Português
Raphael Machado
August 18, 2024
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

De modo geral, quando os russos pensam politicamente no continente ibero-americano logo vêm à mente as boas relações que a URSS teve com alguns governos e partidos locais, bem como o reaquecimento das relações entre essas partes no início do novo milênio, quando uma certa “onda” passou por boa parte dos países da região.

A memória em relação a esse período é de que, na América Ibérica, a esquerda era soberanista, anti-imperialista e não-alinhada, de um modo que já havia sido esquecido na Europa desde pelo menos o maio de 1968 e suas consequências (a “superação” do comunismo por uma social-democracia progressista), e que esses seriam bons parceiros internacionais.

Era a era de Chávez, Lula, Kirchner, Morales, Correa, Mujica, em que vivia ainda Castro, e falava-se em “Pátria Grande”, e parecia que, no continente ibero-americano, apresentava-se uma nova fórmula política simultaneamente popular e patriótica. Ou pelo menos essa era a perspectiva que os anti-imperialistas de outras partes do mundo tinham em relação a essa parte das Américas.

Apesar de muita gente achar que nada mudou apesar da passagem do tempo, talvez hoje já esteja mais claro para muitos que os fenômenos que submeteram as esquerdas europeias ao liberalismo e ao atlantismo apenas tardaram, mas também chegaram no mundo ibero-americano.

Naturalmente, não muito em países como Venezuela e Bolívia, por exemplo, mas muito claramente em quase todo o resto do continente. O eixo central não é mais qualquer concepção de luta de classes contra a burguesia ou luta nacional-popular contra elites apátridas ligadas ao imperialismo. No lugar desses temas, assumem centralidade as lutas políticas societárias e identitárias (no sentido pós-moderno). O foco é no indivíduo e na libertação do indivíduo em relação a tudo que limita a sua “liberdade” – uma liberdade pensada basicamente como (potencial) satisfação do desejo.

Se na Europa a perda do eixo classista-popular levou à substituição do mito da “classe operária” pela multiplicidade de “grupos oprimidos”, todos os quais deveriam ser defendidos “interseccionalmente”, na América Ibérica não foi muito diferente.

Mas aqui, particularmente, parece ter se tornado bandeira da esquerda a leitura vitimista e romantizada da figura do “criminoso”. Não mais o “lumpemproletário” da perspectiva marxiana, para a qual os elementos criminosos e marginais da sociedade não passavam de parasitas da classe trabalhadora, o “criminoso” virou, simultaneamente, uma “vítima de um sistema opressivo” e um “rebelde corajoso”, que através do crime lutava contra a tranquilidade da exploração burguesa.

Não é casual que alguns dos principais defensores teóricos do chamado “abolicionismo penal” (a noção delirante de que o Estado não deveria punir condutas criminosas, e que se deveria até mesmo buscar a extinção do “direito penal” enquanto tal) são precisamente juristas ibero-americanos, como o argentino Eugenio Raúl Zaffaroni ou o brasileiro Nilo Batista.

O fundamento filosófico dessa perspectiva está na crítica frankfurtiana ao “poder” em si como forma de tirania e de repressão sobre os “desejos”, bem como no pós-estruturalismo foucaultiano que, expandindo a partir dessa postura “libertária” reinterpreta todas as instituições, começando pelos presídios, como expressões de uma vontade de poder tirânica que atua sobre a arregimentação dos “corpos”.

Enquanto as “garantias” jurídico-penais se acumulam e a leniência em relação à criminalidade se torna a norma, a sensação de insegurança aumenta. No Brasil, por exemplo, contra a vontade da maioria e sem consultar o Legislativo, o Judiciário legalizou a maconha. O mesmo Judiciário proibiu a realização de operações policiais de combate ao narcotráfico em favelas, o que, na prática, tem permitido às organizações criminosas se entrincheirarem e expandirem seus territórios.

Declarações infelizes, vindas de políticos de esquerda, as quais colocam o criminoso como um “oprimido” que “rouba para comer”, repetindo uma romantização do lumpemproletariado, criam a forte impressão de que há vínculos essenciais entre os partidos de esquerda e a criminalidade urbana. Esses baluartes da esquerda liberal ocidentalizada não percebem que, com esses comentários que associam “pobreza” e “criminalidade”, estão ofendendo às classes trabalhadores, as quais são em sua maioria paupérrimas e, simultaneamente, respeitadoras da lei.

No Brasil, uma pesquisa de dezembro de 2023 da agência Datafolha indica que a 2ª maior preocupação do povo brasileiro é a segurança pública, perdendo apenas para a saúde. Na Argentina, uma pesquisa da Universidade San Andrés, de abril de 2023, coloca também a questão da criminalidade como a 2ª maior preocupação do povo argentino, depois da inflação. Uma outra pesquisa, de junho de 2024, pela Universidade de Buenos Aires e pelo Observatório de Psicologia Social Aplicada, aponta que 43% dos argentinos estão preocupados com a criminalidade e a insegurança, 32% estando especificamente preocupados com o avanço do narcotráfico no país. Enquanto isso, na Colômbia, uma pesquisa do Centro Nacional de Consultoria, de setembro de 2023, aponta que a principal preocupação do cidadão envolve temas de ordem e segurança pública. O mesmo vale para o povo chileno, segundo pesquisa de julho de 2023 da Universidade Adolfo Ibañez.

Resultados semelhantes podem ser encontrados em pesquisas de grande parte dos outros países do continente, apontando para um padrão de dificuldades de lidar com a segurança pública, bem como para um padrão geral de uma sensação de insegurança que abarca vários povos do continente.

Um dos resultados tem sido uma dificuldade de alcançar níveis suficientes de popularidade entre as massas, incapacidade de se reeleger ou a conquista de margens extremamente exíguas no caso de vitórias eleitorais.

Uma exceção óbvia, porém, é El Salvador, governado hoje por Nayib Bukele.

Bukele, que governa El Salvador desde 2019, foi reeleito em fevereiro de 2024 com quase 85% dos votos, em eleições cuja legitimidade não foi questionada por nenhuma instituição internacional.

Independentemente do que se possa pensar ideologicamente de Bukele e do contexto político de El Salvador, uma coisa é inegável: tamanha unanimidade, incomum na política contemporânea, é demonstração cabal de que pelo menos algum grande acerto Bukele tem.

Se o bom uso de redes sociais e o apelo a um discurso de “inovação” diante de um cenário político estagnado na rivalidade entre dois partidos tradicionais há 30 anos, claramente contribuem para garantir uma certa popularidade, isso ainda é muito pouco para explicar uma quase unanimidade entre as massas populares salvadorenhas.

As tendências indicadas acima, apontando para as preocupações dos povos ibero-americanos com o problema da criminalidade e a questão da segurança pública, também se aplicavam a El Salvador.

Quando Bukele assumiu o poder em 2019, o país era considerado o mais violento do mundo, tendo uma taxa de homicídios de mais de 50 por 100 mil habitantes, quando a média mundial é de 5. Ao fim de 2023, a taxa de homicídios havia caído para 2.4, aproximadamente a média europeia. Em números absolutos, se em 2018 houve 3.346 homicídios em El Salvador, em 2023 houve apenas 154. A queda é brusca.

Os homicídios, bem como o narcotráfico e o tráfico de pessoas, estavam associados a gangues armadas que dominavam as ruas do país, até Bukele implementar uma política de combate à criminalidade urbana apoiada sobre um estado de exceção constitucional. Considerando que o país estava em uma emergência de segurança, Bukele, com apoio do Legislativo e da população, impôs uma série de limites às liberdades dos criminosos.

Essas limitações culminaram em uma verdadeira guerra às gangues, com a prisão de mais de 70 mil membros de gangues, os quais foram misturados independentemente do pertencimento a facções em prisões de segurança máxima, de cujas celas só podiam sair 1 hora por dia e cujos sinais de wifi foram bloqueados.

Além disso, especialmente a partir de 2022, uma série de outras medidas foram aprovadas, como a possibilidade de monitoramento de comunicações sem mandado, a limitação dos poderes dos juízes de oferecer aos condenados penas alternativas à prisão. Enquanto isso, o Legislativo aumentou as penas de vários crimes e reduziu a maioridade penal de 16 para 12 anos de idade.

Bukele também implementou uma “guerra cultural” contra as gangues, banindo qualquer representação positiva das gangues e seus símbolos nas mídias, bem como destruindo as lápides de quaisquer criminosos que contivessem símbolos ou slogans de gangues.

Apesar dos lamentos de ONGs, dos EUA e de organizações ligadas à ONU, sobre a “violação de direitos humanos”, os resultados são visíveis. As famílias salvadorenhas voltaram às praças, aos parques e às ruas, e todo trabalhador pode andar de noite sem temer ser vítima de um roubo ou crime.

Algo que foge à compreensão da esquerda ibero-americana do século XXI, é que o criminoso urbano não é nenhum “Robin Hood” – ele não é nenhum “injustiçado” se “vingando” de uma “sociedade desigual” por meio de uma “expropriação dos ricos”. Em países como Brasil, Argentina e Colômbia, as principais vítimas da criminalidade urbana não são as elites, mas as camadas mais pobres da sociedade, as quais não dispõem nem de segurança privada, nem de suficiente segurança pública.

Com os Estados tendo as suas mãos amarradas por Judiciários e ongueiros ébrios com excessiva “teoria crítica”, as ruas deixam de pertencer ao povo e passam a pertencer a gangues armadas que levam terror aos trabalhadores – enquanto os ricos e a classe média alta, incluindo juízes, professores universitários e “ativistas de direitos humanos”, vivem em seus condomínios de muros altos, de onde pregam o perdão e a tolerância com os criminosos estando imunes a suas depredações.

Governos que dizem priorizar a justiça social parecem não entender que o anseio por punição não vem de qualquer imaginária “burguesia”, mas precisamente daquela camada da sociedade para a qual um mísero telefone foi, às vezes, adquirido com o salário de todo um ano de trabalho em uma fábrica.

É nesse sentido que o principal “calcanhar de Aquiles” da esquerda ibero-americana até hoje – a segurança pública – poderia se tornar o seu trunfo, caso ela aprenda as lições necessárias com o modelo de Bukele.

O que a esquerda ibero-americana poderia aprender com Nayib Bukele?

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De modo geral, quando os russos pensam politicamente no continente ibero-americano logo vêm à mente as boas relações que a URSS teve com alguns governos e partidos locais, bem como o reaquecimento das relações entre essas partes no início do novo milênio, quando uma certa “onda” passou por boa parte dos países da região.

A memória em relação a esse período é de que, na América Ibérica, a esquerda era soberanista, anti-imperialista e não-alinhada, de um modo que já havia sido esquecido na Europa desde pelo menos o maio de 1968 e suas consequências (a “superação” do comunismo por uma social-democracia progressista), e que esses seriam bons parceiros internacionais.

Era a era de Chávez, Lula, Kirchner, Morales, Correa, Mujica, em que vivia ainda Castro, e falava-se em “Pátria Grande”, e parecia que, no continente ibero-americano, apresentava-se uma nova fórmula política simultaneamente popular e patriótica. Ou pelo menos essa era a perspectiva que os anti-imperialistas de outras partes do mundo tinham em relação a essa parte das Américas.

Apesar de muita gente achar que nada mudou apesar da passagem do tempo, talvez hoje já esteja mais claro para muitos que os fenômenos que submeteram as esquerdas europeias ao liberalismo e ao atlantismo apenas tardaram, mas também chegaram no mundo ibero-americano.

Naturalmente, não muito em países como Venezuela e Bolívia, por exemplo, mas muito claramente em quase todo o resto do continente. O eixo central não é mais qualquer concepção de luta de classes contra a burguesia ou luta nacional-popular contra elites apátridas ligadas ao imperialismo. No lugar desses temas, assumem centralidade as lutas políticas societárias e identitárias (no sentido pós-moderno). O foco é no indivíduo e na libertação do indivíduo em relação a tudo que limita a sua “liberdade” – uma liberdade pensada basicamente como (potencial) satisfação do desejo.

Se na Europa a perda do eixo classista-popular levou à substituição do mito da “classe operária” pela multiplicidade de “grupos oprimidos”, todos os quais deveriam ser defendidos “interseccionalmente”, na América Ibérica não foi muito diferente.

Mas aqui, particularmente, parece ter se tornado bandeira da esquerda a leitura vitimista e romantizada da figura do “criminoso”. Não mais o “lumpemproletário” da perspectiva marxiana, para a qual os elementos criminosos e marginais da sociedade não passavam de parasitas da classe trabalhadora, o “criminoso” virou, simultaneamente, uma “vítima de um sistema opressivo” e um “rebelde corajoso”, que através do crime lutava contra a tranquilidade da exploração burguesa.

Não é casual que alguns dos principais defensores teóricos do chamado “abolicionismo penal” (a noção delirante de que o Estado não deveria punir condutas criminosas, e que se deveria até mesmo buscar a extinção do “direito penal” enquanto tal) são precisamente juristas ibero-americanos, como o argentino Eugenio Raúl Zaffaroni ou o brasileiro Nilo Batista.

O fundamento filosófico dessa perspectiva está na crítica frankfurtiana ao “poder” em si como forma de tirania e de repressão sobre os “desejos”, bem como no pós-estruturalismo foucaultiano que, expandindo a partir dessa postura “libertária” reinterpreta todas as instituições, começando pelos presídios, como expressões de uma vontade de poder tirânica que atua sobre a arregimentação dos “corpos”.

Enquanto as “garantias” jurídico-penais se acumulam e a leniência em relação à criminalidade se torna a norma, a sensação de insegurança aumenta. No Brasil, por exemplo, contra a vontade da maioria e sem consultar o Legislativo, o Judiciário legalizou a maconha. O mesmo Judiciário proibiu a realização de operações policiais de combate ao narcotráfico em favelas, o que, na prática, tem permitido às organizações criminosas se entrincheirarem e expandirem seus territórios.

Declarações infelizes, vindas de políticos de esquerda, as quais colocam o criminoso como um “oprimido” que “rouba para comer”, repetindo uma romantização do lumpemproletariado, criam a forte impressão de que há vínculos essenciais entre os partidos de esquerda e a criminalidade urbana. Esses baluartes da esquerda liberal ocidentalizada não percebem que, com esses comentários que associam “pobreza” e “criminalidade”, estão ofendendo às classes trabalhadores, as quais são em sua maioria paupérrimas e, simultaneamente, respeitadoras da lei.

No Brasil, uma pesquisa de dezembro de 2023 da agência Datafolha indica que a 2ª maior preocupação do povo brasileiro é a segurança pública, perdendo apenas para a saúde. Na Argentina, uma pesquisa da Universidade San Andrés, de abril de 2023, coloca também a questão da criminalidade como a 2ª maior preocupação do povo argentino, depois da inflação. Uma outra pesquisa, de junho de 2024, pela Universidade de Buenos Aires e pelo Observatório de Psicologia Social Aplicada, aponta que 43% dos argentinos estão preocupados com a criminalidade e a insegurança, 32% estando especificamente preocupados com o avanço do narcotráfico no país. Enquanto isso, na Colômbia, uma pesquisa do Centro Nacional de Consultoria, de setembro de 2023, aponta que a principal preocupação do cidadão envolve temas de ordem e segurança pública. O mesmo vale para o povo chileno, segundo pesquisa de julho de 2023 da Universidade Adolfo Ibañez.

Resultados semelhantes podem ser encontrados em pesquisas de grande parte dos outros países do continente, apontando para um padrão de dificuldades de lidar com a segurança pública, bem como para um padrão geral de uma sensação de insegurança que abarca vários povos do continente.

Um dos resultados tem sido uma dificuldade de alcançar níveis suficientes de popularidade entre as massas, incapacidade de se reeleger ou a conquista de margens extremamente exíguas no caso de vitórias eleitorais.

Uma exceção óbvia, porém, é El Salvador, governado hoje por Nayib Bukele.

Bukele, que governa El Salvador desde 2019, foi reeleito em fevereiro de 2024 com quase 85% dos votos, em eleições cuja legitimidade não foi questionada por nenhuma instituição internacional.

Independentemente do que se possa pensar ideologicamente de Bukele e do contexto político de El Salvador, uma coisa é inegável: tamanha unanimidade, incomum na política contemporânea, é demonstração cabal de que pelo menos algum grande acerto Bukele tem.

Se o bom uso de redes sociais e o apelo a um discurso de “inovação” diante de um cenário político estagnado na rivalidade entre dois partidos tradicionais há 30 anos, claramente contribuem para garantir uma certa popularidade, isso ainda é muito pouco para explicar uma quase unanimidade entre as massas populares salvadorenhas.

As tendências indicadas acima, apontando para as preocupações dos povos ibero-americanos com o problema da criminalidade e a questão da segurança pública, também se aplicavam a El Salvador.

Quando Bukele assumiu o poder em 2019, o país era considerado o mais violento do mundo, tendo uma taxa de homicídios de mais de 50 por 100 mil habitantes, quando a média mundial é de 5. Ao fim de 2023, a taxa de homicídios havia caído para 2.4, aproximadamente a média europeia. Em números absolutos, se em 2018 houve 3.346 homicídios em El Salvador, em 2023 houve apenas 154. A queda é brusca.

Os homicídios, bem como o narcotráfico e o tráfico de pessoas, estavam associados a gangues armadas que dominavam as ruas do país, até Bukele implementar uma política de combate à criminalidade urbana apoiada sobre um estado de exceção constitucional. Considerando que o país estava em uma emergência de segurança, Bukele, com apoio do Legislativo e da população, impôs uma série de limites às liberdades dos criminosos.

Essas limitações culminaram em uma verdadeira guerra às gangues, com a prisão de mais de 70 mil membros de gangues, os quais foram misturados independentemente do pertencimento a facções em prisões de segurança máxima, de cujas celas só podiam sair 1 hora por dia e cujos sinais de wifi foram bloqueados.

Além disso, especialmente a partir de 2022, uma série de outras medidas foram aprovadas, como a possibilidade de monitoramento de comunicações sem mandado, a limitação dos poderes dos juízes de oferecer aos condenados penas alternativas à prisão. Enquanto isso, o Legislativo aumentou as penas de vários crimes e reduziu a maioridade penal de 16 para 12 anos de idade.

Bukele também implementou uma “guerra cultural” contra as gangues, banindo qualquer representação positiva das gangues e seus símbolos nas mídias, bem como destruindo as lápides de quaisquer criminosos que contivessem símbolos ou slogans de gangues.

Apesar dos lamentos de ONGs, dos EUA e de organizações ligadas à ONU, sobre a “violação de direitos humanos”, os resultados são visíveis. As famílias salvadorenhas voltaram às praças, aos parques e às ruas, e todo trabalhador pode andar de noite sem temer ser vítima de um roubo ou crime.

Algo que foge à compreensão da esquerda ibero-americana do século XXI, é que o criminoso urbano não é nenhum “Robin Hood” – ele não é nenhum “injustiçado” se “vingando” de uma “sociedade desigual” por meio de uma “expropriação dos ricos”. Em países como Brasil, Argentina e Colômbia, as principais vítimas da criminalidade urbana não são as elites, mas as camadas mais pobres da sociedade, as quais não dispõem nem de segurança privada, nem de suficiente segurança pública.

Com os Estados tendo as suas mãos amarradas por Judiciários e ongueiros ébrios com excessiva “teoria crítica”, as ruas deixam de pertencer ao povo e passam a pertencer a gangues armadas que levam terror aos trabalhadores – enquanto os ricos e a classe média alta, incluindo juízes, professores universitários e “ativistas de direitos humanos”, vivem em seus condomínios de muros altos, de onde pregam o perdão e a tolerância com os criminosos estando imunes a suas depredações.

Governos que dizem priorizar a justiça social parecem não entender que o anseio por punição não vem de qualquer imaginária “burguesia”, mas precisamente daquela camada da sociedade para a qual um mísero telefone foi, às vezes, adquirido com o salário de todo um ano de trabalho em uma fábrica.

É nesse sentido que o principal “calcanhar de Aquiles” da esquerda ibero-americana até hoje – a segurança pública – poderia se tornar o seu trunfo, caso ela aprenda as lições necessárias com o modelo de Bukele.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

De modo geral, quando os russos pensam politicamente no continente ibero-americano logo vêm à mente as boas relações que a URSS teve com alguns governos e partidos locais, bem como o reaquecimento das relações entre essas partes no início do novo milênio, quando uma certa “onda” passou por boa parte dos países da região.

A memória em relação a esse período é de que, na América Ibérica, a esquerda era soberanista, anti-imperialista e não-alinhada, de um modo que já havia sido esquecido na Europa desde pelo menos o maio de 1968 e suas consequências (a “superação” do comunismo por uma social-democracia progressista), e que esses seriam bons parceiros internacionais.

Era a era de Chávez, Lula, Kirchner, Morales, Correa, Mujica, em que vivia ainda Castro, e falava-se em “Pátria Grande”, e parecia que, no continente ibero-americano, apresentava-se uma nova fórmula política simultaneamente popular e patriótica. Ou pelo menos essa era a perspectiva que os anti-imperialistas de outras partes do mundo tinham em relação a essa parte das Américas.

Apesar de muita gente achar que nada mudou apesar da passagem do tempo, talvez hoje já esteja mais claro para muitos que os fenômenos que submeteram as esquerdas europeias ao liberalismo e ao atlantismo apenas tardaram, mas também chegaram no mundo ibero-americano.

Naturalmente, não muito em países como Venezuela e Bolívia, por exemplo, mas muito claramente em quase todo o resto do continente. O eixo central não é mais qualquer concepção de luta de classes contra a burguesia ou luta nacional-popular contra elites apátridas ligadas ao imperialismo. No lugar desses temas, assumem centralidade as lutas políticas societárias e identitárias (no sentido pós-moderno). O foco é no indivíduo e na libertação do indivíduo em relação a tudo que limita a sua “liberdade” – uma liberdade pensada basicamente como (potencial) satisfação do desejo.

Se na Europa a perda do eixo classista-popular levou à substituição do mito da “classe operária” pela multiplicidade de “grupos oprimidos”, todos os quais deveriam ser defendidos “interseccionalmente”, na América Ibérica não foi muito diferente.

Mas aqui, particularmente, parece ter se tornado bandeira da esquerda a leitura vitimista e romantizada da figura do “criminoso”. Não mais o “lumpemproletário” da perspectiva marxiana, para a qual os elementos criminosos e marginais da sociedade não passavam de parasitas da classe trabalhadora, o “criminoso” virou, simultaneamente, uma “vítima de um sistema opressivo” e um “rebelde corajoso”, que através do crime lutava contra a tranquilidade da exploração burguesa.

Não é casual que alguns dos principais defensores teóricos do chamado “abolicionismo penal” (a noção delirante de que o Estado não deveria punir condutas criminosas, e que se deveria até mesmo buscar a extinção do “direito penal” enquanto tal) são precisamente juristas ibero-americanos, como o argentino Eugenio Raúl Zaffaroni ou o brasileiro Nilo Batista.

O fundamento filosófico dessa perspectiva está na crítica frankfurtiana ao “poder” em si como forma de tirania e de repressão sobre os “desejos”, bem como no pós-estruturalismo foucaultiano que, expandindo a partir dessa postura “libertária” reinterpreta todas as instituições, começando pelos presídios, como expressões de uma vontade de poder tirânica que atua sobre a arregimentação dos “corpos”.

Enquanto as “garantias” jurídico-penais se acumulam e a leniência em relação à criminalidade se torna a norma, a sensação de insegurança aumenta. No Brasil, por exemplo, contra a vontade da maioria e sem consultar o Legislativo, o Judiciário legalizou a maconha. O mesmo Judiciário proibiu a realização de operações policiais de combate ao narcotráfico em favelas, o que, na prática, tem permitido às organizações criminosas se entrincheirarem e expandirem seus territórios.

Declarações infelizes, vindas de políticos de esquerda, as quais colocam o criminoso como um “oprimido” que “rouba para comer”, repetindo uma romantização do lumpemproletariado, criam a forte impressão de que há vínculos essenciais entre os partidos de esquerda e a criminalidade urbana. Esses baluartes da esquerda liberal ocidentalizada não percebem que, com esses comentários que associam “pobreza” e “criminalidade”, estão ofendendo às classes trabalhadores, as quais são em sua maioria paupérrimas e, simultaneamente, respeitadoras da lei.

No Brasil, uma pesquisa de dezembro de 2023 da agência Datafolha indica que a 2ª maior preocupação do povo brasileiro é a segurança pública, perdendo apenas para a saúde. Na Argentina, uma pesquisa da Universidade San Andrés, de abril de 2023, coloca também a questão da criminalidade como a 2ª maior preocupação do povo argentino, depois da inflação. Uma outra pesquisa, de junho de 2024, pela Universidade de Buenos Aires e pelo Observatório de Psicologia Social Aplicada, aponta que 43% dos argentinos estão preocupados com a criminalidade e a insegurança, 32% estando especificamente preocupados com o avanço do narcotráfico no país. Enquanto isso, na Colômbia, uma pesquisa do Centro Nacional de Consultoria, de setembro de 2023, aponta que a principal preocupação do cidadão envolve temas de ordem e segurança pública. O mesmo vale para o povo chileno, segundo pesquisa de julho de 2023 da Universidade Adolfo Ibañez.

Resultados semelhantes podem ser encontrados em pesquisas de grande parte dos outros países do continente, apontando para um padrão de dificuldades de lidar com a segurança pública, bem como para um padrão geral de uma sensação de insegurança que abarca vários povos do continente.

Um dos resultados tem sido uma dificuldade de alcançar níveis suficientes de popularidade entre as massas, incapacidade de se reeleger ou a conquista de margens extremamente exíguas no caso de vitórias eleitorais.

Uma exceção óbvia, porém, é El Salvador, governado hoje por Nayib Bukele.

Bukele, que governa El Salvador desde 2019, foi reeleito em fevereiro de 2024 com quase 85% dos votos, em eleições cuja legitimidade não foi questionada por nenhuma instituição internacional.

Independentemente do que se possa pensar ideologicamente de Bukele e do contexto político de El Salvador, uma coisa é inegável: tamanha unanimidade, incomum na política contemporânea, é demonstração cabal de que pelo menos algum grande acerto Bukele tem.

Se o bom uso de redes sociais e o apelo a um discurso de “inovação” diante de um cenário político estagnado na rivalidade entre dois partidos tradicionais há 30 anos, claramente contribuem para garantir uma certa popularidade, isso ainda é muito pouco para explicar uma quase unanimidade entre as massas populares salvadorenhas.

As tendências indicadas acima, apontando para as preocupações dos povos ibero-americanos com o problema da criminalidade e a questão da segurança pública, também se aplicavam a El Salvador.

Quando Bukele assumiu o poder em 2019, o país era considerado o mais violento do mundo, tendo uma taxa de homicídios de mais de 50 por 100 mil habitantes, quando a média mundial é de 5. Ao fim de 2023, a taxa de homicídios havia caído para 2.4, aproximadamente a média europeia. Em números absolutos, se em 2018 houve 3.346 homicídios em El Salvador, em 2023 houve apenas 154. A queda é brusca.

Os homicídios, bem como o narcotráfico e o tráfico de pessoas, estavam associados a gangues armadas que dominavam as ruas do país, até Bukele implementar uma política de combate à criminalidade urbana apoiada sobre um estado de exceção constitucional. Considerando que o país estava em uma emergência de segurança, Bukele, com apoio do Legislativo e da população, impôs uma série de limites às liberdades dos criminosos.

Essas limitações culminaram em uma verdadeira guerra às gangues, com a prisão de mais de 70 mil membros de gangues, os quais foram misturados independentemente do pertencimento a facções em prisões de segurança máxima, de cujas celas só podiam sair 1 hora por dia e cujos sinais de wifi foram bloqueados.

Além disso, especialmente a partir de 2022, uma série de outras medidas foram aprovadas, como a possibilidade de monitoramento de comunicações sem mandado, a limitação dos poderes dos juízes de oferecer aos condenados penas alternativas à prisão. Enquanto isso, o Legislativo aumentou as penas de vários crimes e reduziu a maioridade penal de 16 para 12 anos de idade.

Bukele também implementou uma “guerra cultural” contra as gangues, banindo qualquer representação positiva das gangues e seus símbolos nas mídias, bem como destruindo as lápides de quaisquer criminosos que contivessem símbolos ou slogans de gangues.

Apesar dos lamentos de ONGs, dos EUA e de organizações ligadas à ONU, sobre a “violação de direitos humanos”, os resultados são visíveis. As famílias salvadorenhas voltaram às praças, aos parques e às ruas, e todo trabalhador pode andar de noite sem temer ser vítima de um roubo ou crime.

Algo que foge à compreensão da esquerda ibero-americana do século XXI, é que o criminoso urbano não é nenhum “Robin Hood” – ele não é nenhum “injustiçado” se “vingando” de uma “sociedade desigual” por meio de uma “expropriação dos ricos”. Em países como Brasil, Argentina e Colômbia, as principais vítimas da criminalidade urbana não são as elites, mas as camadas mais pobres da sociedade, as quais não dispõem nem de segurança privada, nem de suficiente segurança pública.

Com os Estados tendo as suas mãos amarradas por Judiciários e ongueiros ébrios com excessiva “teoria crítica”, as ruas deixam de pertencer ao povo e passam a pertencer a gangues armadas que levam terror aos trabalhadores – enquanto os ricos e a classe média alta, incluindo juízes, professores universitários e “ativistas de direitos humanos”, vivem em seus condomínios de muros altos, de onde pregam o perdão e a tolerância com os criminosos estando imunes a suas depredações.

Governos que dizem priorizar a justiça social parecem não entender que o anseio por punição não vem de qualquer imaginária “burguesia”, mas precisamente daquela camada da sociedade para a qual um mísero telefone foi, às vezes, adquirido com o salário de todo um ano de trabalho em uma fábrica.

É nesse sentido que o principal “calcanhar de Aquiles” da esquerda ibero-americana até hoje – a segurança pública – poderia se tornar o seu trunfo, caso ela aprenda as lições necessárias com o modelo de Bukele.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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