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O liberalismo tem uma profunda dificuldade em se legitimar. Também, pudera: o homem não tem por que aceitar que a autoridade vem de uma burocracia laica, cega para o divino e para a tradição. O mais próximo que conseguiram, como vimos aqui, foi ressuscitar Roma com o fito de legitimar uma forma de governo, a república. A isso seguiram-se tentativas teóricas e filosóficas de legitimar a democracia liberal como o único regime digno da humanidade, pois seria o único no qual as pessoas são realmente livres. Mas em que consiste a liberdade, para um liberal? Assinar contratos. No liberalismo clássico, o Estado servia para registrar e fazer valer tais contratos. Quando os Estados nacionais começaram a expropriar grandes capitalistas, surgiu (como vimos aqui) o neoliberalismo, cujo fito era colocar mecanismos globais com uma autoridade superior à dos Estados nacionais. O Estado passa a existir para proteger o capital transnacional, e não para atender às demandas internas.
Assim, uma tragédia dos nossos tempos é que o Estado liberal, servindo somente para tiranizar o cidadão e extorquir dele o máximo de dinheiro e trabalho, é apresentado como o único representante do Estado. Se o Estado é isso – dizem os propagandistas – então o bom é não ter Estado nenhum. E aí ficamos à mercê do capital, sem que haja nem mesmo um véu de legitimidade, uma aparência de direitos.
Veja-se então o caso do Estado brasileiro, ora governado por Lula. 14% do país são reservas indígenas, terras estatais federais. A Amazônia, onde fica uma grande parcela delas, sofre com uma montanha de leis e regulações ambientais que não deixam o Estado levar infraestrutura. Em 2023, o governo decidiu que só índios poderiam viver nas reservas indígenas. Assim, uma população totalmente desassistida pelo Estado viu esse mesmo Estado aparecer para destruir suas casas, levar as vacas embora, destruir pontes, e ainda poluir o rio de onde tiravam os peixes no processo.
A coisa ainda pode piorar bastante. Em Davos, sem licitação nem consulta à população afetada, o Ministério dos Povos Indígenas assinou um acordo com a multinacional Ambipar para administrar as terras indígenas do Brasil – que são cerca de 1,4 milhão de quilômetros quadrados em áreas ricas em minérios e biodiversidade.
A questão é tanto mais grave porque as terras indígenas já estão sendo administradas por ONGs há muito tempo, e já em 2009 o então deputado Aldo Rebelo denunciava que já presenciara uma ONG impedindo militares brasileiros de entrar em terra indígena. Para piorar ainda mais, a Amazônia, dentro e fora das terras indígenas, está tomada por narcotraficantes, além de extração ilegal de madeira, pedras preciosas e ouro. Explicar como o Brasil chegou a esse ponto é inviável num artigo. No entanto, posso apontar a obra fundamental Máfia Verde, já traduzida para o inglês e o espanhol, de Geraldo Lino, Lorenzo Carrasco e Sílvia Palacios. Muito resumidamente, as ONGs dos EUA e da Europa, aliadas a algumas embaixadas e coroas, tentam fazer com a América do Sul a mesma coisa já feita com a África: por meio de parques e reservas – demarcados preferencialmente em fronteiras – impedir o desenvolvimento humano no local, a exploração de recursos naturais pelos nativos e a criação de infraestrutura, enquanto usam as áreas demarcadas para contrabandear todo tipo de coisa. No Brasil, a principal representante desses interesses é Marina Silva, que ora integra o governo Lula.
Se o Estado liberal brasileiro por ora só aparece nessas áreas para punir o brasileiro, a cessão da administração de uma área tão vasta para uma empresa privada lembra um precedente bastante sombrio: o das chartered companies, comuns no fim do século XIX e início do XX. Leopoldo da Bélgica não quis criar um aparato estatal no Congo. Em vez disso, criou o Estado Livre do Congo e deu plenos poderes a empresas de extração de borracha para administrarem o local. O resultado é o genocídio do Congo. Na América do Sul, o Peru entregou uma parte do seu território para uma chartered company explorar a borracha. O resultado é o genocídio do Putumayo. A Bolívia também cedeu uma parte do seu território, cheia de brasileiros, para uma chartered company. O resultado, felizmente, foi a anexação do atual estado do Acre pelo Brasil.
O que garante que a Ambipar não venha a perpetrar genocídio contra os habitantes das terras indígenas? Numa área pública tão privatizada, o que impedirá a empresa de usar mão de obra escrava para roubar as riquezas naturais do país? A empresa é obscura: ela apareceu em 2024, tomou multas ambientais milionárias em abril e viu suas ações se valorizarem 2.027% entre maio e novembro.
Para piorar, impera o silêncio entre a absoluta maioria dos parlamentares. No momento em que escrevo, só tomei conhecimento de três: os deputados Filipe Barros e Sílvia Waiãpi, ambos bolsonaristas, e o senador amazonense Plínio Valério.
O caso da Ambipar representa o avanço do neoliberalismo rumo ao anarcocapitalismo: em vez de zelar pelos territórios indígenas, o Estado liberal cede a gestão para uma empresa com fins lucrativos e dá as costas aos cidadãos, que agora são meros corpos ocupando uma área privada.