A “entrevista” de Ted Cruz a Tucker Carlson deixou bem claro que, nos EUA, a direita cristã é movida por uma leitura peculiar do Antigo Testamento.
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A acalorada “entrevista” de Ted Cruz a Tucker Carlson deixou bem claro que, nos EUA, a direita cristã é movida por uma leitura peculiar do Antigo Testamento – uma leitura tão peculiar, mas tão peculiar, que se embasa num slogan que não está na Bíblia. Afinal, a frase “aqueles que abençoarem Israel serão abençoados” não é uma citação literal, é uma interpretação de uma passagem do Gênesis (12,3) na qual Deus diz a Abraão: “abençoarei os que te abençoarem.” De todo modo, nesse falso slogan veterotestamentário, vê-se também que os cristãos sionistas interpretam toda referência bíblia a Israel como uma referência ao Estado ora governado por Benjamin Netanyahu.
Em nome de qual igreja fala Ted Cruz? Bem, de nenhuma. Ele se identifica somente como “cristão”, e só uma pesquisa detida seria capaz de descobrir qual igreja ele frequenta. O pai dele, Rafael Cruz, era um cubano criado como católico que virou pastor “evangélico” (mais valia dizer pastor veterotestamentário), e numa rápida busca vejo que Rafael Cruz participou de uma tal New Beginnings Church do Texas (sabe-se lá se as unidades de outras localidades partilham do mesmo credo). Seja como for, aí está uma igreja de identidade irrelevante, que nem verbete na Wikipédia tem.
Instituições formam doutrinas e as preservam. Ademais, instituições têm representação pública e autoridade. Na Europa Ocidental e na maior parte do Novo Mundo, a instituição que velava pela verdade foi, por muito tempo, a Igreja Católica Apostólica Romana. Com a secularização, tendemos a fragmentar a verdade e a confinar as igrejas às verdades teológicas. Antes do advento da Reforma, porém, restava muito claro que a verdade não era um assunto fragmentário; ninguém pensava que mudar a cosmologia poderia deixar de mudar a teologia. O próprio Galileu, em seu Diálogo dos máximos sistemas, se empenha em mostrar que o aristotelismo está errado, e ele sabia o aristotelismo era um pilar da Igreja Católica. Até hoje, divulgadores científicos parecem saber muito bem disso, já que usam a exploração do universo para provar que “nós somos poeira estelar” – ou seja, que o homem não tem uma posição central naquilo que antigamente era chamado de Criação. Não é preciso muita criatividade para imaginar os impactos que isso tem sobre a valoração da vida humana.
As primeiras igrejas protestantes gozavam de institucionalidade – sobretudo porque muitas delas eram igrejas nacionais. No entanto, o protestantismo, principalmente na Inglaterra, avançou para uma profunda fragmentação, de modo que é possível cada um começar a sua própria seita. Os EUA foram fundados nesse espírito, e no século XX o seu poderio econômico teve como consequência difusão desse protestantismo fragmentário pelo mundo. O Brasil foi uma vítima desse processo. E olhando daqui podemos notar uma espantosa uniformidade de crenças: tão logo começou a chuva de mísseis sobre Israel, o coach desigrejado e ex-candidato a prefeito de São Paulo Pablo Marçal aproveitou a oportunidade para divulgar a sua “mentoria” em Israel, no qual ensinaria os “códigos milenares do povo de Israel”. O mesmo coach tem feito batizados (ele cita a Bíblia parecendo ser o próprio João Batista) e pedido preces para Israel contra o Irã. O coach é uma espécie de pastor avulso, que não tem uma igreja, que com certeza não formulou uma teologia, mas que repete, talvez irrefletidamente, essa teologia precária dos tele-evangelistas sionistas. Tanto Ted Cruz como o coach se apresentam como “cristão” sem apontar para nenhuma instituição. Apesar disso, esposam a mesma crença de que Jesus Cristo veio ao mundo fazer hora extra, pois o importante mesmo está no Gênesis, e consiste em apoiar o governo de Netanyahu.
Ora, tamanha uniformidade tem de trazer reflexão; afinal, não existe um Papa dispensacionalista, um Papa tele-evangelista, um Papa coach, mas há uniformidade doutrinária e até política, já que são todos sempre estridentes liberais de direita. Por outro lado, na Igreja católica, que é uma instituição que expulsa hereges, há uma grande diversidade de pensamento, além de comportar uma profunda polarização política.
Penso que a explicação é a seguinte: livrar-se das instituições cria um indivíduo atomizado que tem a ilusão de liberdade. Quando tal indivíduo é malformado (o que é muitíssimo frequente desde o declínio da escola pública no Ocidente), ele tomará suas decisões com base na sedução da propaganda. Aquilo que parecer mais atraente, mais pop, mais legal é por isso mesmo escolhido. A lógica acaba sendo a do mercado, com direito a segmentação de público e tudo: há igreja para surfistas, igrejas de parede preta para jovens que gostam de balada, movimento para homens que querem ser machões escaladores de montanhas e dizem que Cristo era igual a eles etc. A pessoa não pensa mais; segue tendência de marketing. A rebeldia e a criatividade eram necessárias para se tornar um herege; hoje, basta não honrar a própria racionalidade e seguir os impulsos.
Se a falta de institucionalidade joga o cristianismo na arena do marketing, não é de admirar que a doutrina aceita se torne aquela que dispõe de maior orçamento. No que concerne à submissão dos pseudocristãos a Israel, já vimos (em “Uma história do lobby sionista na Inglaterra e nos EUA”) que os tele-evangelistas têm relações tão estreitas com Israel que o Líbano ocupado contou com uma emissora pseudocristã que exibia programas de pastores do gênero.
O que se conclui disso é que a recuperar a institucionalidade do cristianismo é uma questão de segurança nacional.