam patologias. O homem, um agregado de células, vai então ao psiquiatra para resolvê-las, e o psiquiatra prescreverá remédios que supostamente corrigem os desequilíbrios químicos que causaram a angústia. E como a saúde nada mais é que a norma, não é de admirar que as pessoas queiram construir identidades em cima de doenças (autismo, TDAH…). Pois a doença, o desvio da norma, é a diferença possível e a liberdade possível.