Volta-se a falar no tema da Ferrovia Transoceânica – provavelmente um sinal de que a China reconhece em Lula um “rosto familiar” confiável para negociar projetos de longo prazo.
Junte-se a nós no Telegram , Twitter e VK .
Escreva para nós: info@strategic-culture.su
O projeto da integração ibero-americana, que aparece nos discursos de recentes figuras de proa do nosso continente como Hugo Chávez, sob o conceito de “Pátria Grande”, na verdade possui raízes já nos processos de independência que se desdobraram no século XIX.
Não é casual que a ideologia de Chávez consagrou-se sob o nome de “bolivarianismo”. É que o próprio Simón Bolívar pode ser considerado um “pan-americano” (inicialmente incluindo até mesmo os EUA em suas equações). O projeto “mínimo” de Bolívar, como se sabe, se apoiava em um esforço por conquistar a independência em relação à Espanha, sem que os vice-reinados se fragmentassem – o que de fato aconteceu, graças aos egoísmos oligárquicos alimentados no seio das lojas maçônicas filobritânicas.
A América Portuguesa, por outro lado, permaneceu unificada mesmo após a independência. O que se deve, em boa medida, ao fato de ter sido uma independência guiada por uma autoridade central do próprio Império Português: Pedro, filho do Rei de Portugal. A própria elite luso-brasileira teve, porém, um projeto de integração que começaria pela Argentina, a partir de uma hipotética união dinástica (quando uma parte dos argentinos passou a defender a coroação de Carlota Joaquina, esposa de João VI de Portugal, como Rainha do Prata).
A questão da integração continental perdurou e reapareceu no século XX especialmente sob Getúlio Vargas e Juan Domingo Perón, mas nunca pôde avançar – quase sempre por interferências externas em nosso continente.
Para o Brasil, ressalte-se que há um vínculo entre o tema da integração continental e o tema da “Marcha para o Oeste”, conceito que emerge na aurora da ciência geopolítica brasileira, e que aponta para a necessidade de “interiorizar” a ocupação territorial de nosso país, à época com uma demografia majoritariamente litorânea.
Sempre se acreditou que os imensos espaços vazios no território brasileiro poderiam representar futuramente um risco à soberania nacional, já que a ausência de efetiva ocupação poderia facilitar intentos de desestabilização através, por exemplo, do separatismo ou mesmo do crime organizado.
De modo que um “voltar-se para dentro”, um redirecionamento do enfoque nacional do mar para a terra, do litoral para o interior, sempre se vinculou tanto às preocupações de segurança nacional quanto aos anseios por integração continental, tal como descrito por Mário Travassos, considerado um dos pais da ciência geopolítica brasileira.
No centro das duas preocupações, portanto, estão os projetos históricos de construção de ferrovias (mas também rodovias) voltadas para o interior do continente, e mais além, ligando o Brasil aos países vizinhos.
A peça central nesses anseios, portanto, tem sido o chamado “Corredor Bioceânico”, já desde os anos 50 pelo menos, quando o engenheiro Vasco Azevedo Neto idealizou a Ferrovia Transulamericana, que ligaria os portos baianos aos portos peruanos, articulando ainda Mato Grosso e Tocantins como uma rota prioritária para o transporte de grãos. Mas apesar da idealização projetual o projeto permaneceu apenas no papel, enquanto simultaneamente o Brasil priorizava o desenvolvimento de uma malha rodoviária em detrimento da malha ferroviária para fins de integração nacional e continental, além de escoamento da produção agrícola brasileira.
O tema, até então adormecido, retorna sob o segundo mandato do Presidente Lula, quando começa a se estudar hipóteses de vias de transporte multimodais ligando portos no Sudeste brasileiro seja a Antofagasta no Chile, seja a Bayovar no Peru. Nos anos seguintes, prepara-se alguns estudos de viabilidade sobre os trechos em questão, bem como se consegue integrar a China no projeto.
Esses projetos, note-se, sempre põem em destaque a região centro-oeste brasileira, a principal região agroprodutora do continente, e que junto à Santa Cruz boliviana é considerada pela geopolítica clássica ibero-americana como parte do “Heartland” da América do Sul. Ligar essa zona aos principais portos do Atlântico e do Pacífico, portanto, atende a interesses geopolíticos fundamentais que reforçarão as soberanias dos países envolvidos.
A China aparece como principal financiadora do projeto de integração logística da América do Sul no contexto da Iniciativa Cinturão & Rota (ou “Nova Rota da Seda”), um esforço ambicioso de articulação logística planetária para racionalizar e facilitar a circulação de bens. Na medida em que os esforços autóctones de integração continental fracassaram (por uma série de motivos que vão das crises do capitalismo até a instabilidade política e golpes de Estado), o impulso chinês apareceu como a mola necessária para dar continuidade a este projeto.
No entanto, apesar de Lula já ter mencionado esta pauta desde 2008-2009 e dos chineses terem expressado interesse em financiar o projeto de construir a ferrovia de mais de 5.000km há mais de 10 anos, a rota tem apenas alguns trechos construídos, com a maior parte dela não tendo passado da fase de estudos. Por que?
Em primeiro lugar, é necessário recordar que esses anos de 2013-2016 coincidem com a estratégia híbrida de desestabilização do Brasil – multidirecional, multidimensional e contando com agentes à direita e à esquerda, que começaram através da “luta anticorrupção” e dos protestos contra a Copa do Mundo, as Olimpíadas e aumentos nas tarifas de ônibus e que culminam com o impeachment da Presidente Dilma Rousseff, com a quase falência de inúmeras empresas estratégicas brasileiras (por obra da Operação Lava Jato) e com a prisão de Lula.
Isso minou não apenas a capacidade de investimento brasileira, como a capacidade de iniciar projetos de infraestrutura de longo prazo (além de ampliar a influência atlantista em nosso país).
Mas não se pode, também, ignorar a pressão da mídia de massa e de ONGs, que ao longo dos anos sempre fizeram pressão contra as obras necessárias para a construção da ferrovia sob a justificativa de possíveis prejuízos ao meio ambiente ou a tribos indígenas.
Aqui se pode recordar, por exemplo, como o El País, em julho de 2015, lançou uma matéria com título “Ferrovia patrocinada pelos chineses ameaça ‘terra intocada’ do Acre” – apelando simultaneamente à narrativa racista de um “perigo amarelo” e a supostos ricos ambientais e antropológicos. Na matéria, o El País menciona que é um “grande risco” o fato de que a ferrovia passaria “perto” de aldeias indígenas, o que deveria ser suficiente para que se cancelasse o projeto. E tornaram-se notórios no Brasil os casos em que o Judiciário e o Ministério Público embargaram obras de infraestrutura, especialmente rodovias e ferrovias, em casos em que ONGs e partidos políticos de esquerda-liberal as denunciaram por supostos riscos ao meio ambiente ou a tribos indígenas. A título de exemplo, veja-se o caso da ferrovia que ligaria Sinop, no Mato Grosso, ao porto de Miritituba, no Pará, para escoamento das colheitas de soja e milha, embargada por uma decisão liminar concedida no STF em 2021.
Condições como essa geram um grau de insegurança jurídica que dissuade investimentos em empreendimentos de infraestrutura, que sempre envolvem somas vultosas e demandam estabilidade por se tratarem de projetos de longo prazo.
Não obstante, após o arrefecimento do período de instabilidade associado ao impeachment e o governo Bolsonaro, no qual o tema da Ferrovia Transoceânica foi ignorado, volta-se a falar no tema – provavelmente um sinal de que a China reconhece em Lula um “rosto familiar” confiável para negociar projetos de longo prazo.
Esse projeto, por sua vez, se vincula aos projetos do novo PAC anunciados há alguns meses, alguns dos quais também envolvem conexões entre setores produtivos e portos de escoamento no Pacífico, com 124 obras planejadas para unificar a América do Sul por meio de infraestrutura, com a ajuda do BNDES, do BID, da CAF e da China.
Diante dessas possibilidades e do modus operandi clássico do Ocidente atlantista, porém, resta a dúvida sobre se as elites globalistas realmente tolerarão esse tipo de projeto ligado à “Nova Rota da Seda” chinesa, especialmente em um momento no qual o atlantismo é expulso da África e desafiado na Eurásia e Oriente Médio.