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December 20, 2023
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Em novo livro, ativista explora de que maneira as grandes farmacêuticas conquistaram o poder que hoje têm. O papel da propriedade intelectual e a negligência com doenças pouco lucrativas. Mas erra ao subestimar influência das corporações nos governos do Norte Global

Por John CLARKE

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Com Pharmanomics: How Big Pharma Destroys Global Health [Tradução literal: “Farmacoeconomia: como a Big Pharma destrói a saúde global”, 2023, sem tradução no Brasil], Nick Dearden oferece um relato fascinante da evolução da Grande Indústria Farmacêutica para um monstro ávido por lucro que destrói um componente importante dos sistemas de saúde do mundo. No entanto, quando se trata das conclusões políticas que ele tira, suas esperanças de que esse leopardo possa mudar suas manchas e servir de maneira mais racional às necessidades globais de saúde não convencem aqueles que adotam uma visão mais radical da transformação social.

Dito isso, as limitações da análise de Dearden não deveriam ser uma grande surpresa. Ele é, afinal, uma figura importante dentro da rede internacional de ONGs e, embora faça uma acusação poderosa das empresas farmacêuticas, se encaixa melhor no papel de conselheiro do capitalismo do que de coveiro do sistema.

Lucros versus necessidades humanas

Desde as primeiras páginas do livro, vemos como uma característica geral do capitalismo passou a ser aplicada à provisão de medicamentos. Nessa área vital das necessidades humanas, o sistema de lucros decide quem viverá e quem morrerá, garantindo que a pesquisa, desenvolvimento, distribuição e disponibilidade de produtos farmacêuticos tenham muito mais a ver com estratégias de marketing do que com a cura, contenção e prevenção de doenças.

No primeiro capítulo, Dearden considera o papel crucial da família Sackler nos EUA, a partir da década de 1950, na formação da indústria farmacêutica que se desenvolveria. “O verdadeiro talento de Arthur Sackler era vender drogas. A ele são atribuídas as formas modernas de marketing farmacêutico nos Estados Unidos. O empresário era especialista em buscar diretamente os médicos, compreendendo o papel que desempenhavam não no processo de prescrição, mas como símbolos de confiança na sociedade” (p.2).

A abordagem de Sackler baseava-se na ideia de que “praticamente todos devem tomar medicamentos muito fortes regularmente”. Isso incluía a promoção do uso de Valium por “pessoas sem sintomas psiquiátricos” (p.3).

Após a morte de Sackler, seus sucessores começaram a comercializar o OxyContin em 1996 e então “começou o maior escândalo farmacêutico moderno dos Estados Unidos”. Assim como o Valium, o OxyContin era um medicamento potencialmente útil, mas foi “agressivamente propagandeado como um medicamento sem potencial de viciar e apropriado para quase todos, mesmo aqueles com dor moderada. Infelizmente, isso estava longe de ser verdade” (p.4).

Cinco anos após o início das vendas, o OxyContin chegou a gerar mais de US$ 1 bilhão em vendas – ao custo de uma epidemia de vício e morte. Como Dearden destaca, um “medicamento assim deveria ser prescrito com muita parcimônia. [Mas] empresas ávidas por lucro, como a Purdue, operam de outra forma. Seu imperativo é maximizar as vendas e transferir quaisquer custos para a sociedade em geral” (p.5).

Dearden observa que o “poder que o lobby e doações políticas irrestritas conferem à indústria farmacêutica é difícil de ser mensurado” (p.12). Ele também explica que “há uma porta giratória entre a indústria e o governo, pela qual a Big Pharma atrai funcionários experientes oferecendo salários lucrativos” (p.13). Mecanismos como esses de influência e controle, no entanto, são insuficientes para explicar “a magnitude do poder da indústria”. É necessário compreender como a Big Pharma conseguiu “alinhar seus interesses com os do establishment político, acadêmico e da profissão de saúde, bem como dos cidadãos e pacientes” (p.14).

Nos anos do pós-guerra, houve “uma nova onda de medicamentos inovadores” (p.14) que ampliaram massivamente “o número de comprimidos de rotina que tomamos” (p.15). Foi nesse contexto que a indústria farmacêutica cresceu e consolidou suas operações. A divisão entre pesquisa e fabricação se desfez, e uma série de fusões criaram “um punhado de grandes players verticalmente integrados” (p.15).

À medida que a contradição entre as necessidades de saúde das comunidades e as prioridades lucrativas das empresas farmacêuticas se tornou cada vez mais clara, diversos esforços para regular e controlar suas atividades surgiram pelo Norte Global. Nesse contexto, “a Big Pharma aprendeu… que precisava espalhar sua influência profundamente na sociedade”. Criticamente, isso envolvia “consolidar os argumentos de que altos preços eram justificados pelos custos de pesquisa” (p.22).

Dearden mostra como “os problemas com o controle da indústria sobre a pesquisa se estendem também ao processo de aprovação regulatória” (p.30). O órgão regulador dos EUA, a FDA [similar à Anvisa no Brasil], “aprova cada vez mais medicamentos caros, apesar de efeitos colaterais perigosos ou pouco conhecidos e evidências inconclusivas de que eles controlam ou curam doenças” (p.31).

O segundo capítulo considera como o processo de financeirização associado à era neoliberal intensificou o papel destrutivo da Big Pharma. A busca implacável e imprudente por lucro se tornou ainda mais arraigada. Nesse contexto: “Ativos intangíveis, particularmente a propriedade intelectual, deslocam-se ao centro do modelo farmacêutico” (p.51).

Hoje, “a Big Pharma gasta cada vez mais de seus recursos tentando fortalecer o valor de seus ativos intangíveis, em vez de se envolver em atividades produtivas” (p.51). O grau em que a pesquisa e a fabricação de medicamentos são subordinadas a essa condição é impressionante. Vemos que “apenas 2% a 3% dos novos medicamentos representam verdadeiros avanços. Um estudo de 2017 na Alemanha mostrou que 57% dos novos medicamentos não ofereciam nenhum valor terapêutico” (p.59).

O que emergiu nessa situação é “uma crise na descoberta de medicamentos, com grandes empresas vivendo à custa de medicamentos patenteados e fazendo pouco para substituí-los quando essas patentes caducam” (p.62). Enquanto isso, doenças curáveis assolam o Sul Global sem esforços significativos para contê-las. “Nos últimos cinquenta anos, apenas dois novos tratamentos para tuberculose foram desenvolvidos, enquanto quatorze novos tratamentos foram desenvolvidos para uma condição que não mata ninguém, a rinite alérgica” (p.60).

Pandemia

Ao considerar o papel da Big Pharma durante a pandemia global, o terceiro capítulo desafia a alegação de Boris Johnson de que “foi o capitalismo que garantiu que tivéssemos uma vacina em menos de um ano e a resposta – portanto, não é atacar os criadores de riqueza, é incentivá-los” (p.80). Dearden retruca que “a ganância e o capitalismo criaram a pandemia. E eles estavam prestes a dificultar os esforços para lidar com seus efeitos” (p.83).

Embora a probabilidade de uma grande pandemia fosse plenamente compreendida há anos, a Big Pharma havia mostrado consistentemente “uma indiferença quase completa ao coronavírus, ou qualquer candidato provável a uma pandemia global, porque eram considerados pouco propensos a serem lucrativos” (p.87). Se uma abordagem diferente tivesse sido adotada, “poderíamos estar em uma situação muito melhor. O fato de não estarmos vai ao cerne dos problemas na indústria” (p.88).

Dearden mostra como a Big Pharma manteve a propriedade intelectual das vacinas que foram desenvolvidas e lucrou com elas, mesmo que iniciativas de pesquisa e distribuição financiadas publicamente fossem centrais para a resposta à pandemia. “Ao entregar as vacinas a um número seleto de empresas lucrativas, estávamos também entregando decisões fundamentais – como quem teria permissão para fabricar as vacinas, a que preço e em que ordem poderiam ser vendidas” (p.94-5).

Os vastos lucros obtidos pelas empresas farmacêuticas durante a pandemia resultaram em grande parte de aumentos de preços sem vergonha. “As vacinas da Moderna poderiam ser produzidas por apenas U$ 2.85 por dose. No entanto, são de fato as vacinas mais caras do mercado, com uma média entre $19 e $24 por dose” (p.98).

Dearden reflete sobre os impactos prejudiciais do uso dos direitos de propriedade intelectual da Big Pharma para bloquear a distribuição de vacinas a países pobres a preços acessíveis. Ele mostra como os esforços para superar esse estrangulamento foram prejudicados pela tolice de tentar “levar a vacina contra a covid para comunidades e povos no mundo em desenvolvimento sem perturbar o mercado farmacêutico global” (p.109).

Durante a pandemia, Dearden esteve envolvido na campanha por uma “Vacina para o Povo” [o movimento chama-se People’s Vaccine, em inglês] – e aborda isso durante o quarto capítulo. No contexto de uma emergência global de saúde, essa iniciativa buscou desafiar “as regras de propriedade intelectual que colocam os ‘direitos de propriedade’ acima dos direitos humanos”. Ela confrontou “um modelo de assistência médica baseado no mercado que está falhando para a maioria das pessoas no mundo” (p.117).

Em consonância com uma proposta da Índia e da África do Sul, a People’s Vaccine “apoiou fortemente a demanda por uma renúncia ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou TRIPS”, que “estendeu as proteções de patentes no estilo ocidental por todo o mundo” e assegurou que as empresas farmacêuticas “pudessem ditar quem poderia usar suas criações e a que preço deveriam ser cobradas” (p.118).

Enquanto a pandemia avançava, “a tecnologia de vacinas estava nas mãos de apenas três corporações, todas elas comprometidas em obter um substancial lucro”, com o resultado de que “mesmo em 2022, para cada dose de vacina de mRNA entregue a países de baixa renda, cinquenta e seis foram entregues a países ricos” (p.120-1). A taxa de vacinação das populações era, é claro, correspondentemente desigual.

Enquanto essa vasta injustiça global se desenrolava, os três maiores produtores de vacinas pagaram U$ 26 bilhões aos seus acionistas em abril de 2021 – uma quantia que poderia ter sido usada para “pagar a vacinação de pelo menos 1,3 bilhão de pessoas, equivalente à população da África” (p.126).

Regras de Propriedade

No quinto capítulo, Dearden explora as regras de propriedade intelectual que a Big Pharma tem usado com vantagem considerável. Ele observa que “é apropriado que o TRIPS tenha sido um dos primeiros acordos negociados pela recém-fundada Organização Mundial do Comércio (OMC)” (p.161).

Esse órgão, estabelecido em 1995, é “um pilar do projeto de globalização” (p.161) que solidificou as relações comerciais internacionais que favoreciam os centros imperialistas. “Como o capitalismo iria se expandir para um mercado verdadeiramente global… as regras precisariam ser padronizadas. Se isso prejudicasse a capacidade de alguns países desenvolverem suas próprias tecnologias e, consequentemente, suas próprias economias, isso era um problema menor” (p.168).

As medidas que abriram caminho para a Big Pharma “nasceram como uma expressão bruta e profundamente antidemocrática do poder corporativo concentrado” (p.168). “Se não fosse pelas doze corporações transnacionais baseadas nos Estados Unidos do Comitê de Propriedade Intelectual… não haveria acordo sobre (TRIPS) hoje” (p.169). O TRIPS foi adotado porque “os Estados Unidos, trabalhando em estreita colaboração com os lobistas da Big Pharma… [se envolveram no] isolamento e intimidação de países, muitas vezes ameaçando-os abertamente com consequências econômicas se resistissem” (p.169).

As restrições sufocantes impostas pelo TRIPS, no entanto, levaram a “um jogo de gato e rato entre a Big Pharma… e ativistas e governos do Sul Global”. Interesses farmacêuticos pressionaram por medidas “além do TRIPS” que lhes concederiam ainda maiores vantagens. Dearden mostra que a Big Pharma, apesar de todo o seu enorme poder e influência, lida com uma oposição contínua que às vezes a obriga a recuar.

No sexto capítulo, Dearden estende sua análise para o sistema de saúde global mais amplo. Ele sugere que a aplicação das mesmas abordagens que facilitaram os negócios para as empresas farmacêuticas teve impactos catastróficos nos serviços de saúde de primeira linha (p.187).

Dearden critica a influência indevida do Banco Mundial em projetos de saúde. Sua abordagem foi baseada em “um mercado competitivo de seguros de saúde, a privatização da saúde pública e apenas uma rede mínima de segurança para os pobres”. O Banco trabalhou com “importantes filantropos, cuja intervenção no campo alteraria de maneiras profundas a saúde global. Ninguém simboliza melhor essa nova onda do que Bill Gates” (p.196).

O Banco Mundial e a Fundação Gates se uniram para “mobilizar U$ 1 bilhão em investimentos de capital e empréstimos para financiar o crescimento da participação do setor privado na saúde na África subsaariana”. Esses “investimentos até agora, na prática, foram predominantemente em hospitais caros e de alto nível, oferecendo cuidados terciários aos cidadãos mais ricos e a expatriados dos países africanos” (p.201).

Nos dois últimos capítulos, Dearden propõe alternativas ao papel dominante da Big Pharma. Ele vê o movimento da People’s Vaccine e seus esforços durante a pandemia como um desdobramento das lutas travadas durante a crise de HIV/aids dos anos 1990.

Não há dúvida de que, em ambas as situações, aqueles que se opuseram à busca desenfreada por lucro e exigiram respostas viáveis às necessidades de saúde conseguiram recuperar terreno da Big Pharma e salvaram vidas no processo. Ainda assim, apesar de todo o seu conhecimento prático e experiência consideráveis, as esperanças de Dearden por um sistema de saúde global mais justo e racional contêm um elemento marcante de otimismo. Ele claramente acredita que um lobby com a abordagem certa convencerá os governos a controlar a Big Pharma.

Dearden argumenta com veemência que as vastas desigualdades globais que ele apresentou exigem “a descolonização do modelo” (p.224). No entanto, sua sugestão de que as pessoas no Sul Global podem pressionar seus próprios governos e, “responsabilizando-os”, garantir que possam “dar passos transformadores à frente” (p.224), subestima as divisões de classe no Sul e os laços dos interesses da elite com a ordem mundial liderada pelos EUA.

Função do Estado

Dearden destaca corretamente o papel do Estado no desenvolvimento de tecnologias, mas sente que os governos têm ficado “envergonhados com seu papel na economia” (p.240). Ele argumenta que “deveriam encerrar a pretensão de que o mercado é a fonte de toda prosperidade e progresso e abraçar o papel que desempenham” (p.241). Esta é uma argumentação liberal muito familiar que supõe que o poder do Estado foi neutralizado pelo neoliberalismo, quando na verdade foi reenfocado e redirecionado para atender às necessidades de uma agenda de exploração intensificada.

À medida que o livro chega ao fim, Dearden procura raios de esperança em lugares sombrios. No “Accountable Capitalism Act” da senadora dos EUA, Elizabeth Warren, ele vê a possibilidade de “alterar os deveres legais dos diretores de empresas para que sejam obrigados a servir a um interesse mais amplo do que as preocupações estreitas dos acionistas” (p.243). Ele até deposita uma confiança muito inflada na postura de Joe Biden em limitar o poder da Big Pharma (p.254).

Dearden afirma que “sementes de mudança” estão evidentes e que “o Estado está de volta”. Em apoio a isso, ele aponta para “o nível de intervenção e planejamento estatal durante a crise financeira ou a pandemia de covid-19” (p.258). Certamente é verdade que, desde 2008, testemunhamos momentos em que o Estado interveio com grande vigor para estabilizar o capitalismo global, mas há poucas evidências de qualquer esforço sustentado para impor controles mais rigorosos sobre grandes corporações ou adotar níveis mais elevados de compromisso social.

O livro, talvez apropriadamente, considerando a perspectiva política do autor, conclui com um apelo final ao Estado para conter os piores instintos do capitalismo. Citando um colega de pensamento, Dearden nos deixa com a mensagem de que a “a grande questão realmente é: os governos têm a coragem de levar esse processo no caminho correto? Como podemos pressioná-los para garantir que o façam?” (p.268).Pharmanomics é um livro de enorme utilidade, que deve ser lido por todos aqueles que desejam entender os mecanismos da ganância irracional que minam e distorcem a produção e distribuição de medicamentos em escala global. Ele também mostra muito claramente as principais áreas de política em que a Big Pharma está sendo desafiada e onde precisa ser confrontada de forma mais decisiva. No entanto, quando se trata da análise política que isso exigirá, a perspectiva liberal de ONGs que Dearden defende fica seriamente aquém do necessário.

Como a Big Pharma destrói a Saúde Global – Outras Palavras

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.
Como a Big Pharma destroi a Saude Global

Em novo livro, ativista explora de que maneira as grandes farmacêuticas conquistaram o poder que hoje têm. O papel da propriedade intelectual e a negligência com doenças pouco lucrativas. Mas erra ao subestimar influência das corporações nos governos do Norte Global

Por John CLARKE

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Com Pharmanomics: How Big Pharma Destroys Global Health [Tradução literal: “Farmacoeconomia: como a Big Pharma destrói a saúde global”, 2023, sem tradução no Brasil], Nick Dearden oferece um relato fascinante da evolução da Grande Indústria Farmacêutica para um monstro ávido por lucro que destrói um componente importante dos sistemas de saúde do mundo. No entanto, quando se trata das conclusões políticas que ele tira, suas esperanças de que esse leopardo possa mudar suas manchas e servir de maneira mais racional às necessidades globais de saúde não convencem aqueles que adotam uma visão mais radical da transformação social.

Dito isso, as limitações da análise de Dearden não deveriam ser uma grande surpresa. Ele é, afinal, uma figura importante dentro da rede internacional de ONGs e, embora faça uma acusação poderosa das empresas farmacêuticas, se encaixa melhor no papel de conselheiro do capitalismo do que de coveiro do sistema.

Lucros versus necessidades humanas

Desde as primeiras páginas do livro, vemos como uma característica geral do capitalismo passou a ser aplicada à provisão de medicamentos. Nessa área vital das necessidades humanas, o sistema de lucros decide quem viverá e quem morrerá, garantindo que a pesquisa, desenvolvimento, distribuição e disponibilidade de produtos farmacêuticos tenham muito mais a ver com estratégias de marketing do que com a cura, contenção e prevenção de doenças.

No primeiro capítulo, Dearden considera o papel crucial da família Sackler nos EUA, a partir da década de 1950, na formação da indústria farmacêutica que se desenvolveria. “O verdadeiro talento de Arthur Sackler era vender drogas. A ele são atribuídas as formas modernas de marketing farmacêutico nos Estados Unidos. O empresário era especialista em buscar diretamente os médicos, compreendendo o papel que desempenhavam não no processo de prescrição, mas como símbolos de confiança na sociedade” (p.2).

A abordagem de Sackler baseava-se na ideia de que “praticamente todos devem tomar medicamentos muito fortes regularmente”. Isso incluía a promoção do uso de Valium por “pessoas sem sintomas psiquiátricos” (p.3).

Após a morte de Sackler, seus sucessores começaram a comercializar o OxyContin em 1996 e então “começou o maior escândalo farmacêutico moderno dos Estados Unidos”. Assim como o Valium, o OxyContin era um medicamento potencialmente útil, mas foi “agressivamente propagandeado como um medicamento sem potencial de viciar e apropriado para quase todos, mesmo aqueles com dor moderada. Infelizmente, isso estava longe de ser verdade” (p.4).

Cinco anos após o início das vendas, o OxyContin chegou a gerar mais de US$ 1 bilhão em vendas – ao custo de uma epidemia de vício e morte. Como Dearden destaca, um “medicamento assim deveria ser prescrito com muita parcimônia. [Mas] empresas ávidas por lucro, como a Purdue, operam de outra forma. Seu imperativo é maximizar as vendas e transferir quaisquer custos para a sociedade em geral” (p.5).

Dearden observa que o “poder que o lobby e doações políticas irrestritas conferem à indústria farmacêutica é difícil de ser mensurado” (p.12). Ele também explica que “há uma porta giratória entre a indústria e o governo, pela qual a Big Pharma atrai funcionários experientes oferecendo salários lucrativos” (p.13). Mecanismos como esses de influência e controle, no entanto, são insuficientes para explicar “a magnitude do poder da indústria”. É necessário compreender como a Big Pharma conseguiu “alinhar seus interesses com os do establishment político, acadêmico e da profissão de saúde, bem como dos cidadãos e pacientes” (p.14).

Nos anos do pós-guerra, houve “uma nova onda de medicamentos inovadores” (p.14) que ampliaram massivamente “o número de comprimidos de rotina que tomamos” (p.15). Foi nesse contexto que a indústria farmacêutica cresceu e consolidou suas operações. A divisão entre pesquisa e fabricação se desfez, e uma série de fusões criaram “um punhado de grandes players verticalmente integrados” (p.15).

À medida que a contradição entre as necessidades de saúde das comunidades e as prioridades lucrativas das empresas farmacêuticas se tornou cada vez mais clara, diversos esforços para regular e controlar suas atividades surgiram pelo Norte Global. Nesse contexto, “a Big Pharma aprendeu… que precisava espalhar sua influência profundamente na sociedade”. Criticamente, isso envolvia “consolidar os argumentos de que altos preços eram justificados pelos custos de pesquisa” (p.22).

Dearden mostra como “os problemas com o controle da indústria sobre a pesquisa se estendem também ao processo de aprovação regulatória” (p.30). O órgão regulador dos EUA, a FDA [similar à Anvisa no Brasil], “aprova cada vez mais medicamentos caros, apesar de efeitos colaterais perigosos ou pouco conhecidos e evidências inconclusivas de que eles controlam ou curam doenças” (p.31).

O segundo capítulo considera como o processo de financeirização associado à era neoliberal intensificou o papel destrutivo da Big Pharma. A busca implacável e imprudente por lucro se tornou ainda mais arraigada. Nesse contexto: “Ativos intangíveis, particularmente a propriedade intelectual, deslocam-se ao centro do modelo farmacêutico” (p.51).

Hoje, “a Big Pharma gasta cada vez mais de seus recursos tentando fortalecer o valor de seus ativos intangíveis, em vez de se envolver em atividades produtivas” (p.51). O grau em que a pesquisa e a fabricação de medicamentos são subordinadas a essa condição é impressionante. Vemos que “apenas 2% a 3% dos novos medicamentos representam verdadeiros avanços. Um estudo de 2017 na Alemanha mostrou que 57% dos novos medicamentos não ofereciam nenhum valor terapêutico” (p.59).

O que emergiu nessa situação é “uma crise na descoberta de medicamentos, com grandes empresas vivendo à custa de medicamentos patenteados e fazendo pouco para substituí-los quando essas patentes caducam” (p.62). Enquanto isso, doenças curáveis assolam o Sul Global sem esforços significativos para contê-las. “Nos últimos cinquenta anos, apenas dois novos tratamentos para tuberculose foram desenvolvidos, enquanto quatorze novos tratamentos foram desenvolvidos para uma condição que não mata ninguém, a rinite alérgica” (p.60).

Pandemia

Ao considerar o papel da Big Pharma durante a pandemia global, o terceiro capítulo desafia a alegação de Boris Johnson de que “foi o capitalismo que garantiu que tivéssemos uma vacina em menos de um ano e a resposta – portanto, não é atacar os criadores de riqueza, é incentivá-los” (p.80). Dearden retruca que “a ganância e o capitalismo criaram a pandemia. E eles estavam prestes a dificultar os esforços para lidar com seus efeitos” (p.83).

Embora a probabilidade de uma grande pandemia fosse plenamente compreendida há anos, a Big Pharma havia mostrado consistentemente “uma indiferença quase completa ao coronavírus, ou qualquer candidato provável a uma pandemia global, porque eram considerados pouco propensos a serem lucrativos” (p.87). Se uma abordagem diferente tivesse sido adotada, “poderíamos estar em uma situação muito melhor. O fato de não estarmos vai ao cerne dos problemas na indústria” (p.88).

Dearden mostra como a Big Pharma manteve a propriedade intelectual das vacinas que foram desenvolvidas e lucrou com elas, mesmo que iniciativas de pesquisa e distribuição financiadas publicamente fossem centrais para a resposta à pandemia. “Ao entregar as vacinas a um número seleto de empresas lucrativas, estávamos também entregando decisões fundamentais – como quem teria permissão para fabricar as vacinas, a que preço e em que ordem poderiam ser vendidas” (p.94-5).

Os vastos lucros obtidos pelas empresas farmacêuticas durante a pandemia resultaram em grande parte de aumentos de preços sem vergonha. “As vacinas da Moderna poderiam ser produzidas por apenas U$ 2.85 por dose. No entanto, são de fato as vacinas mais caras do mercado, com uma média entre $19 e $24 por dose” (p.98).

Dearden reflete sobre os impactos prejudiciais do uso dos direitos de propriedade intelectual da Big Pharma para bloquear a distribuição de vacinas a países pobres a preços acessíveis. Ele mostra como os esforços para superar esse estrangulamento foram prejudicados pela tolice de tentar “levar a vacina contra a covid para comunidades e povos no mundo em desenvolvimento sem perturbar o mercado farmacêutico global” (p.109).

Durante a pandemia, Dearden esteve envolvido na campanha por uma “Vacina para o Povo” [o movimento chama-se People’s Vaccine, em inglês] – e aborda isso durante o quarto capítulo. No contexto de uma emergência global de saúde, essa iniciativa buscou desafiar “as regras de propriedade intelectual que colocam os ‘direitos de propriedade’ acima dos direitos humanos”. Ela confrontou “um modelo de assistência médica baseado no mercado que está falhando para a maioria das pessoas no mundo” (p.117).

Em consonância com uma proposta da Índia e da África do Sul, a People’s Vaccine “apoiou fortemente a demanda por uma renúncia ao Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, ou TRIPS”, que “estendeu as proteções de patentes no estilo ocidental por todo o mundo” e assegurou que as empresas farmacêuticas “pudessem ditar quem poderia usar suas criações e a que preço deveriam ser cobradas” (p.118).

Enquanto a pandemia avançava, “a tecnologia de vacinas estava nas mãos de apenas três corporações, todas elas comprometidas em obter um substancial lucro”, com o resultado de que “mesmo em 2022, para cada dose de vacina de mRNA entregue a países de baixa renda, cinquenta e seis foram entregues a países ricos” (p.120-1). A taxa de vacinação das populações era, é claro, correspondentemente desigual.

Enquanto essa vasta injustiça global se desenrolava, os três maiores produtores de vacinas pagaram U$ 26 bilhões aos seus acionistas em abril de 2021 – uma quantia que poderia ter sido usada para “pagar a vacinação de pelo menos 1,3 bilhão de pessoas, equivalente à população da África” (p.126).

Regras de Propriedade

No quinto capítulo, Dearden explora as regras de propriedade intelectual que a Big Pharma tem usado com vantagem considerável. Ele observa que “é apropriado que o TRIPS tenha sido um dos primeiros acordos negociados pela recém-fundada Organização Mundial do Comércio (OMC)” (p.161).

Esse órgão, estabelecido em 1995, é “um pilar do projeto de globalização” (p.161) que solidificou as relações comerciais internacionais que favoreciam os centros imperialistas. “Como o capitalismo iria se expandir para um mercado verdadeiramente global… as regras precisariam ser padronizadas. Se isso prejudicasse a capacidade de alguns países desenvolverem suas próprias tecnologias e, consequentemente, suas próprias economias, isso era um problema menor” (p.168).

As medidas que abriram caminho para a Big Pharma “nasceram como uma expressão bruta e profundamente antidemocrática do poder corporativo concentrado” (p.168). “Se não fosse pelas doze corporações transnacionais baseadas nos Estados Unidos do Comitê de Propriedade Intelectual… não haveria acordo sobre (TRIPS) hoje” (p.169). O TRIPS foi adotado porque “os Estados Unidos, trabalhando em estreita colaboração com os lobistas da Big Pharma… [se envolveram no] isolamento e intimidação de países, muitas vezes ameaçando-os abertamente com consequências econômicas se resistissem” (p.169).

As restrições sufocantes impostas pelo TRIPS, no entanto, levaram a “um jogo de gato e rato entre a Big Pharma… e ativistas e governos do Sul Global”. Interesses farmacêuticos pressionaram por medidas “além do TRIPS” que lhes concederiam ainda maiores vantagens. Dearden mostra que a Big Pharma, apesar de todo o seu enorme poder e influência, lida com uma oposição contínua que às vezes a obriga a recuar.

No sexto capítulo, Dearden estende sua análise para o sistema de saúde global mais amplo. Ele sugere que a aplicação das mesmas abordagens que facilitaram os negócios para as empresas farmacêuticas teve impactos catastróficos nos serviços de saúde de primeira linha (p.187).

Dearden critica a influência indevida do Banco Mundial em projetos de saúde. Sua abordagem foi baseada em “um mercado competitivo de seguros de saúde, a privatização da saúde pública e apenas uma rede mínima de segurança para os pobres”. O Banco trabalhou com “importantes filantropos, cuja intervenção no campo alteraria de maneiras profundas a saúde global. Ninguém simboliza melhor essa nova onda do que Bill Gates” (p.196).

O Banco Mundial e a Fundação Gates se uniram para “mobilizar U$ 1 bilhão em investimentos de capital e empréstimos para financiar o crescimento da participação do setor privado na saúde na África subsaariana”. Esses “investimentos até agora, na prática, foram predominantemente em hospitais caros e de alto nível, oferecendo cuidados terciários aos cidadãos mais ricos e a expatriados dos países africanos” (p.201).

Nos dois últimos capítulos, Dearden propõe alternativas ao papel dominante da Big Pharma. Ele vê o movimento da People’s Vaccine e seus esforços durante a pandemia como um desdobramento das lutas travadas durante a crise de HIV/aids dos anos 1990.

Não há dúvida de que, em ambas as situações, aqueles que se opuseram à busca desenfreada por lucro e exigiram respostas viáveis às necessidades de saúde conseguiram recuperar terreno da Big Pharma e salvaram vidas no processo. Ainda assim, apesar de todo o seu conhecimento prático e experiência consideráveis, as esperanças de Dearden por um sistema de saúde global mais justo e racional contêm um elemento marcante de otimismo. Ele claramente acredita que um lobby com a abordagem certa convencerá os governos a controlar a Big Pharma.

Dearden argumenta com veemência que as vastas desigualdades globais que ele apresentou exigem “a descolonização do modelo” (p.224). No entanto, sua sugestão de que as pessoas no Sul Global podem pressionar seus próprios governos e, “responsabilizando-os”, garantir que possam “dar passos transformadores à frente” (p.224), subestima as divisões de classe no Sul e os laços dos interesses da elite com a ordem mundial liderada pelos EUA.

Função do Estado

Dearden destaca corretamente o papel do Estado no desenvolvimento de tecnologias, mas sente que os governos têm ficado “envergonhados com seu papel na economia” (p.240). Ele argumenta que “deveriam encerrar a pretensão de que o mercado é a fonte de toda prosperidade e progresso e abraçar o papel que desempenham” (p.241). Esta é uma argumentação liberal muito familiar que supõe que o poder do Estado foi neutralizado pelo neoliberalismo, quando na verdade foi reenfocado e redirecionado para atender às necessidades de uma agenda de exploração intensificada.

À medida que o livro chega ao fim, Dearden procura raios de esperança em lugares sombrios. No “Accountable Capitalism Act” da senadora dos EUA, Elizabeth Warren, ele vê a possibilidade de “alterar os deveres legais dos diretores de empresas para que sejam obrigados a servir a um interesse mais amplo do que as preocupações estreitas dos acionistas” (p.243). Ele até deposita uma confiança muito inflada na postura de Joe Biden em limitar o poder da Big Pharma (p.254).

Dearden afirma que “sementes de mudança” estão evidentes e que “o Estado está de volta”. Em apoio a isso, ele aponta para “o nível de intervenção e planejamento estatal durante a crise financeira ou a pandemia de covid-19” (p.258). Certamente é verdade que, desde 2008, testemunhamos momentos em que o Estado interveio com grande vigor para estabilizar o capitalismo global, mas há poucas evidências de qualquer esforço sustentado para impor controles mais rigorosos sobre grandes corporações ou adotar níveis mais elevados de compromisso social.

O livro, talvez apropriadamente, considerando a perspectiva política do autor, conclui com um apelo final ao Estado para conter os piores instintos do capitalismo. Citando um colega de pensamento, Dearden nos deixa com a mensagem de que a “a grande questão realmente é: os governos têm a coragem de levar esse processo no caminho correto? Como podemos pressioná-los para garantir que o façam?” (p.268).Pharmanomics é um livro de enorme utilidade, que deve ser lido por todos aqueles que desejam entender os mecanismos da ganância irracional que minam e distorcem a produção e distribuição de medicamentos em escala global. Ele também mostra muito claramente as principais áreas de política em que a Big Pharma está sendo desafiada e onde precisa ser confrontada de forma mais decisiva. No entanto, quando se trata da análise política que isso exigirá, a perspectiva liberal de ONGs que Dearden defende fica seriamente aquém do necessário.

Como a Big Pharma destrói a Saúde Global – Outras Palavras