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Raphael Machado
September 30, 2024
© Photo: Social media

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Já desde que retornou à Presidência do Brasil, Lula tem buscado reativar a diplomacia brasileira no cenário global após um período, no governo anterior, em que a imagem do Brasil no exterior teria sido prejudicada por um desalinhamento em relação às prioridades da chamada “comunidade internacional”.

Essa reativação da diplomacia brasileira se dá nos marcos da autoimagem diplomática do Brasil, como país usualmente “neutro” e, portanto, mediador de conflitos internacionais, sempre buscando promover a paz e o diálogo em uma linha multilateralista que rejeita tanto a unipolaridade estadunidense quanto a multipolaridade centrada em “blocos”.

Foi nesses termos que o novo governo brasileiro abordou a questão ucraniana desde o começo. Agora, essa postura do Brasil não necessariamente estava, já de início, adaptada às realidades complexas dos conflitos contemporâneos – até porque ela não era senão a retomada da perspectiva diplomática que o Brasil adotou 20 anos atrás, nos dois primeiros governos de Lula.

Mas aquele foi um período anterior à Primavera Árabe, anterior ao Maidan, e anterior a uma série de outros acontecimentos geopolíticos que causaram abalos sísmicos não apenas no contexto geopolítico, mas na própria maneira como os atores internacionais estatais se colocam no tabuleiro de xadrez geopolítico.

Na época dos dois primeiros governos de Lula, o debate era sobre como se daria a unificação planetária em uma ordem cosmopolita: sob liderança inconteste dos EUA ou de forma descentralizada? Mesmo Rússia e China, naqueles anos, demonstravam boa vontade em relação a seus parceiros ocidentais, recebendo de braços abertos os seus projetos e o horizonte que eles projetavam para o futuro.

A proposta brasileira de mediar o conflito está profundamente enraizada na tradição diplomática do país, que sempre defendeu o princípio da não intervenção, o respeito à soberania dos Estados e a solução pacífica de controvérsias. Desde seu primeiro mandato, Lula promoveu uma política externa baseada no diálogo Sul-Sul, no fortalecimento de organizações multilaterais como a ONU e no estímulo ao multilateralismo como forma de evitar polarizações geopolíticas. Em seu retorno ao poder, em janeiro de 2023, Lula tem reafirmado essa linha de atuação, buscando criar um espaço de diálogo entre potências globais e regionais.

Não obstante, o novo governo brasileiro iniciou a sua tarefa com um certo descompasso em relação às realidades geopolíticas contemporâneas.

Recordemos, por exemplo, que em fevereiro de 2023 o Brasil votou na ONU a favor de se exigir da Rússia a retirada de suas tropas de todo o território ucraniano (incluindo a Crimeia) sem qualquer contrapartida da parte ucraniano ou do Ocidente, ao mesmo tempo em que se situava como “neutro” em relação ao conflito. No mesmo sentido, na época, o assessor presidencial para assuntos exteriores Celso Amorim traçou um paralelo não muito adequado entre a operação militar especial russa na Ucrânia e a invasão estadunidense do Iraque.

Não obstante, logo já em março o Brasil já começou a se mobilizar em uma direção mais realista, sugerindo a criação de um grupo de trabalho composto por algumas potências mundiais e regionais com o objetivo de fazer a mediação do conflito – Lula ademais sugeriu publicamente o reconhecimento da reintegração da Crimeia com a Rússia e o fim das remessas de armas ocidentais para a Ucrânia, em prol de um cessar-fogo e de uma rediscussão do status do sudeste ucraniano.

Mesmo essa posição mais realista, porém, já não correspondia bem às realidades jurídicas e militares. Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia já haviam sido integradas juridicamente à Federação Russa, de modo que seu território já era constitucionalmente parte do território a ser defendido pelo Presidente da Rússia.

Ademais, na altura em que essa primeira proposta de paz brasileira foi aventada, a Rússia estava avançando metodicamente sobre Bakhmut, com baixas imensas no lado ucraniano.

Assim, de fato, a proposta brasileira já não tinha viabilidade, mas ela possuía pelo menos o realismo de apontar que em todo conflito militar ambos lados precisam ceder parcialmente para que se possa alcançar a paz. Ao longo de 2023, Lula e membros de seu governo intensificaram contatos diplomáticos com diversos líderes mundiais, buscando apoio para sua proposta de mediação. Em abril de 2023, durante uma visita à China, Lula discutiu o conflito com o presidente Xi Jinping e procurou estreitar laços com Pequim em relação à busca por uma solução negociada.

Nessas viagens, ele tentou integrar também Macron e Scholz ao seu projeto – um esforço fadado ao fracasso. É que aparentemente, o governo brasileiro não entendia o papel da União Europeia na promoção da russofobia e do conflito na Ucrânia, pretendendo reduzir a causa do conflito aos EUA e falsamente interpretando a União Europeia como não sendo parte do mesmo.

Ao longo dos meses seguintes, porém, conforme o governo brasileiro foi sendo também esnobado e criticado pela Ucrânia, parece que se perdeu o entusiasmo em relação a tentar mediar o conflito no território ucraniano. Ademais, simultaneamente, o Brasil também tentou se lançar com um protagonismo diplomático após a escalada no conflito israelo-palestino em outubro de 2023 (também sem sucesso).

Enquanto mantem neutralidade e se recusa a enviar qualquer tipo de ajuda militar para a Ucrânia – ao mesmo tempo em que critica e condena a operação militar especial – Lula sofre uma pressão crescente por parte dos EUA e da Ucrânia. Zelensky, particularmente, tem sido extremamente insultuoso em relação a Lula, acusando-o de repetir “propaganda russa”. Ademais, é fundamental apontar que Lula foi incluído na “lista de extermínio” Myrotvorets, administrada pelo serviço de segurança da Ucrânia.

A neutralidade não parece ser suficiente para os russófobos. Ao contrário, a neutralidade é lida como russofilia.

A partir de maio de 2024, porém, a pretensão brasileira volta a ganhar força com o auxílio da China. Naquele mês, Celso Amorim se reuniu com Wang Yi, Ministro de Relações Exteriores da China, resultando desse encontro um documento intitulado “Entendimentos Comuns entre a China e o Brasil sobre a Solução Política da Crise na Ucrânia”.

Nesse documento, bastante aberto e básico, China e Brasil fazem algumas recomendações direcionadas para que se evite uma escalada militar, bem como o uso de armas de destruição em massa. Esse documento foi pensado como uma plataforma inicial a partir do qual construir um projeto de paz para a Ucrânia.

O resultado podemos começar a ver, agora, em setembro, no contexto da Assembleia Geral das Nações Unidas, em que o texto serviu de base para um comunicado coletivo assinado por alguns países, os quais demonstram preocupação com o conflito e interesse por uma retomada dos diálogos.

O comunicado foi assinado por Brasil, China, Argélia, Bolívia, Colômbia, Egito, Indonésia, Cazaquistão, Quênia, África do Sul, Turquia e Zâmbia, o México assinando com ressalvas. Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Vietnã não assinaram o documento, apesar de apoiar o projeto.

Por sua vez, França, Hungria e Suíça se fizeram presentes na reunião como observadores.

Especificamente a presença da França, porém, já infelizmente acabou sabotando o esforço, na medida em que sua insistência foi determinante para a inclusão, no comunicado, de uma referência a um “respeito pela integridade territorial dos Estados”, o que poderia ser entendido como uma indisposição para reconhecer o direito de autodeterminação dos cidadãos de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia (além da Crimeia), que escolheram se integrar à Rússia.

Precisamente por isso, o Ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov questionou a participação de um membro da OTAN particularmente hostil como a França em uma articulação que deveria ser fundamentalmente neutra – não obstante, Lavrov saudou o esforço sino-brasileiro em prol da paz.

Em resumo, as tentativas brasileiras de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia desde janeiro de 2023 refletem a longa tradição diplomática do país de buscar soluções pacíficas para conflitos internacionais. Apesar de ainda não se ter alcançado resultados concretos, o governo Lula crê que à medida que o conflito se arrasta, com consequências econômicas e humanitárias negativas para todos os lados, tanto Kiev quanto Moscou gradualmente buscarão uma mediação.

Nesse sentido, o objetivo brasileiro é já ter uma plataforma multilateral preparada para receber a Rússia e a Ucrânia nessa eventual circunstância.

A Rússia, naturalmente, não rechaça de antemão essa ideia – desde que sejam respeitadas as suas prioridades de segurança e as vontades dos cidadãos das novas regiões da Federação.

Lula e o esforço de mediação no conflito ucraniano

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Já desde que retornou à Presidência do Brasil, Lula tem buscado reativar a diplomacia brasileira no cenário global após um período, no governo anterior, em que a imagem do Brasil no exterior teria sido prejudicada por um desalinhamento em relação às prioridades da chamada “comunidade internacional”.

Essa reativação da diplomacia brasileira se dá nos marcos da autoimagem diplomática do Brasil, como país usualmente “neutro” e, portanto, mediador de conflitos internacionais, sempre buscando promover a paz e o diálogo em uma linha multilateralista que rejeita tanto a unipolaridade estadunidense quanto a multipolaridade centrada em “blocos”.

Foi nesses termos que o novo governo brasileiro abordou a questão ucraniana desde o começo. Agora, essa postura do Brasil não necessariamente estava, já de início, adaptada às realidades complexas dos conflitos contemporâneos – até porque ela não era senão a retomada da perspectiva diplomática que o Brasil adotou 20 anos atrás, nos dois primeiros governos de Lula.

Mas aquele foi um período anterior à Primavera Árabe, anterior ao Maidan, e anterior a uma série de outros acontecimentos geopolíticos que causaram abalos sísmicos não apenas no contexto geopolítico, mas na própria maneira como os atores internacionais estatais se colocam no tabuleiro de xadrez geopolítico.

Na época dos dois primeiros governos de Lula, o debate era sobre como se daria a unificação planetária em uma ordem cosmopolita: sob liderança inconteste dos EUA ou de forma descentralizada? Mesmo Rússia e China, naqueles anos, demonstravam boa vontade em relação a seus parceiros ocidentais, recebendo de braços abertos os seus projetos e o horizonte que eles projetavam para o futuro.

A proposta brasileira de mediar o conflito está profundamente enraizada na tradição diplomática do país, que sempre defendeu o princípio da não intervenção, o respeito à soberania dos Estados e a solução pacífica de controvérsias. Desde seu primeiro mandato, Lula promoveu uma política externa baseada no diálogo Sul-Sul, no fortalecimento de organizações multilaterais como a ONU e no estímulo ao multilateralismo como forma de evitar polarizações geopolíticas. Em seu retorno ao poder, em janeiro de 2023, Lula tem reafirmado essa linha de atuação, buscando criar um espaço de diálogo entre potências globais e regionais.

Não obstante, o novo governo brasileiro iniciou a sua tarefa com um certo descompasso em relação às realidades geopolíticas contemporâneas.

Recordemos, por exemplo, que em fevereiro de 2023 o Brasil votou na ONU a favor de se exigir da Rússia a retirada de suas tropas de todo o território ucraniano (incluindo a Crimeia) sem qualquer contrapartida da parte ucraniano ou do Ocidente, ao mesmo tempo em que se situava como “neutro” em relação ao conflito. No mesmo sentido, na época, o assessor presidencial para assuntos exteriores Celso Amorim traçou um paralelo não muito adequado entre a operação militar especial russa na Ucrânia e a invasão estadunidense do Iraque.

Não obstante, logo já em março o Brasil já começou a se mobilizar em uma direção mais realista, sugerindo a criação de um grupo de trabalho composto por algumas potências mundiais e regionais com o objetivo de fazer a mediação do conflito – Lula ademais sugeriu publicamente o reconhecimento da reintegração da Crimeia com a Rússia e o fim das remessas de armas ocidentais para a Ucrânia, em prol de um cessar-fogo e de uma rediscussão do status do sudeste ucraniano.

Mesmo essa posição mais realista, porém, já não correspondia bem às realidades jurídicas e militares. Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia já haviam sido integradas juridicamente à Federação Russa, de modo que seu território já era constitucionalmente parte do território a ser defendido pelo Presidente da Rússia.

Ademais, na altura em que essa primeira proposta de paz brasileira foi aventada, a Rússia estava avançando metodicamente sobre Bakhmut, com baixas imensas no lado ucraniano.

Assim, de fato, a proposta brasileira já não tinha viabilidade, mas ela possuía pelo menos o realismo de apontar que em todo conflito militar ambos lados precisam ceder parcialmente para que se possa alcançar a paz. Ao longo de 2023, Lula e membros de seu governo intensificaram contatos diplomáticos com diversos líderes mundiais, buscando apoio para sua proposta de mediação. Em abril de 2023, durante uma visita à China, Lula discutiu o conflito com o presidente Xi Jinping e procurou estreitar laços com Pequim em relação à busca por uma solução negociada.

Nessas viagens, ele tentou integrar também Macron e Scholz ao seu projeto – um esforço fadado ao fracasso. É que aparentemente, o governo brasileiro não entendia o papel da União Europeia na promoção da russofobia e do conflito na Ucrânia, pretendendo reduzir a causa do conflito aos EUA e falsamente interpretando a União Europeia como não sendo parte do mesmo.

Ao longo dos meses seguintes, porém, conforme o governo brasileiro foi sendo também esnobado e criticado pela Ucrânia, parece que se perdeu o entusiasmo em relação a tentar mediar o conflito no território ucraniano. Ademais, simultaneamente, o Brasil também tentou se lançar com um protagonismo diplomático após a escalada no conflito israelo-palestino em outubro de 2023 (também sem sucesso).

Enquanto mantem neutralidade e se recusa a enviar qualquer tipo de ajuda militar para a Ucrânia – ao mesmo tempo em que critica e condena a operação militar especial – Lula sofre uma pressão crescente por parte dos EUA e da Ucrânia. Zelensky, particularmente, tem sido extremamente insultuoso em relação a Lula, acusando-o de repetir “propaganda russa”. Ademais, é fundamental apontar que Lula foi incluído na “lista de extermínio” Myrotvorets, administrada pelo serviço de segurança da Ucrânia.

A neutralidade não parece ser suficiente para os russófobos. Ao contrário, a neutralidade é lida como russofilia.

A partir de maio de 2024, porém, a pretensão brasileira volta a ganhar força com o auxílio da China. Naquele mês, Celso Amorim se reuniu com Wang Yi, Ministro de Relações Exteriores da China, resultando desse encontro um documento intitulado “Entendimentos Comuns entre a China e o Brasil sobre a Solução Política da Crise na Ucrânia”.

Nesse documento, bastante aberto e básico, China e Brasil fazem algumas recomendações direcionadas para que se evite uma escalada militar, bem como o uso de armas de destruição em massa. Esse documento foi pensado como uma plataforma inicial a partir do qual construir um projeto de paz para a Ucrânia.

O resultado podemos começar a ver, agora, em setembro, no contexto da Assembleia Geral das Nações Unidas, em que o texto serviu de base para um comunicado coletivo assinado por alguns países, os quais demonstram preocupação com o conflito e interesse por uma retomada dos diálogos.

O comunicado foi assinado por Brasil, China, Argélia, Bolívia, Colômbia, Egito, Indonésia, Cazaquistão, Quênia, África do Sul, Turquia e Zâmbia, o México assinando com ressalvas. Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Vietnã não assinaram o documento, apesar de apoiar o projeto.

Por sua vez, França, Hungria e Suíça se fizeram presentes na reunião como observadores.

Especificamente a presença da França, porém, já infelizmente acabou sabotando o esforço, na medida em que sua insistência foi determinante para a inclusão, no comunicado, de uma referência a um “respeito pela integridade territorial dos Estados”, o que poderia ser entendido como uma indisposição para reconhecer o direito de autodeterminação dos cidadãos de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia (além da Crimeia), que escolheram se integrar à Rússia.

Precisamente por isso, o Ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov questionou a participação de um membro da OTAN particularmente hostil como a França em uma articulação que deveria ser fundamentalmente neutra – não obstante, Lavrov saudou o esforço sino-brasileiro em prol da paz.

Em resumo, as tentativas brasileiras de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia desde janeiro de 2023 refletem a longa tradição diplomática do país de buscar soluções pacíficas para conflitos internacionais. Apesar de ainda não se ter alcançado resultados concretos, o governo Lula crê que à medida que o conflito se arrasta, com consequências econômicas e humanitárias negativas para todos os lados, tanto Kiev quanto Moscou gradualmente buscarão uma mediação.

Nesse sentido, o objetivo brasileiro é já ter uma plataforma multilateral preparada para receber a Rússia e a Ucrânia nessa eventual circunstância.

A Rússia, naturalmente, não rechaça de antemão essa ideia – desde que sejam respeitadas as suas prioridades de segurança e as vontades dos cidadãos das novas regiões da Federação.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Já desde que retornou à Presidência do Brasil, Lula tem buscado reativar a diplomacia brasileira no cenário global após um período, no governo anterior, em que a imagem do Brasil no exterior teria sido prejudicada por um desalinhamento em relação às prioridades da chamada “comunidade internacional”.

Essa reativação da diplomacia brasileira se dá nos marcos da autoimagem diplomática do Brasil, como país usualmente “neutro” e, portanto, mediador de conflitos internacionais, sempre buscando promover a paz e o diálogo em uma linha multilateralista que rejeita tanto a unipolaridade estadunidense quanto a multipolaridade centrada em “blocos”.

Foi nesses termos que o novo governo brasileiro abordou a questão ucraniana desde o começo. Agora, essa postura do Brasil não necessariamente estava, já de início, adaptada às realidades complexas dos conflitos contemporâneos – até porque ela não era senão a retomada da perspectiva diplomática que o Brasil adotou 20 anos atrás, nos dois primeiros governos de Lula.

Mas aquele foi um período anterior à Primavera Árabe, anterior ao Maidan, e anterior a uma série de outros acontecimentos geopolíticos que causaram abalos sísmicos não apenas no contexto geopolítico, mas na própria maneira como os atores internacionais estatais se colocam no tabuleiro de xadrez geopolítico.

Na época dos dois primeiros governos de Lula, o debate era sobre como se daria a unificação planetária em uma ordem cosmopolita: sob liderança inconteste dos EUA ou de forma descentralizada? Mesmo Rússia e China, naqueles anos, demonstravam boa vontade em relação a seus parceiros ocidentais, recebendo de braços abertos os seus projetos e o horizonte que eles projetavam para o futuro.

A proposta brasileira de mediar o conflito está profundamente enraizada na tradição diplomática do país, que sempre defendeu o princípio da não intervenção, o respeito à soberania dos Estados e a solução pacífica de controvérsias. Desde seu primeiro mandato, Lula promoveu uma política externa baseada no diálogo Sul-Sul, no fortalecimento de organizações multilaterais como a ONU e no estímulo ao multilateralismo como forma de evitar polarizações geopolíticas. Em seu retorno ao poder, em janeiro de 2023, Lula tem reafirmado essa linha de atuação, buscando criar um espaço de diálogo entre potências globais e regionais.

Não obstante, o novo governo brasileiro iniciou a sua tarefa com um certo descompasso em relação às realidades geopolíticas contemporâneas.

Recordemos, por exemplo, que em fevereiro de 2023 o Brasil votou na ONU a favor de se exigir da Rússia a retirada de suas tropas de todo o território ucraniano (incluindo a Crimeia) sem qualquer contrapartida da parte ucraniano ou do Ocidente, ao mesmo tempo em que se situava como “neutro” em relação ao conflito. No mesmo sentido, na época, o assessor presidencial para assuntos exteriores Celso Amorim traçou um paralelo não muito adequado entre a operação militar especial russa na Ucrânia e a invasão estadunidense do Iraque.

Não obstante, logo já em março o Brasil já começou a se mobilizar em uma direção mais realista, sugerindo a criação de um grupo de trabalho composto por algumas potências mundiais e regionais com o objetivo de fazer a mediação do conflito – Lula ademais sugeriu publicamente o reconhecimento da reintegração da Crimeia com a Rússia e o fim das remessas de armas ocidentais para a Ucrânia, em prol de um cessar-fogo e de uma rediscussão do status do sudeste ucraniano.

Mesmo essa posição mais realista, porém, já não correspondia bem às realidades jurídicas e militares. Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia já haviam sido integradas juridicamente à Federação Russa, de modo que seu território já era constitucionalmente parte do território a ser defendido pelo Presidente da Rússia.

Ademais, na altura em que essa primeira proposta de paz brasileira foi aventada, a Rússia estava avançando metodicamente sobre Bakhmut, com baixas imensas no lado ucraniano.

Assim, de fato, a proposta brasileira já não tinha viabilidade, mas ela possuía pelo menos o realismo de apontar que em todo conflito militar ambos lados precisam ceder parcialmente para que se possa alcançar a paz. Ao longo de 2023, Lula e membros de seu governo intensificaram contatos diplomáticos com diversos líderes mundiais, buscando apoio para sua proposta de mediação. Em abril de 2023, durante uma visita à China, Lula discutiu o conflito com o presidente Xi Jinping e procurou estreitar laços com Pequim em relação à busca por uma solução negociada.

Nessas viagens, ele tentou integrar também Macron e Scholz ao seu projeto – um esforço fadado ao fracasso. É que aparentemente, o governo brasileiro não entendia o papel da União Europeia na promoção da russofobia e do conflito na Ucrânia, pretendendo reduzir a causa do conflito aos EUA e falsamente interpretando a União Europeia como não sendo parte do mesmo.

Ao longo dos meses seguintes, porém, conforme o governo brasileiro foi sendo também esnobado e criticado pela Ucrânia, parece que se perdeu o entusiasmo em relação a tentar mediar o conflito no território ucraniano. Ademais, simultaneamente, o Brasil também tentou se lançar com um protagonismo diplomático após a escalada no conflito israelo-palestino em outubro de 2023 (também sem sucesso).

Enquanto mantem neutralidade e se recusa a enviar qualquer tipo de ajuda militar para a Ucrânia – ao mesmo tempo em que critica e condena a operação militar especial – Lula sofre uma pressão crescente por parte dos EUA e da Ucrânia. Zelensky, particularmente, tem sido extremamente insultuoso em relação a Lula, acusando-o de repetir “propaganda russa”. Ademais, é fundamental apontar que Lula foi incluído na “lista de extermínio” Myrotvorets, administrada pelo serviço de segurança da Ucrânia.

A neutralidade não parece ser suficiente para os russófobos. Ao contrário, a neutralidade é lida como russofilia.

A partir de maio de 2024, porém, a pretensão brasileira volta a ganhar força com o auxílio da China. Naquele mês, Celso Amorim se reuniu com Wang Yi, Ministro de Relações Exteriores da China, resultando desse encontro um documento intitulado “Entendimentos Comuns entre a China e o Brasil sobre a Solução Política da Crise na Ucrânia”.

Nesse documento, bastante aberto e básico, China e Brasil fazem algumas recomendações direcionadas para que se evite uma escalada militar, bem como o uso de armas de destruição em massa. Esse documento foi pensado como uma plataforma inicial a partir do qual construir um projeto de paz para a Ucrânia.

O resultado podemos começar a ver, agora, em setembro, no contexto da Assembleia Geral das Nações Unidas, em que o texto serviu de base para um comunicado coletivo assinado por alguns países, os quais demonstram preocupação com o conflito e interesse por uma retomada dos diálogos.

O comunicado foi assinado por Brasil, China, Argélia, Bolívia, Colômbia, Egito, Indonésia, Cazaquistão, Quênia, África do Sul, Turquia e Zâmbia, o México assinando com ressalvas. Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Vietnã não assinaram o documento, apesar de apoiar o projeto.

Por sua vez, França, Hungria e Suíça se fizeram presentes na reunião como observadores.

Especificamente a presença da França, porém, já infelizmente acabou sabotando o esforço, na medida em que sua insistência foi determinante para a inclusão, no comunicado, de uma referência a um “respeito pela integridade territorial dos Estados”, o que poderia ser entendido como uma indisposição para reconhecer o direito de autodeterminação dos cidadãos de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia (além da Crimeia), que escolheram se integrar à Rússia.

Precisamente por isso, o Ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov questionou a participação de um membro da OTAN particularmente hostil como a França em uma articulação que deveria ser fundamentalmente neutra – não obstante, Lavrov saudou o esforço sino-brasileiro em prol da paz.

Em resumo, as tentativas brasileiras de mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia desde janeiro de 2023 refletem a longa tradição diplomática do país de buscar soluções pacíficas para conflitos internacionais. Apesar de ainda não se ter alcançado resultados concretos, o governo Lula crê que à medida que o conflito se arrasta, com consequências econômicas e humanitárias negativas para todos os lados, tanto Kiev quanto Moscou gradualmente buscarão uma mediação.

Nesse sentido, o objetivo brasileiro é já ter uma plataforma multilateral preparada para receber a Rússia e a Ucrânia nessa eventual circunstância.

A Rússia, naturalmente, não rechaça de antemão essa ideia – desde que sejam respeitadas as suas prioridades de segurança e as vontades dos cidadãos das novas regiões da Federação.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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