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Bruna Frascolla
May 24, 2025
© Photo: Public domain

Desde o advento do darwinismo, a humanidade vive uma relação paradoxal com a natureza.

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Desde o advento do darwinismo, a humanidade vive uma relação paradoxal com a natureza: por um lado, aprendemos a nos enxergar como animais cujo comportamento pode ser explicado pela luta pela sobrevivência; por outro, reconhecemos tacitamente nossa racionalidade e seguimos tentando superar a natureza.

Esse aprendizado (de que nosso comportamento tem suas causas últimas na luta pela sobrevivência) é o contrário do cristianismo e traz suas próprias complicações. Afinal, se teólogos tiveram de inventar a teodiceia para explicar como Deus permite o mal, o homem prático engendrado pelo darwinismo terá de inventar mil esquemas sociobiológicos para explicar a origem do comportamento altruísta e virtuoso. Se o mundo é uma competição pela sobrevivência, a bondade torna-se difícil de explicar. Os teólogos tinham o problema do mal, os darwinistas têm o problema do bem.

A escolha do darwinismo como chave explicativa do comportamento humano é tão contraintuitiva que deve ser admitida como ideológica. O melhor caso que para ilustrar isso talvez seja o de Marcelino Sanz de Sautuola, o arqueólogo amador que descobriu a arte rupestre no final do século XIX. Ele tratou de estudar as pinturas de boi descobertas por sua filhinha de nove anos no teto da Caverna de Altamira, mas morreu como um charlatão, porque o establishment científico, darwinista, considerava impossível que o homem das cavernas tivesse dotes artísticos. Como verdadeira ideologia, o darwinismo prescreveu os fatos, e as provas foram negadas pelo máximo de tempo possível.

Superar a natureza à maneira darwinista

Na cosmovisão cristã a superação da natureza se dava por meio de realizações morais e intelectuais, que são diferenciais humanos que o colocam no topo da criação. Atualmente, porém, o homem pretende superar a natureza fazendo um trabalho de seleção natural melhor o que dela.

A manipulação da natureza é mais antiga que a História, pois o homem aprendeu a domesticar espécies animais e vegetais antes de aprender a escrever. No entanto, não se tratava de uma superação da natureza pela superação da natureza: tinha-se em vista a conveniência do próprio homem. Com o avanço da técnica, o homem pôde alterar a natureza pelos motivos mais supérfluos: fazer uma flor com mais pétalas, uma fruta sem caroços, um cão dócil. São alterações com um caráter antropocêntrico, pois a flor visa a agradar as vistas humanas; a fruta, o paladar humano; o cão, ser amigo das crianças. Não se trata de uma competição com a natureza, mas da velha domesticação.

No século XIX, porém, as elites anglófonas começaram a querer domesticar o próprio homem, tendo em vistas o darwinismo. A ciência da eugenia deveria criar homens melhores do que o processo de seleção natural. Mas melhores para quem ou para quê? Até hoje a eugenia pretende se apresentar como antropocêntrica, como se se tratasse de dar saúde ao homem. Não obstante, a eugenia em tese impede o nascimento de pessoas doentes e promove o nascimento de pessoas sadias; nada tem a ver com dar saúde às pessoas que existem.

No olho do furacão, o escritor inglês G. K. Chesterton percebeu o que estava em causa: o gerenciamento da reprodução do povo pela elite capitalista. Em vez de reduzir o lucro aumentando salários e dar condições de vida ao operariado, os capitalistas pretendiam fazer com que tivessem menos filhos, e que esses filhos fossem saudáveis o bastante para serem trabalhadores úteis. A lógica da criação de cães de raça (que serviam para caçar, ou farejar, ou proteger etc.) se aplicava à procriação humana. A Alemanha Nazista, que foi mais longe no controle racial da população, fez com que a paternidade liberal da eugenia fosse esquecida.

Uma nova eugenia liberal

Os dias atuais, porém, estamos relembrando muito bem a afinidade da eugenia com o liberalismo. A reprodução assistida deixou de ser apenas um expediente usado por casais com problemas de fertilidade e se tornou uma indústria de produção de bebês sob encomenda – a tal ponto que um homem solteiro pode encomendar um e, com a ajuda de uma agência internacional, driblar leis para se tornar legalmente pai de uma criança sem mãe. Tudo está à venda: os óvulos, os espermatozoides, a gravidez arriscada de uma mulher pobre.

Nesse caso, não é preciso ser sagaz como Chesterton para ver qual é a finalidade da eugenia: dar aos pais aquele que, a seu próprio juízo, é o melhor filho que o dinheiro pode comprar. Antes, um homem e uma mulher casavam, faziam sexo e tinham uma variedade de filhos. Um mais bonito do que outro; um mais inteligente do que outro e, às vezes, um deficiente. Agora os pais já não precisam mais convencer os filhos de que não há favoritos, pois a clínica, avaliando a genética dos embriões, garante que apenas os favoritos irão nascer.

Na Holanda, um problema previsível

O engraçado é que, sem um cônjuge do sexo oposto, a liberdade para escolher o melhor filho possível é ampliada, já que o cliente pode escolher um doador de gametas que, segundo os seus caprichos, tem a melhor genética possível. Como há mais não-ricos do que ricos, há mais heterossexuais do que homossexuais e esperma é mais barato do que óvulo, podemos dizer que a típica pessoa livre para comprar um filho customizado é a mulher de classe média que priorizou a carreira, não engravidou de um namorado, não conseguiu casar (ou permanecer casada) e quer ter um filho de qualquer jeito, antes de ficar estéril (aliás, o mercado de óvulos aproveita esse temor oferecendo congelamento de óvulos pago com parte dos óvulos – mas essa é outra história).

Acaso podemos imaginar que essa mulher chegue à empresa determinada a escolher um baixinho para ser o pai dos seus filhos? Muitos baixinhos se casam e são pais, mas duvido que muitos baixinhos tenham seu esperma selecionado por clientes de clínicas de fertilização. Assim, não é nada difícil imaginar que doador de esperma as clientes têm em mente quando entram em tal clínica: bonito, alto, atlético, cheio do QI e dos diplomas. Se constar a informação de que tem sensibilidade artística ou musical, certamente fará sucesso também.

Digamos então que não será uma surpresa se quase todas as mulheres selecionarem o mesmo doador no cardápio. A nossa cara é personalíssima; não obstante, as mulheres fazem cirurgias plásticas e ficam todas com a mesma cara, que varia segundo a moda. Ora, por mais que se fale em customização, o que o capitalismo promove é uniformização. Todos querem um mesmo objeto de consumo; e, quando o objeto de consumo é um filho, todas as mães vão ter o mesmo artigo da moda em vista. É claro que vão querer o mesmo doador de esperma, e que o mercado não tem motivos para negar.

Assim, no país mais avançado em pautas liberais do mundo, a Holanda, veio à tona “uma calamidade médica” na indústria da fertilidade: segundo The Guardian, as clínicas permitiram que pelo menos 85 doadores de esperma tivessem mais de 25 filhos. O número 25 é importante porque a Holanda tinha uma lei em 1992 fixando esse número como o limite, e em 2018 o limite caiu para dois. A legislação tem o objetivo de impedir o incesto.

Bom, até mesmo na zona rural do século passado, 25 é filho pra burro – só por aí já dava para ver que havia doadores prediletos e, portanto, pressão de mercado. Ao fim e ao cabo, os holandeses, após pretenderem fazer uma seleção artificial melhor do que a natural, criaram um ambiente muito propício para a mais notória causa de deformidades congênitas: o incesto.

Clínicas de fertilidade: O capitalismo mira na eugenia e acerta no incesto

Desde o advento do darwinismo, a humanidade vive uma relação paradoxal com a natureza.

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Desde o advento do darwinismo, a humanidade vive uma relação paradoxal com a natureza: por um lado, aprendemos a nos enxergar como animais cujo comportamento pode ser explicado pela luta pela sobrevivência; por outro, reconhecemos tacitamente nossa racionalidade e seguimos tentando superar a natureza.

Esse aprendizado (de que nosso comportamento tem suas causas últimas na luta pela sobrevivência) é o contrário do cristianismo e traz suas próprias complicações. Afinal, se teólogos tiveram de inventar a teodiceia para explicar como Deus permite o mal, o homem prático engendrado pelo darwinismo terá de inventar mil esquemas sociobiológicos para explicar a origem do comportamento altruísta e virtuoso. Se o mundo é uma competição pela sobrevivência, a bondade torna-se difícil de explicar. Os teólogos tinham o problema do mal, os darwinistas têm o problema do bem.

A escolha do darwinismo como chave explicativa do comportamento humano é tão contraintuitiva que deve ser admitida como ideológica. O melhor caso que para ilustrar isso talvez seja o de Marcelino Sanz de Sautuola, o arqueólogo amador que descobriu a arte rupestre no final do século XIX. Ele tratou de estudar as pinturas de boi descobertas por sua filhinha de nove anos no teto da Caverna de Altamira, mas morreu como um charlatão, porque o establishment científico, darwinista, considerava impossível que o homem das cavernas tivesse dotes artísticos. Como verdadeira ideologia, o darwinismo prescreveu os fatos, e as provas foram negadas pelo máximo de tempo possível.

Superar a natureza à maneira darwinista

Na cosmovisão cristã a superação da natureza se dava por meio de realizações morais e intelectuais, que são diferenciais humanos que o colocam no topo da criação. Atualmente, porém, o homem pretende superar a natureza fazendo um trabalho de seleção natural melhor o que dela.

A manipulação da natureza é mais antiga que a História, pois o homem aprendeu a domesticar espécies animais e vegetais antes de aprender a escrever. No entanto, não se tratava de uma superação da natureza pela superação da natureza: tinha-se em vista a conveniência do próprio homem. Com o avanço da técnica, o homem pôde alterar a natureza pelos motivos mais supérfluos: fazer uma flor com mais pétalas, uma fruta sem caroços, um cão dócil. São alterações com um caráter antropocêntrico, pois a flor visa a agradar as vistas humanas; a fruta, o paladar humano; o cão, ser amigo das crianças. Não se trata de uma competição com a natureza, mas da velha domesticação.

No século XIX, porém, as elites anglófonas começaram a querer domesticar o próprio homem, tendo em vistas o darwinismo. A ciência da eugenia deveria criar homens melhores do que o processo de seleção natural. Mas melhores para quem ou para quê? Até hoje a eugenia pretende se apresentar como antropocêntrica, como se se tratasse de dar saúde ao homem. Não obstante, a eugenia em tese impede o nascimento de pessoas doentes e promove o nascimento de pessoas sadias; nada tem a ver com dar saúde às pessoas que existem.

No olho do furacão, o escritor inglês G. K. Chesterton percebeu o que estava em causa: o gerenciamento da reprodução do povo pela elite capitalista. Em vez de reduzir o lucro aumentando salários e dar condições de vida ao operariado, os capitalistas pretendiam fazer com que tivessem menos filhos, e que esses filhos fossem saudáveis o bastante para serem trabalhadores úteis. A lógica da criação de cães de raça (que serviam para caçar, ou farejar, ou proteger etc.) se aplicava à procriação humana. A Alemanha Nazista, que foi mais longe no controle racial da população, fez com que a paternidade liberal da eugenia fosse esquecida.

Uma nova eugenia liberal

Os dias atuais, porém, estamos relembrando muito bem a afinidade da eugenia com o liberalismo. A reprodução assistida deixou de ser apenas um expediente usado por casais com problemas de fertilidade e se tornou uma indústria de produção de bebês sob encomenda – a tal ponto que um homem solteiro pode encomendar um e, com a ajuda de uma agência internacional, driblar leis para se tornar legalmente pai de uma criança sem mãe. Tudo está à venda: os óvulos, os espermatozoides, a gravidez arriscada de uma mulher pobre.

Nesse caso, não é preciso ser sagaz como Chesterton para ver qual é a finalidade da eugenia: dar aos pais aquele que, a seu próprio juízo, é o melhor filho que o dinheiro pode comprar. Antes, um homem e uma mulher casavam, faziam sexo e tinham uma variedade de filhos. Um mais bonito do que outro; um mais inteligente do que outro e, às vezes, um deficiente. Agora os pais já não precisam mais convencer os filhos de que não há favoritos, pois a clínica, avaliando a genética dos embriões, garante que apenas os favoritos irão nascer.

Na Holanda, um problema previsível

O engraçado é que, sem um cônjuge do sexo oposto, a liberdade para escolher o melhor filho possível é ampliada, já que o cliente pode escolher um doador de gametas que, segundo os seus caprichos, tem a melhor genética possível. Como há mais não-ricos do que ricos, há mais heterossexuais do que homossexuais e esperma é mais barato do que óvulo, podemos dizer que a típica pessoa livre para comprar um filho customizado é a mulher de classe média que priorizou a carreira, não engravidou de um namorado, não conseguiu casar (ou permanecer casada) e quer ter um filho de qualquer jeito, antes de ficar estéril (aliás, o mercado de óvulos aproveita esse temor oferecendo congelamento de óvulos pago com parte dos óvulos – mas essa é outra história).

Acaso podemos imaginar que essa mulher chegue à empresa determinada a escolher um baixinho para ser o pai dos seus filhos? Muitos baixinhos se casam e são pais, mas duvido que muitos baixinhos tenham seu esperma selecionado por clientes de clínicas de fertilização. Assim, não é nada difícil imaginar que doador de esperma as clientes têm em mente quando entram em tal clínica: bonito, alto, atlético, cheio do QI e dos diplomas. Se constar a informação de que tem sensibilidade artística ou musical, certamente fará sucesso também.

Digamos então que não será uma surpresa se quase todas as mulheres selecionarem o mesmo doador no cardápio. A nossa cara é personalíssima; não obstante, as mulheres fazem cirurgias plásticas e ficam todas com a mesma cara, que varia segundo a moda. Ora, por mais que se fale em customização, o que o capitalismo promove é uniformização. Todos querem um mesmo objeto de consumo; e, quando o objeto de consumo é um filho, todas as mães vão ter o mesmo artigo da moda em vista. É claro que vão querer o mesmo doador de esperma, e que o mercado não tem motivos para negar.

Assim, no país mais avançado em pautas liberais do mundo, a Holanda, veio à tona “uma calamidade médica” na indústria da fertilidade: segundo The Guardian, as clínicas permitiram que pelo menos 85 doadores de esperma tivessem mais de 25 filhos. O número 25 é importante porque a Holanda tinha uma lei em 1992 fixando esse número como o limite, e em 2018 o limite caiu para dois. A legislação tem o objetivo de impedir o incesto.

Bom, até mesmo na zona rural do século passado, 25 é filho pra burro – só por aí já dava para ver que havia doadores prediletos e, portanto, pressão de mercado. Ao fim e ao cabo, os holandeses, após pretenderem fazer uma seleção artificial melhor do que a natural, criaram um ambiente muito propício para a mais notória causa de deformidades congênitas: o incesto.

Desde o advento do darwinismo, a humanidade vive uma relação paradoxal com a natureza.

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Desde o advento do darwinismo, a humanidade vive uma relação paradoxal com a natureza: por um lado, aprendemos a nos enxergar como animais cujo comportamento pode ser explicado pela luta pela sobrevivência; por outro, reconhecemos tacitamente nossa racionalidade e seguimos tentando superar a natureza.

Esse aprendizado (de que nosso comportamento tem suas causas últimas na luta pela sobrevivência) é o contrário do cristianismo e traz suas próprias complicações. Afinal, se teólogos tiveram de inventar a teodiceia para explicar como Deus permite o mal, o homem prático engendrado pelo darwinismo terá de inventar mil esquemas sociobiológicos para explicar a origem do comportamento altruísta e virtuoso. Se o mundo é uma competição pela sobrevivência, a bondade torna-se difícil de explicar. Os teólogos tinham o problema do mal, os darwinistas têm o problema do bem.

A escolha do darwinismo como chave explicativa do comportamento humano é tão contraintuitiva que deve ser admitida como ideológica. O melhor caso que para ilustrar isso talvez seja o de Marcelino Sanz de Sautuola, o arqueólogo amador que descobriu a arte rupestre no final do século XIX. Ele tratou de estudar as pinturas de boi descobertas por sua filhinha de nove anos no teto da Caverna de Altamira, mas morreu como um charlatão, porque o establishment científico, darwinista, considerava impossível que o homem das cavernas tivesse dotes artísticos. Como verdadeira ideologia, o darwinismo prescreveu os fatos, e as provas foram negadas pelo máximo de tempo possível.

Superar a natureza à maneira darwinista

Na cosmovisão cristã a superação da natureza se dava por meio de realizações morais e intelectuais, que são diferenciais humanos que o colocam no topo da criação. Atualmente, porém, o homem pretende superar a natureza fazendo um trabalho de seleção natural melhor o que dela.

A manipulação da natureza é mais antiga que a História, pois o homem aprendeu a domesticar espécies animais e vegetais antes de aprender a escrever. No entanto, não se tratava de uma superação da natureza pela superação da natureza: tinha-se em vista a conveniência do próprio homem. Com o avanço da técnica, o homem pôde alterar a natureza pelos motivos mais supérfluos: fazer uma flor com mais pétalas, uma fruta sem caroços, um cão dócil. São alterações com um caráter antropocêntrico, pois a flor visa a agradar as vistas humanas; a fruta, o paladar humano; o cão, ser amigo das crianças. Não se trata de uma competição com a natureza, mas da velha domesticação.

No século XIX, porém, as elites anglófonas começaram a querer domesticar o próprio homem, tendo em vistas o darwinismo. A ciência da eugenia deveria criar homens melhores do que o processo de seleção natural. Mas melhores para quem ou para quê? Até hoje a eugenia pretende se apresentar como antropocêntrica, como se se tratasse de dar saúde ao homem. Não obstante, a eugenia em tese impede o nascimento de pessoas doentes e promove o nascimento de pessoas sadias; nada tem a ver com dar saúde às pessoas que existem.

No olho do furacão, o escritor inglês G. K. Chesterton percebeu o que estava em causa: o gerenciamento da reprodução do povo pela elite capitalista. Em vez de reduzir o lucro aumentando salários e dar condições de vida ao operariado, os capitalistas pretendiam fazer com que tivessem menos filhos, e que esses filhos fossem saudáveis o bastante para serem trabalhadores úteis. A lógica da criação de cães de raça (que serviam para caçar, ou farejar, ou proteger etc.) se aplicava à procriação humana. A Alemanha Nazista, que foi mais longe no controle racial da população, fez com que a paternidade liberal da eugenia fosse esquecida.

Uma nova eugenia liberal

Os dias atuais, porém, estamos relembrando muito bem a afinidade da eugenia com o liberalismo. A reprodução assistida deixou de ser apenas um expediente usado por casais com problemas de fertilidade e se tornou uma indústria de produção de bebês sob encomenda – a tal ponto que um homem solteiro pode encomendar um e, com a ajuda de uma agência internacional, driblar leis para se tornar legalmente pai de uma criança sem mãe. Tudo está à venda: os óvulos, os espermatozoides, a gravidez arriscada de uma mulher pobre.

Nesse caso, não é preciso ser sagaz como Chesterton para ver qual é a finalidade da eugenia: dar aos pais aquele que, a seu próprio juízo, é o melhor filho que o dinheiro pode comprar. Antes, um homem e uma mulher casavam, faziam sexo e tinham uma variedade de filhos. Um mais bonito do que outro; um mais inteligente do que outro e, às vezes, um deficiente. Agora os pais já não precisam mais convencer os filhos de que não há favoritos, pois a clínica, avaliando a genética dos embriões, garante que apenas os favoritos irão nascer.

Na Holanda, um problema previsível

O engraçado é que, sem um cônjuge do sexo oposto, a liberdade para escolher o melhor filho possível é ampliada, já que o cliente pode escolher um doador de gametas que, segundo os seus caprichos, tem a melhor genética possível. Como há mais não-ricos do que ricos, há mais heterossexuais do que homossexuais e esperma é mais barato do que óvulo, podemos dizer que a típica pessoa livre para comprar um filho customizado é a mulher de classe média que priorizou a carreira, não engravidou de um namorado, não conseguiu casar (ou permanecer casada) e quer ter um filho de qualquer jeito, antes de ficar estéril (aliás, o mercado de óvulos aproveita esse temor oferecendo congelamento de óvulos pago com parte dos óvulos – mas essa é outra história).

Acaso podemos imaginar que essa mulher chegue à empresa determinada a escolher um baixinho para ser o pai dos seus filhos? Muitos baixinhos se casam e são pais, mas duvido que muitos baixinhos tenham seu esperma selecionado por clientes de clínicas de fertilização. Assim, não é nada difícil imaginar que doador de esperma as clientes têm em mente quando entram em tal clínica: bonito, alto, atlético, cheio do QI e dos diplomas. Se constar a informação de que tem sensibilidade artística ou musical, certamente fará sucesso também.

Digamos então que não será uma surpresa se quase todas as mulheres selecionarem o mesmo doador no cardápio. A nossa cara é personalíssima; não obstante, as mulheres fazem cirurgias plásticas e ficam todas com a mesma cara, que varia segundo a moda. Ora, por mais que se fale em customização, o que o capitalismo promove é uniformização. Todos querem um mesmo objeto de consumo; e, quando o objeto de consumo é um filho, todas as mães vão ter o mesmo artigo da moda em vista. É claro que vão querer o mesmo doador de esperma, e que o mercado não tem motivos para negar.

Assim, no país mais avançado em pautas liberais do mundo, a Holanda, veio à tona “uma calamidade médica” na indústria da fertilidade: segundo The Guardian, as clínicas permitiram que pelo menos 85 doadores de esperma tivessem mais de 25 filhos. O número 25 é importante porque a Holanda tinha uma lei em 1992 fixando esse número como o limite, e em 2018 o limite caiu para dois. A legislação tem o objetivo de impedir o incesto.

Bom, até mesmo na zona rural do século passado, 25 é filho pra burro – só por aí já dava para ver que havia doadores prediletos e, portanto, pressão de mercado. Ao fim e ao cabo, os holandeses, após pretenderem fazer uma seleção artificial melhor do que a natural, criaram um ambiente muito propício para a mais notória causa de deformidades congênitas: o incesto.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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