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O corte de gastos anunciado pelo governo não vai frear a investida do “mercado”. Os banqueiros detestaram as medidas de Fernando Haddad, em particular a isenção de IR para quem ganha até R$ 5 mil, bem como a taxação de quem recebe mais de R$ 50 mil. Todos os grandes jornais têm disseminado o terrorismo dos “investidores” e do “setor econômico”, que exige um corte de gastos à Javier Milei – como escancarou o Estadão.
Por outro lado, o corte de gastos de Haddad também vai desagradar a classe trabalhadora e não deverá gerar grande apoio da classe média. Ele representa uma redução do valor real do salário mínimo e um corte no abono salarial, por exemplo. O benefício dos que ficarão isentos do IR só chegará em 2026, se passar pelo Congresso. O aumento da idade da aposentadoria dos militares também não ajuda a reduzir as tensões com as Forças Armadas.
Uma parte da esquerda, a pretexto das necessárias críticas à política econômica do governo, ensaia repetir a política que adotou a partir do final de 2013 contra a ex-presidenta Dilma Rousseff. O que ocorreu com o ajuste fiscal de Joaquim Levy, no segundo mandato, pode, assim, estar se repetindo agora. Não há grande diferença: pressionada violentamente pelos banqueiros, Dilma cedeu e realizou uma reforma impopular para os dois lados, foi atacada pela esquerda e pela direita (que a sabotou no Congresso, como deve fazer com Lula), derrubada e o que se viu foi um novo governo que implementou a reforma que os especuladores queriam.
A lei das terceirizações, as reformas trabalhista e previdenciária e o estabelecimento do teto de gastos fazem parte do conjunto que forma a obra-prima de Michel Temer. E que, como tal, têm garantido que os governos seguintes não possam retomar minimamente uma política desenvolvimentista ou investido em programas sociais. As manobras de Lula não conseguem fazê-lo escapar da armadilha que foi criada.
Infelizmente, uma parcela dos apoiadores do presidente acredita de maneira muito ingênua na história cor-de-rosa que os principais veículos, influenciadores e políticos progressistas tentam contar sobre o governo. Para eles, tudo está às mil maravilhas. Se há problemas, é devido ao mal representado por Jair Bolsonaro – e só por ele e por seus aliados mais próximos.
O maniqueísmo é cego
Primeiro, ficaram histéricos com o 8 de janeiro. Depois, com o bestão que acabou se matando. Agora, com os moleques que planejaram um putsch fracassado. Contudo, teleguiados pela Globo ou pela Folha, só falam em “Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro” e não percebem a verdadeira ameaça.
Se não houve um golpe de Estado no final do mandato de Bolsonaro, foi – como está claramente retratado nas investigações – porque a alta cúpula das Forças Armadas não quis. Mas por que ela não quis? Porque seus membros são democratas, usam linguagem inclusiva e cabelos cheios e encaracolados?
Ora, a alta cúpula ficou sabendo dos planos. Três membros queriam “muito” um golpe. Oito estavam em cima do muro. Cinco não queriam. Mas não é que os que não queriam agiram para evitar o golpe. Eles lavaram as mãos. Ninguém prendeu os conspiradores, nem os denunciou. As Forças Armadas estão sendo consideradas as salvadoras da democracia, mesmo não tendo feito absolutamente nada para evitar um eventual golpe militar (pior, mesmo que parte de sua cúpula o tenha apoiado, e a outra se omitido). Também não houve uma condenação enfática dos planos da ala extremista.
Não houve um golpe militar porque as condições não estavam maduras, simplesmente por isso. Como são profissionais e detêm as melhores relações, os setores “democratas” da alta cúpula sabiam que seria precipitado.
Dois anos depois, no entanto, as condições estão mais maduras. O governo se vê encurralado e imobilizado pelo “mercado” e seus agentes. E o “mercado” não pretende suportar este governo por muito tempo. É quando os interesses do “mercado” convergem com os dos militares que o perigo se torna iminente. Em 1954, os militares partiram para cima de Vargas devido à sua política econômica e, em particular, à política salarial do então ministro João Goulart. Dez anos depois, novamente as medidas econômicas foram a essência da escalada golpista, que desembocou na saída dos tanques dos quarteis em 31 de março e a deposição do governo em 1° de abril.
Um dos episódios do drama que precedeu o golpe de 1964 foi a fuga de capitais do país, sinal de que os capitalistas não tinham mais nenhuma expectativa com o governo e o estavam descartando, ao mesmo tempo em que desestabilizavam o país. No primeiro semestre de 2024, houve a maior retirada de investimentos desde o fim da ditadura. Um analista econômico alemão escreveu no site da DW em maio:
“O índice da bolsa nacional é pior entre todos os mercados de valores do mundo. A cotação do real em relação ao dólar caiu significativamente, ao contrário das demais moedas latino-americanas. Aumentam as sobretaxas de juros que os investidores estrangeiros exigem para incluir os títulos brasileiros em seus portfólios. O risco Brasil está aumentando do ponto de vista dos mercados financeiros.”
Até outubro, a balança da Bolsa de Valores foi positiva, com injeção de investimentos, em apenas dois meses. Em todos os outros houve perda de investimentos estrangeiros. Os especuladores financeiros queriam fortes cortes de gastos para se sentir minimamente seguros. E se decepcionaram esta semana. Já fizeram as ações da Bolsa despencarem e o dólar bater nos R$ 6,00.
Os golpes de 1954 e 1964 foram precedidos por “aproximações sucessivas”, para usar a expressão do general Hamilton Mourão. Diversos episódios conspirativos testaram a disposição dos elementos vacilantes dentro das Forças Armadas e a força do Executivo e de sua base apoiadora. Aquelas investidas também visavam os políticos do centrão da época. Magalhães Pinto, o governador de Minas (de onde partiram os tanques), era considerado um democrata até os últimos momentos do golpe de 1964. Apregoava o fim da polarização. O marechal Castelo Branco – nomeado por Jango como chefe do Estado-Maior do exército – era da ala democrata das Forças Armadas. No Chile, Augusto Pinochet havia declarado fidelidade a Salvador Allende e também era considerado um oficial legalista em 1973. Foram eles que conduziram seus respectivos golpes.
Como hoje, em 1964 os mais próximos do governo também pintavam um cenário ilusório, de que tudo estava sob controle. Um jornal oficioso estampava em sua manchete de 28 de março: “Decisão de Jango Resolveu a Crise”. Na tarde do dia 31, o ministro da Justiça expressava enorme tranquilidade à imprensa: “o governo está forte, como sempre.” Algumas horas depois, os militares assumiram o poder sem precisar disparar um único tiro.
Não é preciso recorrer apenas à história do nosso país para começar a se preocupar. A realidade no nosso entorno também está se tornando propícia para uma mudança de regime no Brasil. A chegada de Milei ao poder na Argentina significou uma inclinação significativa para o golpismo de direita no continente. Como o maior, mais importante e mais influente país da região, depois do Brasil, a Argentina conseguiu ajudar a instalar um outro governo de direita na América do Sul, logo em seguida: Daniel Noboa no Equador. Mal iniciou seu mandato, Noboa aplicou um fechamento de regime ao conceder amplos poderes para os militares. No Peru, ao mesmo tempo, Dina Boluarte (que assumiu após a queda de Pedro Castillo) recorreu ao mesmo expediente, investindo as forças armadas de significativo poder político. No meio do ano, a Bolívia também viveu um putsch fracassado. Naquele momento, o alto comando ficou apenas assistindo para ver no que dava. Mas, diante do aprofundamento da crise política, econômica e social, do enfraquecimento do governo Arce e da ameaça enxergada no “radicalismo” de Evo Morales, parece apenas questão de tempo para que os militares apliquem um golpe.
Se, no final de 2022, portanto, as condições não eram propícias para um golpe militar no Brasil, o cenário internacional daqui em diante será diferente. Em especial devido à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos. O presidente eleito indicou Marco Rubio para o Departamento de Estado. Rubio, um cubano-americano da Flórida, atua abertamente há anos para derrubar governos de esquerda como os da Nicarágua, Venezuela e Cuba. Ele já declarou que pretende formar uma aliança de governos liderados pelos EUA, indicando que serviria para combater os governos de esquerda e também a influência russa e chinesa na região.
Rubio terá um parceiro extremamente alinhado com suas visões no Comando Sul. No dia seguinte à eleição de Trump, o almirante Alvin Halsey tomou posse como novo chefe do organismo militar dos EUA. Em seu discurso de posse, ele disse que Rússia e China (“nossos adversários”) “estabeleceram uma forte presença, colocando em risco a estabilidade da segurança em toda a América”. Segundo Halsey, Moscou e Pequim são “concorrentes” de Washington que buscam “minar a democracia enquanto ganham poder e influência na região”. Lloyd Austin, atual secretário de Defesa, esteve presente na cerimônia e disse que a China quer expandir sua “influência maligna” na América Latina, repetindo o tom de Laura Richardson, que foi substituída por Halsey, segundo o qual há no continente uma “luta entre democracia e autocracia”.
Nunca é demais lembrar que, em 2019, durante o primeiro mandato de Trump, ocorreu um golpe semimilitar e semipolicial na Bolívia e uma tentativa de invasão da Venezuela com o apoio de setores militares do país.
As aproximações sucessivas dos militares vêm ocorrendo há mais de dez anos, seguindo a nova tendência intervencionista dos Estados Unidos na América Latina.
De sua parte, Lula tenta se equilibrar interna e externamente. Experiente e grande negociador, tem conseguido um êxito relativo ao lidar com o capital financeiro e os EUA. Apesar disso, encontra-se preso em amarras internas (o regime econômico neoliberal instalado após a redemocratização) e externas (a posição histórica do Brasil como nação subdesenvolvida dentro do quintal dos EUA).
Se Lula pensa que uma política moderada, equilibrada, pretensamente inofensiva e que faz concessões aos adversários pode livrá-lo do pior, mais um exemplo de 60 anos atrás deve ser lembrado: Jango tentou seguir pelo mesmo caminho. Ele queria apenas aplicar a política da Aliança para o Progresso, iniciada pelo presidente John Kennedy dos EUA.
O 8 de janeiro não foi um golpe, mas pode muito bem ter sido um ensaio de revolução colorida da extrema-direita. Porém, como foi em 1964 com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade e em 2016 com os protestos do pato da Fiesp, para ser bem-sucedida uma revolução colorida (leia-se, um golpe de Estado) precisa da organização e do financiamento do “mercado”. Que tende a ocorrer mais cedo do que tarde.