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Bruna Frascolla
January 23, 2025
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

No último texto, vimos que o sociólogo e jornalista Bruno Paes Manso, em A fé e o fuzil, faz uma descrição desolada e precisa do Brasil moderno e urbano: um caos particularista, no qual quem consegue atender a clientelas e impor um mínimo de ordem vence. Assim, vencem ao mesmo tempo o Centrão, as igrejas milagreiras e as seitas do crime. As igrejas milagreiras, que são neopentecostais ou imitam o seu modus operandi, pecam por discutir somente moralidade em vez de fazer política; os políticos do Centrão prezam apenas por interesses particulares nem sempre lícitos; as seitas como o PCC criam um código de ética que organiza o crime e domesticam a bandidagem jovem na favela.

Ao mesmo tempo em que nos mostra a cosmovisão dos evangélicos de favela com os quais conversou, o autor revela a sua própria. E podemos dizer que é bem um retrato da elite intelectual brasileira: um híbrido de cultura católica com modernização liberal. Ele não esconde sua simpatia pela teologia da libertação, que foi uma tentativa da esquerda católica de conciliar sua religião com o marxismo. Foi uma febre na América Latina durante a década de 1970. Em 1984, porém, o Cardeal Ratzinger, à frente da Congregação para a Doutrina da Fé (outrora Santo Ofício), condenou a teologia da libertação e tirou-a (ao menos formalmente) da Igreja.

Marina Silva, apontada pelo autor como exemplo de evangélica capaz de atuar de maneira positiva na política, pretendia ser freira e foi formada pela teologia da libertação. Só se tornou evangélica quando já era senadora e tinha mais de quarenta anos.

Marina Silva era, pois, contraposta à normalidade dos evangélicos na política, que consiste em politizar costumes e impor crenças. Cito a página 86: “Eu achava que as discussões morais que brotavam a partir da Bíblia eram razoáveis. […] Nas últimas décadas, contudo, houve uma invasão dessas crenças no debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha pelo aborto não é banal. Em compensação, não é aceitável fechar os olhos para a realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa escolha difícil, política sustentada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização do aborto já vinha com os católicos, porém, a partir da popularização do pentecostalismo, o uso do sagrado se banalizou, mobilizado pelo discurso da guerra santa, demonizando adversários.”

Esse parágrafo é um atestado de liberalismo político. No liberalismo político, que teve sua sistematização antes do liberalismo econômico, ainda com Locke, a fé torna-se uma coisa privada e o Estado deve ser governado de maneira neutra. Em suas origens, o liberalismo era anticatólico; Locke pregava a tolerância com todas as seitas protestantes, mas não com o catolicismo. Isso se deve ao fato de que a monarquia britânica só é legítima se considerarmos, contrariamente à Igreja Católica, que o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão era nulo. Assim, tínhamos com Locke que as razões de Estado estavam acima das questões teológicas. O Estado liberal inglês não precisava da direção moral da Igreja Anglicana; precisava apenas que a Igreja Católica não atrapalhasse. Em sentido amplo, o Estado liberal precisa apenas que a Igreja (qualquer que seja ela) não atrapalhe os seus desígnios. Mas quem dá esses desígnios?

A ideia profundamente liberal de que o Estado deve ser neutro diante das religiões terminou por legitimar a tecnocracia. Os liberais têm uma cegueira peculiar, pois creem que os seus valores são neutros e científicos, quando na verdade são os valores de uma elite voltada à direção do Estado. Por isso mesmo eles são ateus ou agnósticos, já que a recusa das crenças religiosas é esperadas de que vai dirigir o Estado liberal.

No entanto, como esse conjunto de crenças liberais ruma para posições cada vez mais esdrúxulas e impopulares (agora ciência manda acreditar que mulheres têm pênis…), o resultado inevitável é que a elite liberal se descole do povo e se torne incapaz de pensar uma comunidade com ele. Em vez disso, resta à elite a pretensão de gerenciá-lo: na melhor das hipóteses, com humanitarismo; na pior, como um conjunto de escravos. No caso em tela, a elite intelectual brasileira acha que o aborto tem que ser liberado e o gado tem que engolir isso, mesmo que viva nominalmente sob uma democracia e vote em políticos que se dizem contra o aborto. É óbvio que o liberalismo é incompatível com a soberania popular.

Embora seja agnóstico, Paes Manso repete pelo menos dois católicos em sua posição sobre o aborto: Leonardo Boff (teólogo da libertação brasileiro) e Joe Biden. Esses dois católicos heterodoxos defendem o aborto sob a chave liberal: as religiões devem se confinar ao âmbito privado e a política deve ser decidida segundo critérios técnicos. Aí, para dizerem que são contra o aborto, fazem uma série de ressalvas, alegando que abortar é uma decisão muito difícil para a mulher; que o aborto deve ser raríssimo, mesmo que o Estado não ponha freio nenhum. Ora, depois da decisão Dobbs em 2022, essa falácia deveria ter caído por terra: vimos que as mulheres dos EUA usavam o aborto como uma contracepção banal, e vimos que é do interesse das grandes empresas financiar viagens das suas funcionárias para estados com aborto. É difícil, se não impossível, adotar o liberalismo político sem fomentar o liberalismo econômico.

A teologia da libertação faz de conta que o liberalismo econômico nada tem em comum com o liberalismo político. Assim, os teólogos da libertação esposaram este último e, ao mesmo tempo, posaram de combatentes do primeiro. Daí vem o seu penchant por um esquerdismo difuso. No caso de Paes Manso, vemo-lo aderir até mesmo ao mito do Comintern segundo o qual o cangaço era uma revolta popular contra os grandes proprietários – mito datado, que nenhum historiador do cangaço ousará repetir.

Lendo o livro, ficamos com a impressão de que tudo é datado nessa cosmovisão da teologia da libertação. Diz Paes Manso à página 154: “O mote da nova teologia [a da libertação] era ‘ver, julgar e agir’, o que implicava, inicialmente, entender o contexto de forma crítica usando ferramentas das ciências humanas e deixando as lendas e superstições de lado. O novo olhar deveria usar métodos de disciplinas modernas, como sociologia, antropologia e psicanálise, para proporcionar uma visão menos ingênua do mundo. Quais os mecanismos sociais que produziram a pobreza? Por que a sociedade era tão desigual? Para obter essas respostas, os religiosos da libertação usavam um instrumental marxista, materialista, histórico e dialético, que colocava a luta de classes em primeiro plano, como engrenagem de mudanças.” Ou seja: como bons liberais, os teólogos da libertação buscaram imitar a ciência e se atualizaram. Atualizando-se, adotaram verdadeiros modismos que, na década de 1970, podiam parecer muito inovadores, mas que não resistiram ao tempo e hoje são simplesmente datados.

Paes Manso mostra ter uma visão muito enviesada da história da Igreja, que talvez fosse difundida por teólogos da libertação depois de seu banimento pelo Vaticano. A história é a seguinte: a Igreja sempre defendeu o capitalismo e a conciliação de classes, até que, para deter o comunismo, precisou se preocupar com os pobres. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, aconteceu nessa conjuntura. Nesse ambiente atípico, surgiu a teologia da libertação, que infundia consciência de classe nos pobres e os organizava para cobrar o poder público. Em vez de tratar de questões espirituais, os padres orientavam os fiéis a se perguntar pelo porquê do desemprego, dizendo-lhes que não se tratava da vontade divina. Nas palavras de Paes Manso: “Em vez de benzê-los ou de rezar por eles, os religiosos conversavam sobre suas condições de vida e usavam a Bíblia para provocar o compromisso com a luta coletiva.” Passada a ameaça comunista, o Vaticano joga fora a teologia da libertação. Vendo o pentecostalismo tomar o seu lugar nas periferias, o Vaticano promove a Renovação Carismática, “que trazia para o centro da missa o poder do Espírito Santo, com suas curas milagrosas, êxtases, exorcismos, glossolalias e muita música.” Ou seja, imita os pentecostais para disputar fiéis.

Paes Manso está redondamente enganado ao achar que a Igreja só passou a ficar contra o capitalismo na década de 1960. Embora fale da Ação Católica, ignora a Doutrina Social da Igreja, bem como as encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), dois documentos que visaram à domesticação do capital.

De resto, o autor parece crer que, se não fossem o Vaticano (que tolheu a teologia da libertação) e os pentecostais (que não fazem boa política), o Brasil viveria num idílio de participação popular, com os pobres organizados para cobrar do poder público um Estado de bem estar social. Sua crença repousa numa incompreensão da natureza humana. O homem não procura o sagrado para discutir o desemprego; procura porque quer bênçãos, milagres etc. Se o relato que Paes Manso faz da teologia da libertação for correto, só podemos supor que os televangelistas encontraram uma população carente não só de serviços públicos, mas também de serviços espirituais – e até de orientação para a vida familiar. Afinal, é mais fácil um padre esquerdista velho dar marmita para os cracudos do que incitar a juventude a ficar longe das drogas.

Se a prioridade do clero é fazer aquilo que o um assistente social esquerdista faz, então seu papel é melhor cumprido por burocratas ateus do Estado liberal. Assim entendemos por que um Bruno Paes Manso, que é quase todo um teólogo da libertação, não é religioso: a própria corrente encaminhava os seus pupilos para isso. E como o padre dizia aos fiéis que Deus não o queria desempregado, então só podemos supor que a teologia da libertação abriu os caminhos para os televangelistas, já que legitimou o desejo de uma solução divina para problemas financeiros.

O fato é que toda organização social humana precisa de sentido. Paes Manso não aprendeu isso com os católicos (pois suas fontes são de teologia da libertação), mas aprendeu isso com os evangélicos. Seu livro se encerra com uma tentativa de dar esse sentido coletivo por meio da adesão ao ambientalismo, para salvar o planeta. A essa altura, o autor já deveria ter visto que esse discurso não serve para dar coesão social nenhuma; do contrário, a verdíssima Alemanha seria o paraíso na terra. (E mais: se investigarmos as origens dos verdes alemães, chegaremos fácil ao nazismo!)

No frigir dos ovos, a teologia da libertação levou o liberalismo para a Igreja. E toda organização social que o liberalismo toca se esfarela. As próprias igrejas pentecostais, que abrem em garagens e se fragmentam a cada discordância, nada mais são que farelos, incapazes de dar uma coesão a um corpo político mais amplo que um punhado de fiéis. E como a elite intelectual brasileira era de origem católica, ela padeceu dos mesmos males do liberalismo. Agora está aí, falando sozinha e reclamando que o povo é de extrema-direita e anti-ciência.

Sem querer, Paes Manso mostra o que deu errado com o catolicismo no Brasil

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No último texto, vimos que o sociólogo e jornalista Bruno Paes Manso, em A fé e o fuzil, faz uma descrição desolada e precisa do Brasil moderno e urbano: um caos particularista, no qual quem consegue atender a clientelas e impor um mínimo de ordem vence. Assim, vencem ao mesmo tempo o Centrão, as igrejas milagreiras e as seitas do crime. As igrejas milagreiras, que são neopentecostais ou imitam o seu modus operandi, pecam por discutir somente moralidade em vez de fazer política; os políticos do Centrão prezam apenas por interesses particulares nem sempre lícitos; as seitas como o PCC criam um código de ética que organiza o crime e domesticam a bandidagem jovem na favela.

Ao mesmo tempo em que nos mostra a cosmovisão dos evangélicos de favela com os quais conversou, o autor revela a sua própria. E podemos dizer que é bem um retrato da elite intelectual brasileira: um híbrido de cultura católica com modernização liberal. Ele não esconde sua simpatia pela teologia da libertação, que foi uma tentativa da esquerda católica de conciliar sua religião com o marxismo. Foi uma febre na América Latina durante a década de 1970. Em 1984, porém, o Cardeal Ratzinger, à frente da Congregação para a Doutrina da Fé (outrora Santo Ofício), condenou a teologia da libertação e tirou-a (ao menos formalmente) da Igreja.

Marina Silva, apontada pelo autor como exemplo de evangélica capaz de atuar de maneira positiva na política, pretendia ser freira e foi formada pela teologia da libertação. Só se tornou evangélica quando já era senadora e tinha mais de quarenta anos.

Marina Silva era, pois, contraposta à normalidade dos evangélicos na política, que consiste em politizar costumes e impor crenças. Cito a página 86: “Eu achava que as discussões morais que brotavam a partir da Bíblia eram razoáveis. […] Nas últimas décadas, contudo, houve uma invasão dessas crenças no debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha pelo aborto não é banal. Em compensação, não é aceitável fechar os olhos para a realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa escolha difícil, política sustentada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização do aborto já vinha com os católicos, porém, a partir da popularização do pentecostalismo, o uso do sagrado se banalizou, mobilizado pelo discurso da guerra santa, demonizando adversários.”

Esse parágrafo é um atestado de liberalismo político. No liberalismo político, que teve sua sistematização antes do liberalismo econômico, ainda com Locke, a fé torna-se uma coisa privada e o Estado deve ser governado de maneira neutra. Em suas origens, o liberalismo era anticatólico; Locke pregava a tolerância com todas as seitas protestantes, mas não com o catolicismo. Isso se deve ao fato de que a monarquia britânica só é legítima se considerarmos, contrariamente à Igreja Católica, que o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão era nulo. Assim, tínhamos com Locke que as razões de Estado estavam acima das questões teológicas. O Estado liberal inglês não precisava da direção moral da Igreja Anglicana; precisava apenas que a Igreja Católica não atrapalhasse. Em sentido amplo, o Estado liberal precisa apenas que a Igreja (qualquer que seja ela) não atrapalhe os seus desígnios. Mas quem dá esses desígnios?

A ideia profundamente liberal de que o Estado deve ser neutro diante das religiões terminou por legitimar a tecnocracia. Os liberais têm uma cegueira peculiar, pois creem que os seus valores são neutros e científicos, quando na verdade são os valores de uma elite voltada à direção do Estado. Por isso mesmo eles são ateus ou agnósticos, já que a recusa das crenças religiosas é esperadas de que vai dirigir o Estado liberal.

No entanto, como esse conjunto de crenças liberais ruma para posições cada vez mais esdrúxulas e impopulares (agora ciência manda acreditar que mulheres têm pênis…), o resultado inevitável é que a elite liberal se descole do povo e se torne incapaz de pensar uma comunidade com ele. Em vez disso, resta à elite a pretensão de gerenciá-lo: na melhor das hipóteses, com humanitarismo; na pior, como um conjunto de escravos. No caso em tela, a elite intelectual brasileira acha que o aborto tem que ser liberado e o gado tem que engolir isso, mesmo que viva nominalmente sob uma democracia e vote em políticos que se dizem contra o aborto. É óbvio que o liberalismo é incompatível com a soberania popular.

Embora seja agnóstico, Paes Manso repete pelo menos dois católicos em sua posição sobre o aborto: Leonardo Boff (teólogo da libertação brasileiro) e Joe Biden. Esses dois católicos heterodoxos defendem o aborto sob a chave liberal: as religiões devem se confinar ao âmbito privado e a política deve ser decidida segundo critérios técnicos. Aí, para dizerem que são contra o aborto, fazem uma série de ressalvas, alegando que abortar é uma decisão muito difícil para a mulher; que o aborto deve ser raríssimo, mesmo que o Estado não ponha freio nenhum. Ora, depois da decisão Dobbs em 2022, essa falácia deveria ter caído por terra: vimos que as mulheres dos EUA usavam o aborto como uma contracepção banal, e vimos que é do interesse das grandes empresas financiar viagens das suas funcionárias para estados com aborto. É difícil, se não impossível, adotar o liberalismo político sem fomentar o liberalismo econômico.

A teologia da libertação faz de conta que o liberalismo econômico nada tem em comum com o liberalismo político. Assim, os teólogos da libertação esposaram este último e, ao mesmo tempo, posaram de combatentes do primeiro. Daí vem o seu penchant por um esquerdismo difuso. No caso de Paes Manso, vemo-lo aderir até mesmo ao mito do Comintern segundo o qual o cangaço era uma revolta popular contra os grandes proprietários – mito datado, que nenhum historiador do cangaço ousará repetir.

Lendo o livro, ficamos com a impressão de que tudo é datado nessa cosmovisão da teologia da libertação. Diz Paes Manso à página 154: “O mote da nova teologia [a da libertação] era ‘ver, julgar e agir’, o que implicava, inicialmente, entender o contexto de forma crítica usando ferramentas das ciências humanas e deixando as lendas e superstições de lado. O novo olhar deveria usar métodos de disciplinas modernas, como sociologia, antropologia e psicanálise, para proporcionar uma visão menos ingênua do mundo. Quais os mecanismos sociais que produziram a pobreza? Por que a sociedade era tão desigual? Para obter essas respostas, os religiosos da libertação usavam um instrumental marxista, materialista, histórico e dialético, que colocava a luta de classes em primeiro plano, como engrenagem de mudanças.” Ou seja: como bons liberais, os teólogos da libertação buscaram imitar a ciência e se atualizaram. Atualizando-se, adotaram verdadeiros modismos que, na década de 1970, podiam parecer muito inovadores, mas que não resistiram ao tempo e hoje são simplesmente datados.

Paes Manso mostra ter uma visão muito enviesada da história da Igreja, que talvez fosse difundida por teólogos da libertação depois de seu banimento pelo Vaticano. A história é a seguinte: a Igreja sempre defendeu o capitalismo e a conciliação de classes, até que, para deter o comunismo, precisou se preocupar com os pobres. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, aconteceu nessa conjuntura. Nesse ambiente atípico, surgiu a teologia da libertação, que infundia consciência de classe nos pobres e os organizava para cobrar o poder público. Em vez de tratar de questões espirituais, os padres orientavam os fiéis a se perguntar pelo porquê do desemprego, dizendo-lhes que não se tratava da vontade divina. Nas palavras de Paes Manso: “Em vez de benzê-los ou de rezar por eles, os religiosos conversavam sobre suas condições de vida e usavam a Bíblia para provocar o compromisso com a luta coletiva.” Passada a ameaça comunista, o Vaticano joga fora a teologia da libertação. Vendo o pentecostalismo tomar o seu lugar nas periferias, o Vaticano promove a Renovação Carismática, “que trazia para o centro da missa o poder do Espírito Santo, com suas curas milagrosas, êxtases, exorcismos, glossolalias e muita música.” Ou seja, imita os pentecostais para disputar fiéis.

Paes Manso está redondamente enganado ao achar que a Igreja só passou a ficar contra o capitalismo na década de 1960. Embora fale da Ação Católica, ignora a Doutrina Social da Igreja, bem como as encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), dois documentos que visaram à domesticação do capital.

De resto, o autor parece crer que, se não fossem o Vaticano (que tolheu a teologia da libertação) e os pentecostais (que não fazem boa política), o Brasil viveria num idílio de participação popular, com os pobres organizados para cobrar do poder público um Estado de bem estar social. Sua crença repousa numa incompreensão da natureza humana. O homem não procura o sagrado para discutir o desemprego; procura porque quer bênçãos, milagres etc. Se o relato que Paes Manso faz da teologia da libertação for correto, só podemos supor que os televangelistas encontraram uma população carente não só de serviços públicos, mas também de serviços espirituais – e até de orientação para a vida familiar. Afinal, é mais fácil um padre esquerdista velho dar marmita para os cracudos do que incitar a juventude a ficar longe das drogas.

Se a prioridade do clero é fazer aquilo que o um assistente social esquerdista faz, então seu papel é melhor cumprido por burocratas ateus do Estado liberal. Assim entendemos por que um Bruno Paes Manso, que é quase todo um teólogo da libertação, não é religioso: a própria corrente encaminhava os seus pupilos para isso. E como o padre dizia aos fiéis que Deus não o queria desempregado, então só podemos supor que a teologia da libertação abriu os caminhos para os televangelistas, já que legitimou o desejo de uma solução divina para problemas financeiros.

O fato é que toda organização social humana precisa de sentido. Paes Manso não aprendeu isso com os católicos (pois suas fontes são de teologia da libertação), mas aprendeu isso com os evangélicos. Seu livro se encerra com uma tentativa de dar esse sentido coletivo por meio da adesão ao ambientalismo, para salvar o planeta. A essa altura, o autor já deveria ter visto que esse discurso não serve para dar coesão social nenhuma; do contrário, a verdíssima Alemanha seria o paraíso na terra. (E mais: se investigarmos as origens dos verdes alemães, chegaremos fácil ao nazismo!)

No frigir dos ovos, a teologia da libertação levou o liberalismo para a Igreja. E toda organização social que o liberalismo toca se esfarela. As próprias igrejas pentecostais, que abrem em garagens e se fragmentam a cada discordância, nada mais são que farelos, incapazes de dar uma coesão a um corpo político mais amplo que um punhado de fiéis. E como a elite intelectual brasileira era de origem católica, ela padeceu dos mesmos males do liberalismo. Agora está aí, falando sozinha e reclamando que o povo é de extrema-direita e anti-ciência.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

No último texto, vimos que o sociólogo e jornalista Bruno Paes Manso, em A fé e o fuzil, faz uma descrição desolada e precisa do Brasil moderno e urbano: um caos particularista, no qual quem consegue atender a clientelas e impor um mínimo de ordem vence. Assim, vencem ao mesmo tempo o Centrão, as igrejas milagreiras e as seitas do crime. As igrejas milagreiras, que são neopentecostais ou imitam o seu modus operandi, pecam por discutir somente moralidade em vez de fazer política; os políticos do Centrão prezam apenas por interesses particulares nem sempre lícitos; as seitas como o PCC criam um código de ética que organiza o crime e domesticam a bandidagem jovem na favela.

Ao mesmo tempo em que nos mostra a cosmovisão dos evangélicos de favela com os quais conversou, o autor revela a sua própria. E podemos dizer que é bem um retrato da elite intelectual brasileira: um híbrido de cultura católica com modernização liberal. Ele não esconde sua simpatia pela teologia da libertação, que foi uma tentativa da esquerda católica de conciliar sua religião com o marxismo. Foi uma febre na América Latina durante a década de 1970. Em 1984, porém, o Cardeal Ratzinger, à frente da Congregação para a Doutrina da Fé (outrora Santo Ofício), condenou a teologia da libertação e tirou-a (ao menos formalmente) da Igreja.

Marina Silva, apontada pelo autor como exemplo de evangélica capaz de atuar de maneira positiva na política, pretendia ser freira e foi formada pela teologia da libertação. Só se tornou evangélica quando já era senadora e tinha mais de quarenta anos.

Marina Silva era, pois, contraposta à normalidade dos evangélicos na política, que consiste em politizar costumes e impor crenças. Cito a página 86: “Eu achava que as discussões morais que brotavam a partir da Bíblia eram razoáveis. […] Nas últimas décadas, contudo, houve uma invasão dessas crenças no debate público. Os dogmas passaram a ser usados para manipular e estigmatizar políticas públicas e seus defensores, interditando debates importantes, atacando a ciência e a objetividade. O debate em torno do aborto é um exemplo emblemático. Compreensivelmente, os religiosos trazem para a conversa a defesa da vida do feto e o problema da objetificação do sexo e da mulher. A escolha pelo aborto não é banal. Em compensação, não é aceitável fechar os olhos para a realidade e criminalizar as mulheres que fazem essa escolha difícil, política sustentada no Brasil pelo lobby religioso. O tabu em torno da descriminalização do aborto já vinha com os católicos, porém, a partir da popularização do pentecostalismo, o uso do sagrado se banalizou, mobilizado pelo discurso da guerra santa, demonizando adversários.”

Esse parágrafo é um atestado de liberalismo político. No liberalismo político, que teve sua sistematização antes do liberalismo econômico, ainda com Locke, a fé torna-se uma coisa privada e o Estado deve ser governado de maneira neutra. Em suas origens, o liberalismo era anticatólico; Locke pregava a tolerância com todas as seitas protestantes, mas não com o catolicismo. Isso se deve ao fato de que a monarquia britânica só é legítima se considerarmos, contrariamente à Igreja Católica, que o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão era nulo. Assim, tínhamos com Locke que as razões de Estado estavam acima das questões teológicas. O Estado liberal inglês não precisava da direção moral da Igreja Anglicana; precisava apenas que a Igreja Católica não atrapalhasse. Em sentido amplo, o Estado liberal precisa apenas que a Igreja (qualquer que seja ela) não atrapalhe os seus desígnios. Mas quem dá esses desígnios?

A ideia profundamente liberal de que o Estado deve ser neutro diante das religiões terminou por legitimar a tecnocracia. Os liberais têm uma cegueira peculiar, pois creem que os seus valores são neutros e científicos, quando na verdade são os valores de uma elite voltada à direção do Estado. Por isso mesmo eles são ateus ou agnósticos, já que a recusa das crenças religiosas é esperadas de que vai dirigir o Estado liberal.

No entanto, como esse conjunto de crenças liberais ruma para posições cada vez mais esdrúxulas e impopulares (agora ciência manda acreditar que mulheres têm pênis…), o resultado inevitável é que a elite liberal se descole do povo e se torne incapaz de pensar uma comunidade com ele. Em vez disso, resta à elite a pretensão de gerenciá-lo: na melhor das hipóteses, com humanitarismo; na pior, como um conjunto de escravos. No caso em tela, a elite intelectual brasileira acha que o aborto tem que ser liberado e o gado tem que engolir isso, mesmo que viva nominalmente sob uma democracia e vote em políticos que se dizem contra o aborto. É óbvio que o liberalismo é incompatível com a soberania popular.

Embora seja agnóstico, Paes Manso repete pelo menos dois católicos em sua posição sobre o aborto: Leonardo Boff (teólogo da libertação brasileiro) e Joe Biden. Esses dois católicos heterodoxos defendem o aborto sob a chave liberal: as religiões devem se confinar ao âmbito privado e a política deve ser decidida segundo critérios técnicos. Aí, para dizerem que são contra o aborto, fazem uma série de ressalvas, alegando que abortar é uma decisão muito difícil para a mulher; que o aborto deve ser raríssimo, mesmo que o Estado não ponha freio nenhum. Ora, depois da decisão Dobbs em 2022, essa falácia deveria ter caído por terra: vimos que as mulheres dos EUA usavam o aborto como uma contracepção banal, e vimos que é do interesse das grandes empresas financiar viagens das suas funcionárias para estados com aborto. É difícil, se não impossível, adotar o liberalismo político sem fomentar o liberalismo econômico.

A teologia da libertação faz de conta que o liberalismo econômico nada tem em comum com o liberalismo político. Assim, os teólogos da libertação esposaram este último e, ao mesmo tempo, posaram de combatentes do primeiro. Daí vem o seu penchant por um esquerdismo difuso. No caso de Paes Manso, vemo-lo aderir até mesmo ao mito do Comintern segundo o qual o cangaço era uma revolta popular contra os grandes proprietários – mito datado, que nenhum historiador do cangaço ousará repetir.

Lendo o livro, ficamos com a impressão de que tudo é datado nessa cosmovisão da teologia da libertação. Diz Paes Manso à página 154: “O mote da nova teologia [a da libertação] era ‘ver, julgar e agir’, o que implicava, inicialmente, entender o contexto de forma crítica usando ferramentas das ciências humanas e deixando as lendas e superstições de lado. O novo olhar deveria usar métodos de disciplinas modernas, como sociologia, antropologia e psicanálise, para proporcionar uma visão menos ingênua do mundo. Quais os mecanismos sociais que produziram a pobreza? Por que a sociedade era tão desigual? Para obter essas respostas, os religiosos da libertação usavam um instrumental marxista, materialista, histórico e dialético, que colocava a luta de classes em primeiro plano, como engrenagem de mudanças.” Ou seja: como bons liberais, os teólogos da libertação buscaram imitar a ciência e se atualizaram. Atualizando-se, adotaram verdadeiros modismos que, na década de 1970, podiam parecer muito inovadores, mas que não resistiram ao tempo e hoje são simplesmente datados.

Paes Manso mostra ter uma visão muito enviesada da história da Igreja, que talvez fosse difundida por teólogos da libertação depois de seu banimento pelo Vaticano. A história é a seguinte: a Igreja sempre defendeu o capitalismo e a conciliação de classes, até que, para deter o comunismo, precisou se preocupar com os pobres. O Concílio Vaticano II, na década de 1960, aconteceu nessa conjuntura. Nesse ambiente atípico, surgiu a teologia da libertação, que infundia consciência de classe nos pobres e os organizava para cobrar o poder público. Em vez de tratar de questões espirituais, os padres orientavam os fiéis a se perguntar pelo porquê do desemprego, dizendo-lhes que não se tratava da vontade divina. Nas palavras de Paes Manso: “Em vez de benzê-los ou de rezar por eles, os religiosos conversavam sobre suas condições de vida e usavam a Bíblia para provocar o compromisso com a luta coletiva.” Passada a ameaça comunista, o Vaticano joga fora a teologia da libertação. Vendo o pentecostalismo tomar o seu lugar nas periferias, o Vaticano promove a Renovação Carismática, “que trazia para o centro da missa o poder do Espírito Santo, com suas curas milagrosas, êxtases, exorcismos, glossolalias e muita música.” Ou seja, imita os pentecostais para disputar fiéis.

Paes Manso está redondamente enganado ao achar que a Igreja só passou a ficar contra o capitalismo na década de 1960. Embora fale da Ação Católica, ignora a Doutrina Social da Igreja, bem como as encíclicas Rerum Novarum (1891) e Quadragesimo Anno (1931), dois documentos que visaram à domesticação do capital.

De resto, o autor parece crer que, se não fossem o Vaticano (que tolheu a teologia da libertação) e os pentecostais (que não fazem boa política), o Brasil viveria num idílio de participação popular, com os pobres organizados para cobrar do poder público um Estado de bem estar social. Sua crença repousa numa incompreensão da natureza humana. O homem não procura o sagrado para discutir o desemprego; procura porque quer bênçãos, milagres etc. Se o relato que Paes Manso faz da teologia da libertação for correto, só podemos supor que os televangelistas encontraram uma população carente não só de serviços públicos, mas também de serviços espirituais – e até de orientação para a vida familiar. Afinal, é mais fácil um padre esquerdista velho dar marmita para os cracudos do que incitar a juventude a ficar longe das drogas.

Se a prioridade do clero é fazer aquilo que o um assistente social esquerdista faz, então seu papel é melhor cumprido por burocratas ateus do Estado liberal. Assim entendemos por que um Bruno Paes Manso, que é quase todo um teólogo da libertação, não é religioso: a própria corrente encaminhava os seus pupilos para isso. E como o padre dizia aos fiéis que Deus não o queria desempregado, então só podemos supor que a teologia da libertação abriu os caminhos para os televangelistas, já que legitimou o desejo de uma solução divina para problemas financeiros.

O fato é que toda organização social humana precisa de sentido. Paes Manso não aprendeu isso com os católicos (pois suas fontes são de teologia da libertação), mas aprendeu isso com os evangélicos. Seu livro se encerra com uma tentativa de dar esse sentido coletivo por meio da adesão ao ambientalismo, para salvar o planeta. A essa altura, o autor já deveria ter visto que esse discurso não serve para dar coesão social nenhuma; do contrário, a verdíssima Alemanha seria o paraíso na terra. (E mais: se investigarmos as origens dos verdes alemães, chegaremos fácil ao nazismo!)

No frigir dos ovos, a teologia da libertação levou o liberalismo para a Igreja. E toda organização social que o liberalismo toca se esfarela. As próprias igrejas pentecostais, que abrem em garagens e se fragmentam a cada discordância, nada mais são que farelos, incapazes de dar uma coesão a um corpo político mais amplo que um punhado de fiéis. E como a elite intelectual brasileira era de origem católica, ela padeceu dos mesmos males do liberalismo. Agora está aí, falando sozinha e reclamando que o povo é de extrema-direita e anti-ciência.

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