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Há alguns dias esteve no Brasil, uma vez mais, a General Laura Richardson do SOUTHCOM, o “comando militar” dos EUA responsável pelas ações militares estadunidenses na zona do Atlântico Sul.
Gera um certo espanto imediato o fato de que enquanto, por exemplo, as forças militares brasileiras estão fundamentalmente categorizadas conforme as zonas de defesa interna do país (Amazônia, Leste, Nordeste, Norte, Oeste, Planalto, Sudeste e Sul), as forças armadas estadunidenses estão dispostas primariamente não para proteger o próprio território, mas projetadas no exterior para o controle marítimo do planeta, a partir do controle de bases e pontos de estrangulamento — em obediência ortodoxa à doutrina geopolítica do Almirante Alfred Mahan.
A general, que da perspectiva latino-americana é a própria imagem da unipolaridade ocidental, esteve no Brasil para, além de receber os “beija-mãos” de costume de burocratas militares que nunca se cansam de mostrar o seu servilismo aos EUA, “comemorar” os 200 anos de relações diplomáticas entre Brasil e EUA.
Em primeiro lugar, penso não ter sido o único a perceber que as relações entre ambos países, Brasil e EUA, estão cada vez mais “militarizadas”. A General Laura Richardson é o burocrata estadunidense que mais temos visto e ouvido por essas partes. Um mês após ocupar o seu cargo, em 2021, ela já estava visitando Brasília, em novembro. Ela visitou o Brasil, de novo, em julho e setembro de 2022, então em maio de 2023 e de novo em maio de 2024. Se compararmos com as duas visitas do Almirante Craig Faller e a única visita do Almirante Kurt Tidd temos uma evidência empírica de um interesse crescente dos EUA pelo Brasil.
Essas visitas, de modo geral, foram palco de declarações diversas, mas todas circundando uma miríade de temas repetitivos: a “ameaça russa” e a “ameaça chinesa”, a necessidade de “combater a desinformação”, a “integração de armas entre EUA e Brasil”, a defesa das “democracias liberais” contra as “ditaduras”, o caráter “internacional” da Amazônia, etc. É famosa, no Brasil, uma declaração de Laura Richardson, em um evento realizado nos EUA há alguns anos, em que ela comenta sobre o caráter estratégico para os EUA (!) dos recursos naturais da América do Sul.
Agora, essa militarização das nossas relações se expressa também na avalanche de hardware militar dos EUA que as Forças Armadas brasileiras estão sendo pressionadas a aceitar. Usamos aqui a palavra “pressionadas” com certa liberdade, porque uma parte da burocracia militar brasileira, educada nos EUA, parece ávida por aceitar os equipamentos estadunidenses, mesmo quando há alternativas superiores em outros países (e quando a melhor opção seria buscar a autossuficiência militar por meio da reindustrialização com enfoque bélico). O caso mais recente é o da possível aquisição de helicópteros Blackhawk, mas nos últimos anos também já se discutiu uma série de outras aquisições militares de material dos EUA (e também Israel), de Javelins a Merkavas.
Dever-se-ia acrescentar aí os exercícios militares conjuntos, os quais tem sido frequentes desde a promulgação de um acordo de cooperação militar Brasil-EUA em 2015, durante o governo de Dilma Rousseff, o qual tornou a presença militar estadunidense no Brasil uma constante.
Todas essas visitas e insinuações, dotadas de contornos militares, apontam para quais são as intenções dos EUA em relação à América do Sul: subverter, pressionar e intimidar tudo e todos para excluir China e Rússia da região, travar qualquer projeto soberanista e garantir o espaço continental para si. Mesmo que precise recorrer a meios militares (diretos ou indiretos) para isso.
E, de fato, sempre que vemos Laura Richardson por aqui recebemos “sermão” dela, como se fôssemos “crianças” travessas que precisam ser educadas. Nessa visita foi um sermão sobre como as nossas relações com a China não são realmente vantajosas e como vantajosas mesmo têm sido as relações com os EUA.
Isso, claramente, não faz o menor sentido. A própria Laura Richardson explica os motivos para isso. Ela deixa claro o fato de que as nossas relações seriam ideológicas, do Brasil e EUA como “democracias liberais”. O que implica uma promessa oculta de intervenção caso o Brasil pretendesse abandonar o modelo liberal de democracia. A China, obviamente, não dá a mínima para qual é nosso sistema político, forma de governo ou ideologia hegemônica. Não há exigências políticas ou culturais chinesas em suas relações conosco: tão somente honestidade no diálogo e preço justo nas trocas — e é esse, precisamente, o caminho da multipolaridade.
Ademais, as nossas relações com os EUA têm sido pautadas pela Doutrina Monroe, o que é relevante mencionar precisamente porque ela também cumpriu 200 anos no final do ano passado.
A Doutrina Monroe foi quase sempre interpretada de maneira equivocada no Brasil, especialmente pelas nossas elites e lideranças. No Brasil, comprou-se de maneira muito mais ingênua do que na maioria dos outros países das Américas a noção de que os EUA estavam interessados em promover um pan-americanismo igualitário contra o “imperialismo europeu”.
Do século XIX à primeira metade do século XX, as posições majoritárias quanto à Doutrina Monroe penderam em nosso país entre o idealismo de um cosmopolitismo americano fraternal, e a pretensa “esperteza” dos que acreditavam ser necessário se alinhar aos EUA como hegemon hemisférico para que o Brasil fosse seu “parceiro privilegiado” — é a geopolítica do cão que aguarda sentado perto da cabeceira da mesa para roer ossos. Essa noção de um “oportunismo” que nos permitiria crescer às sombras dos EUA, aliás, era um tema comum da burocracia militar do período da ditadura — ditadura ela própria implantada com o beneplácito dos EUA.
De modo geral, perdura uma lenda de que a Doutrina Monroe era “boa no início”, mas “se desvirtuou depois”. Uma lenda que não se sustenta minimamente à análise histórica.
Menos de 10 anos após a declaração da “Doutrina Monroe”, por exemplo, os EUA atacavam as Ilhas Malvinas e sequestravam seus habitantes. Pouco depois estavam se apossando do Texas e da Califórnia, em seguida invadiriam a Nicarágua, o Uruguai, o Panamá e a Colômbia, tudo isso em menos de 50 anos após a decretação da Doutrina Monroe.
Ela sempre foi pensada, vejam, como a atribuição das Américas como um todo como “zona de influência” dos EUA — sob sua hegemonia — e nada além. É por isso que, ao mesmo tempo que os libertadores da América convidaram os EUA ao “Congresso Anfictiônico”, o primeiro projeto civilizacional continental da região, Simón Bolívar, já desconfiado, disse: “Os Estados Unidos parecem destinados pela Providência a empestear a América de misérias em nome da liberdade”.
Várias outras figuras de relevo perceberam o mesmo, algumas até antes do Destino Manifesto, outras depois, como José Martí. No Brasil foram poucos, especialmente no século XIX.
Assim tem sido as nossas relações com EUA relações de “idiotas úteis” que se creem “muito espertos”. A “aliança necessária” de Vargas com os EUA resultou em sua queda e, depois, em seu suicídio — em um movimento que marca a cooptação generalizada de nossas Forças Armadas pelo atlantismo.
Situação da qual não conseguimos sair até hoje.
Essa é a verdade por trás da visita de Laura Richardson ao Brasil. Os EUA farão de tudo para impedir que cumpramos o nosso destino, e permaneçamos sendo o que tem sido ao longo da maior parte de nossa história livres, servos privilegiados, em vez de um dos polos na futura ordem multipolar.