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Em Portugal, como na maior parte dos países do Ocidente Coletivo, os mais recentes desenvolvimentos diplomáticos a respeito do conflito ucraniano deixaram apoplético um setor muitíssimo importante da opinião pública, de facto aquele segmento que tem tido mais protagonismo quer nos círculos políticos decisores, quer ao nível dos media. Entre nós há, claro, toda uma enorme coorte de Christoph “Cry Baby” Heusgen em potência. A diferença é que em Portugal um certo culto residual da hombridade persiste (“um homem não chora”, etc.), impedindo cenas tão patéticas, pelo menos em público. A nossa vida política está, decididamente, já muito avançada em infantilização; mas talvez ainda não tenhamos chegado ao nível de “fluidificação de gênero” requerido por estas coisas. Não sei se prosseguiremos em catching up com a “Europa” ou não, mas isso agora interessa pouco.
No extremo oposto destas atitudes estão aqueles que concluem pelo seco “realismo” em matéria de relações internacionais, entendido o mais das vezes como simples culto da força. “Manda quem pode, obedece quem deve”, como reza o antigo dito. O poder está nos EUA e na Rússia, que por isso decidem. A Europa, se quiser ter alguma coisa de decisivo a dizer, que cresça antes de se atrever a aparecer. Alguns setores dentro desta corrente (minoritários, mais ou menos fãs tardios de Charles de Gaulle) inferem disto a necessidade de romper com a tutela norte-americana, mas mesmo esses tendem para a mítica noção da unidade dos europeus como alternativa. Outros setores (maioritários, e normalmente acicatados pelos media) concluem sobretudo que temos de começar a dedicar uma percentagem muito maior do PIB a despesas militares. As talking heads televisivas – as mesmas que há décadas nos pregam ininterruptamente a “austeridade” e os cortes nos gastos públicos com educação, saúde e segurança social – normalmente alinham por esta nova toada “gastadora”. Não há nada como o militarismo e a russofobia para fazer os comentadores políticos portugueses guinar subitamente para o “keynesianismo”.
Pelo meio, algures na mêlée entre estas posições, ouve-se e lê-se por aí muitíssima lamúria, provindo de quadrantes muito variados, relativamente à suposta traição e à desfeita que os EUA de Trump teriam praticado contra a “pobre Europa” e a ainda mais “pobre Ucrânia”. Quanto a isto, convém recordar a todos estes Calimeros um certo número de “factos da vida” elementares, apenas parcialmente na linha dos argumentos “realistas”. E adianto desde já que não senhor, não concordo com a inferência de termos de ir gastar uma percentagem maior do PIB com despesas militares. Temos assuntos bem mais urgentes a resolver, temos um “estado social” periclitante (educação pública, sistema nacional de saúde e segurança social em ameaça de rotura), e permanentemente ameaçado pelas exigências dos mesmos círculos “europeus”, que agora, com superlativa hipocrisia e com nauseabundo descaramento, nos ordenam que gastemos mais – mas com forças armadas, para nos defenderem dos “mauzões” russos.
Eis os factos que precisamos considerar.
1 – A NATO sempre foi uma extensão dos EUA até à Europa; nunca uma “parceria”. Sempre se tratou duma forma de manter os “Americans in”, os “Germans down” (de facto, todos os “Europeans down”) e os “Russians out”. Sempre foi, e é, e será isso; e só mesmo isso. A “luta contra o comunismo” sempre foi uma cruzada imaginária, desde logo porque a URSS nunca se quis expandir, pelo menos no “teatro europeu”.
2 – Depois de 1991, aí já inegavelmente, tudo isto se tornou muito mais verdade ainda; e sobretudo muitíssimo mais óbvio. Sempre foi óbvio, repito, mesmo chocantemente óbvio, pelo menos desde 1991.
3 – Aceitar a pertença à NATO é aceitar a ideia de que aquilo que os EUA em determinado momento avaliarem como conveniente, é conveniente para nós. Se eles passarem a achar a mesma coisa inconveniente, ela passa ipso facto a ser inconveniente. Fim da conversa; ou, pelo menos, da conversa de adultos.
4 – A “UE”, por outro lado, é basicamente uma “engrenagem”, um “moinho satânico” visando impor políticas económicas neoliberais a todos os países europeus – e nada mais do que isso. Não houve, não há e nunca haverá uma atuação concertada dos europeus, excetuando a referida atuação, que é uma atuação contra si mesmos (no sentido de contrária aos interesses de cada um e todos os povos europeus). A “UE” não é um dispositivo multiplicador da potentia agendi dos povos europeus. Visa, isso sim, aumentar o poder das elites transnacionais europeias, à custa dos respetivos povos. Visa retirar conteúdo democrático à organização política de cada um e de todos os estados-nação que compõem a “UE”.
5 – Não é possível tornar a “UE” melhor democratizando-a… pela simples razão de que a “UE” constitui o mero resultado de atuações que relevam elas próprias já da esfera da diplomacia, dos interesses e dos poderes ocultos, e do segredo; não da publicidade, do debate racional e da democracia. Não há “esfera pública” europeia, pela simples razão de que nem sequer há um “demos” unificado europeu. Se acreditarmos na democracia como método para melhorar a vida dos povos, e se quisermos democratizar a Europa, devemos manter os vários estados-nação europeus democráticos e sair da “UE”. Tão cedo quanto possível. (Quanto a isso, ver Thomas Fazi aqui).
6 – Se nos esquecermos, na análise política, de partir daquilo que “as coisas realmente são”, tomando-as por aquilo que gostaríamos que fossem, se confundirmos a “verdade factual” das coisas com aquilo que (em nossa opinião) elas deveriam ser, viveremos em “transferência” contínua, de dissonância cognitiva antiga em nova dissonância cognitiva. Quanto a isto, todos os comentadores reclamando-se do realismo têm imensa vantagem relativamente ao grupo histérico-demencial e ao respetivo uivar-à-lua de indignações delirantes e fátuas. Os que alinham por este segundo grupo arriscam-se a sair da experiência dolorosa deste conflito sem aprenderem nada de nada.
7 – Como dizem os outros, “estás mal, muda-te”. O problema aparece precisamente quando já se perdeu de todo a consciência destes factos elementares e, por isso, já nem se considera a possibilidade do “divórcio necessário” – para usar a expressão de João Ferreira do Amaral, que todavia se refere a um divórcio apenas, quando no caso de Portugal (uma caso de bigamia, em que ambos os nossos cônjuges são abusivos face a nós, mas um deles o é também face ao outro) são inegavelmente necessários dois divórcios: da NATO, é claro; e também da “UE”.
8 – Muito mais haveria obviamente a dizer, reportando-me ao conflito da Ucrânia. Mas acho que estes são os problemas de base, os vícios que geram todos os nossos demais erros. A Ucrânia, muito provavelmente, é só mesmo um pretexto.
Quanto a isso, acrescento apenas que estou obviamente contente com o facto de os norte-americanos (ou seja, quem começou por acicatar tudo isto) se terem decidido a falar com os russos (em vez de se limitarem a insultá-los), e ouvindo-os a sério. O diálogo é sempre melhor – exceto para o grupo dos psicopatas assassinos – do que a destruição mútua garantida. O caminho para o acordo é sem dúvida longo e será difícil de percorrer, mas está já, no fundamental, desenhado como uma derrota dos Ocidentais, num jogo onde um tubarão maior (os EUA), depois de ter já empurrado para a morte o tubarão mais pequeno (aquilo a que se chama habitualmente “Ucrânia”), está agora a humilhar e vai também acabar por condenar o tubarão de tamanho intermédio (aquilo a que se chama “os europeus”). Eles, os EUA, preocupados sobretudo com o ascenso imparável da China, não podem compadecer-se muito mais tempo com exercícios de mitomania.
E, para além disso, têm “melhor [ou pior, dependendo da perspetiva] peixe para fritar”…
(Aqui: https://www.tiktok.com/@lucenickers/video/7296596897857342753
e aqui: https://getyarn.io/yarn-clip/8752a164-f545-4151-8b54-b8f74e178baf)