Os especialistas jamais pisaram o solo norte-coreano. Pelo contrário, eles fizeram visitas a Washington, Seul e Tóquio.
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Em março de 2024, após quase 15 anos de atuação, o Painel de Especialistas do Comitê de Sanções das Nações Unidas para a República Popular Democrática da Coreia deixou de existir. Foi graças ao veto da Rússia, com a ajuda pretérita da República Popular da China, que, na votação sobre a renovação do Painel, se absteve – contrariando os votos das potências imperialistas do Conselho de Segurança e os seus satélites.
Uma análise minuciosa da atuação das sucessivas equipes que formaram o Painel ao longo de uma década e meia comprova as acusações russas e chinesas de parcialidade e viés anti-coreano, que levaram as equipes a elaborar relatórios e recomendações que prejudicaram fortemente o bem-estar do povo da RPDC sob a desculpa de impedir o desenvolvimento do programa nuclear defensivo e dissuasivo de Pyongyang. Neste primeiro artigo da série, vamos abordar a atuação do primeiro Painel.
O primeiro Painel de Especialistas do Comitê de Sanções das Nações Unidas para a RPDC foi nomeado em agosto de 2009 pelo então secretário-geral da ONU, o sul-coreano Ban Ki-moon (que foi ministro das Relações Exteriores da Coreia do Sul entre 2004 e 2006). Esse comitê, por sua vez, havia sido criado em 2006, na esteira da crise nuclear com a RPDC, quando esta revelou ao mundo seu programa nuclear. Ban Ki-moon apontou os seguintes especialistas: Victor D. Comras para as questões financeiras (representando os EUA), Xiaohong Dang para o controle de exportações e itens nucleares (representando a China), Eric Marzolf para a tecnologia de mísseis (representando a França), Alexander Vilnin para a alfândega (representando a Rússia), David J. Birch para as questões de proliferação de armas de destruição em massa (representando o Reino Unido), Masahiko Asada para questões nucleares (representando o Japão) e Young-wan Song para assuntos regionais (representando a Coreia do Sul). O coordenador do grupo seria David J. Birch.
Note-se que, dos sete especialistas, cinco representavam cada país membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Eles foram escolhidos “após consultas com o Comitê do Conselho de Segurança” estabelecido pela resolução 1718, de 2006, como recordou Ban Ki-moon em carta dirigida à presidência do Conselho [1]. Além disso, os outros dois representavam países declaradamente hostis e inimigos da RPDC desde a divisão da Coreia. De fato, todos os sete países representados no primeiro Painel de Especialistas das Nações Unidas eram, naquele momento, hostis à RPDC, incluindo Rússia e China, que haviam votado favoravelmente a todas as sanções ao país [2].
Mas alguém poderia pensar que os especialistas eram imunes à política de seus respectivos países, pois eram todos técnicos e não políticos. Ledo engado. Victor D. Comras, por exemplo, havia servido por 35 anos no Departamento de Estado dos EUA [3]. Eric Marzolf havia sido conselheiro político sênior no Ministério da Defesa da França entre 2003 e 2009 [4]. Young-wan Song havia trabalhado como diretor-geral do escritório de organização internacional do Ministério de Relações Exteriores e Comércio da Coreia do Sul [5] e depois disso passou a representar seu governo em outros assuntos nas Nações Unidas [6].
O Painel de Especialistas apresentou seu relatório final de trabalho em 12 de maio de 2010. Ele é revelador da atuação altamente enviesada dos paineis de especialistas sobre a RPDC. Os especialistas contrastam informações oficiais de Pyongyang com as fornecidas por supostos especialistas estrangeiros, confiando muito mais nestas do que naquelas (embora as informações de fora do país sejam extremamente duvidosas e algumas citadas pelo relatório não tenham sido verificadas, como eles admitem). Afirmam que a RPDC viola o regime de sanções da ONU, além de ter uma economia em colapso e uma qualidade de vida extremamente precária para a população. Mas os especialistas jamais pisaram o solo norte-coreano. Pelo contrário, eles fizeram visitas a Washington, Seul e Tóquio ao longo de 2009, onde realizaram reuniões e obtiveram documentos sobre a RPDC. Suas fontes foram precisamente documentos de outros governos que não o da RPDC (geralmente o dos EUA e da Coreia do Sul), relatórios da Agência Internacional de Energia Atômica (que não visitava o país há anos), artigos de pesquisadores (estrangeiros, é claro) e reportagens da imprensa internacional (cujas fontes geralmente são os órgãos de inteligência e desinformação dos países inimigos da RPDC). Os especialistas chegam a citar relatórios do Congresso dos EUA e da CIA sobre a RPDC como “fontes externas credíveis” [7]. Uma outra fonte citada pelo documento dos especialistas é um relatório da FAO de 2008, para comprovar como o povo coreano sofria de falta de comida. Contudo, os especialistas não informam que a FAO destacara que os principais motivos das dificuldades na RPDC à época eram o declínio na fertilidade do solo, a falta de fertilizantes e combustíveis e as péssimas condições climáticas para a agricultura [8] – o que está diretamente relacionado com o isolamento imposto ao país pelo bloqueio dos EUA após a queda da URSS e do Bloco do Leste, que forneciam à RPDC os fertilizantes e combustíveis para a agricultura.
Em seu relatório, os especialistas ainda afirmam que a exportação de armas é uma das fontes vitais de divisas estrangeiras para a economia do país, o que seria mais um motivo para sanções relacionadas ao setor militar coreano. Mas “indústrias ligadas aos militares”, dizem também os especialistas, “são virtualmente indistinguíveis daquelas que suprem as necessidades civis” (p.10). Como consequência, não apenas as instituições e indivíduos militares deveriam ser sancionados, como também as civis. Essa é a grande desculpa para impor um bloqueio total ao país, impedindo qualquer nação de fazer comércio com a RPDC, porque estaria alimentando a indústria bélica coreana. O próprio relatório informa que as missões diplomáticas estrangeiras em Pyongyang reclamavam dos efeitos das sanções, porque elas assustavam qualquer entidade (seja governamental ou privada) para não fazer negócios na RPDC. Os anexos do relatório também revelam que todos os países que reportaram ao Painel de Especialistas sobre ítens de luxo, indivíduos e entidades a serem sancionados são países historicamente muito hostis à RPDC, sendo os mais ativos na lista os EUA, União Europeia e Austrália (pp. 52-65). Não há nenhum país da África ou da América Latina, e da Ásia apenas três (Japão, Coreia do Sul e Cingapura).
No próximo artigo vamos continuar desvendando o trabalho das próximas equipes do Painel…
Referências
[1] “Letter dated 12 August 2009 from the Secretary-General addressed to the President of the Security Council”. United Nations Security Council (S/2009/416), 12 de agosto de 2009. Disponível em: https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/NKorea%20S2009%20416.pdf. Acesso em: 20 de outubro de 2024.
[2] A postura de Moscou e Pequim relativa a Pyongyang, embora nunca tenha chegado ao ponto das tensões com o Ocidente e com Seul e Tóquio, foi de crescente distanciamento a partir do início dos anos 1990. O período mais crítico ocorreu precisamente quando da aceitação das duas potências do início do regime de sanções à RPDC em 2006, correspondendo à aproximação que elas haviam alcançado com Washington e seus aliados. Contudo, a mudança da situação internacional, com a crise econômica de 2008 e o cerco político, econômico e militar da superpotência imperialista geraram um novo distanciamento entre o Ocidente e o Oriente, o que significou, naturalmente, uma reaproximação de Rússia e China com a RPDC a partir das décadas de 2010 e 2020. Levando tudo isso em consideração, os perfis dos representantes chineses e russos nos sucessivos painéis de especialistas não serão aqui escrutinados, pois, se esses dois países têm a tradição de um governo centralizado e mesmo os países ocidentais “liberais” tenham designado representantes quase exclusivamente de carreira governamental para os painéis, seria natural que aqueles não fossem independentes de seus governos. Além disso, os estereótipos espalhados no Ocidente sobre Rússia e China transformam qualquer cidadão desses países em “agentes governamentais”, ainda mais se estiverem trabalhando no âmbito das Nações Unidas. Assim, torna-se irrelevante o levantamento do perfil de seus representantes nos painéis de especialistas em sanções à RPDC.
[3] Victor D. Comras – Special Counsel. EREN Law Attorneys. Disponível em: https://erenlaw.com/attorneys/victor-d-comras/. Acesso em: 21 de outubro de 2024.
[4] Eric Marzolf. LinkedIn. Disponível em: https://www.linkedin.com/in/erik-marzolf-9a806289/. Acesso em: 21 de outubro de 2024.
[5] Won-sup, Yoon. “Seoul to Appeal to United Nations for East Sea”. The Korea Times, 20 de agosto de 2007. Disponível em: https://www.koreatimes.co.kr/www/nation/2024/09/113_8638.html. Acesso em: 20 de outubro de 2024.
[6] Song Young-wan (Republic of Korea), 4th plenary meeting. UN Web TV, 4 de novembro de 2014. Disponível em: https://webtv.un.org/en/asset/k1q/k1q3li5pr6. Acesso em: 20 de outubro de 2024.
[7] “Report of the Panel of Experts established pursuant to resolution 1874 (2009)”. United Nations Security Council (S/2010/571), 5 de novembro de 2010, p.9. Disponível em: https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/DPRK%20S%202010%20571%20PoE%20Report.pdf. Acesso em 21 de outubro de 2024.
[8] “Special report FAO/WFP crop and food security assessment mission to the Democratic People’s Republic of Korea” – Mission Highlights. FAO Global Information and Early Warning System on Food and Agriculture World Food Programme, 8 de dezembro de 2008. Disponível em: https://www.fao.org/4/ai475e/ai475e00.htm. Acesso em 21 de outubro de 2024.