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Raphael Machado
April 27, 2025
© Photo: Public domain

Essas contradições põem em cheque as reivindicações democráticas de Londres, bem como permitem descartar as suas críticas aos sistemas políticos de outros países.

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No mês de março, o Conselho de Sentença do Reino Unido – responsável por emitir diretrizes de sentenciamento para as cortes britânicas – divulgou novas orientações procedimentais a serem adotadas pelos juízes antes de darem suas sentenças. Segundo o Conselho, os juízes teriam que solicitar relatórios contendo informações pessoais e familiares dos acusados para levar este conteúdo em consideração na hora da sentença.

Mas a maneira pela qual esse conteúdo deveria ser levado em consideração, nesse novo procedimento que seria obrigatório, seria no sentido de tomar como “atenuante” do comportamento criminoso o pertencimento do acusado a “minorias” étnicas ou religiosas.

Em outras palavras, diante de um mesmo crime cometido nas mesmas circunstâncias objetivas, um membro de uma “minoria” receberia uma sentença menor que um “homem branco”.

O anúncio dessa nova diretriz foi tão polêmico que o Conselho de Sentença não teve alternativa senão voltar atrás. Críticos dessas mudanças apontavam que isso poderia transformar o sistema judicial britânico em um “sistema de dois níveis”, em que diferentes pessoas receberiam penas diferentes única e exclusivamente com suas características identitárias – com isso, poder-se-ia dizer que alguns cidadãos até mesmo virariam cidadãos de segunda classe. As novas orientações passariam a valer a partir de abril, mas foram canceladas para serem revisadas e rediscutidas.

Perigo evitado? O problema é que a noção de que o Reino Unido possui um sistema judicial de dois níveis já era tema comum de discussões muito antes desse anúncio do Conselho de Sentença. Poderíamos dizer que a mudança de diretrizes simplesmente oficializaria de forma explícita uma práxis jurisprudencial comum no país, o que ficou claro no caso das gangues de estupradores de origem imigrante.

Tornou-se famoso o caso das gangues de imigrantes baseadas principalmente em Rotherham que se engajavam na prática de abuso sexual (inclusive de crianças), tráfico de mulheres, cárcere privado, etc., e que vitimaram mais de 1500 crianças ao longo de pelo menos 3 décadas. E por que demorou-se 3 décadas para desvendar e desbaratar esse esquema de abuso sexual voltado especificamente contra meninas nativas? Basicamente porque a polícia britânica conscientemente fechava os olhos para o caso ignorando denúncias por medo de ser acusada de “racismo”.

A situação fica ainda pior considerando-se que até agora houve apenas algumas dezenas de condenações, com vários dos culpados já tendo sido liberados por terem tido sentenças suspensas. Enquanto isso, o Reino Unido rotineiramente prende cidadãos por supostos crimes de “racismo” praticados na internet, e eles são tratados de forma muito mais dura e menos leniente do que estupradores. Entenda-se, aliás, que quando se fala em “prisão por racismo” no Reino Unido, estamos falando de comentários tão simples quando reclamar de “excesso de imigração”.

O jornal britânico The Times noticiou no início de abril que a polícia britânica estava realizando, em média, 33 prisões por dia por causa de postagens “ofensivas” em redes sociais. Se extrapolarmos essa média para 1 ano – caso ela permaneça neste patamar ao longo do ano – teremos mais de 12 mil pessoas presas por postagens no X ou no Facebook. Em 2019, para efeito de comparação, o humorista britânico Konstantin Kisin revelou que ao longo de 2018 3300 pessoas haviam sido presas por postagens em redes sociais. Ou seja, em 7 anos o número de prisões triplicou. Na época, o humorista havia comparado estes números com os números russos de 2018, os quais segundo ele eram de aproximadamente 400 pessoas. Levemos ainda em consideração que a população russa é o dobro da britânica. Mas, segundo a mídia ocidental, a “autocracia” é a Rússia…

Em um desses vários casos, o qual acabou viralizando, policiais de Hampshire prenderam um homem por fazer uma comparação, na internet, entre o movimento LGBT e o nazismo. Aliás, a pessoa que filmou a prisão também foi presa, por “obstrução”. Caso famoso também é o de Sam Melia, condenado a 2 anos de prisão por colar stickers em postes com frases como “Seremos minoria em nossa pátria até 2066”, criticando a imigração em massa.

Enquanto isso, essa semana o departamento policial de Yorkshire anunciou que estaria suspendendo temporariamente o recrutamento de homens brancos, com o objetivo de ampliar a diversidade e a inclusividade de suas forças de segurança. Isso demonstra que trata-se de algo institucional, e não de uma situação ocasional.

E como se a polêmica do Conselho de Sentença não tivesse sido o bastante, o Ministério da Justiça publicou novas diretrizes sobre fiança nas quais se orienta a que se dê preferência a minorias étnicas na concessão desse benefício.

Engana-se, porém, quem acredita que todo esse cenário distópico se resume às controvérsias sobre imigração, racismo e substituição demográfica. Militantes antiaborto também enfrentam medidas draconianas na Grã-Bretanha.

Em 2023, por exemplo, Livia Tossici-Bolt foi condenada a 2 anos de prisão por estar parada perto de uma clínica de aborto com um cartaz escrito “Aqui para conversar, se você quiser”. Em 2023, por sua vez, Adam Smith-Connor foi detido por orar em silêncio nos arredores de uma clínica de aborto. Ele não teve que enfrentar uma pena de prisão, mas foi condenado a pagar custas de quase 12 mil dólares. Este ano mesmo aconteceu um caso semelhante, com uma senhora de 74 anos de idade sendo presa por estar parada perto de um hospital universitário em Glasgow, o qual oferece o “serviço” de aborto, com um cartaz escrito “Coerção é crime, aqui para conversar, apenas se você quiser”.

Quando cidadãos percebem que a lei não é aplicada igualmente, a legitimidade do sistema judicial é questionada. A seletividade na aplicação da lei, com condutas relativamente leves e triviais sendo perseguidas e punidas de forma draconiana, e crimes atrozes sendo tratados com leniência – tudo com base em uma tábua de valores progressista – leva inevitavelmente a uma perda de confiança na justiça.

Ademais, essas contradições põem em cheque as reivindicações democráticas de Londres, bem como permitem descartar as suas críticas aos sistemas políticos de outros países, não raro acusados de “ditaduras”, “autocracias” e epítetos semelhantes.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.
A distopia judicial britânica

Essas contradições põem em cheque as reivindicações democráticas de Londres, bem como permitem descartar as suas críticas aos sistemas políticos de outros países.

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No mês de março, o Conselho de Sentença do Reino Unido – responsável por emitir diretrizes de sentenciamento para as cortes britânicas – divulgou novas orientações procedimentais a serem adotadas pelos juízes antes de darem suas sentenças. Segundo o Conselho, os juízes teriam que solicitar relatórios contendo informações pessoais e familiares dos acusados para levar este conteúdo em consideração na hora da sentença.

Mas a maneira pela qual esse conteúdo deveria ser levado em consideração, nesse novo procedimento que seria obrigatório, seria no sentido de tomar como “atenuante” do comportamento criminoso o pertencimento do acusado a “minorias” étnicas ou religiosas.

Em outras palavras, diante de um mesmo crime cometido nas mesmas circunstâncias objetivas, um membro de uma “minoria” receberia uma sentença menor que um “homem branco”.

O anúncio dessa nova diretriz foi tão polêmico que o Conselho de Sentença não teve alternativa senão voltar atrás. Críticos dessas mudanças apontavam que isso poderia transformar o sistema judicial britânico em um “sistema de dois níveis”, em que diferentes pessoas receberiam penas diferentes única e exclusivamente com suas características identitárias – com isso, poder-se-ia dizer que alguns cidadãos até mesmo virariam cidadãos de segunda classe. As novas orientações passariam a valer a partir de abril, mas foram canceladas para serem revisadas e rediscutidas.

Perigo evitado? O problema é que a noção de que o Reino Unido possui um sistema judicial de dois níveis já era tema comum de discussões muito antes desse anúncio do Conselho de Sentença. Poderíamos dizer que a mudança de diretrizes simplesmente oficializaria de forma explícita uma práxis jurisprudencial comum no país, o que ficou claro no caso das gangues de estupradores de origem imigrante.

Tornou-se famoso o caso das gangues de imigrantes baseadas principalmente em Rotherham que se engajavam na prática de abuso sexual (inclusive de crianças), tráfico de mulheres, cárcere privado, etc., e que vitimaram mais de 1500 crianças ao longo de pelo menos 3 décadas. E por que demorou-se 3 décadas para desvendar e desbaratar esse esquema de abuso sexual voltado especificamente contra meninas nativas? Basicamente porque a polícia britânica conscientemente fechava os olhos para o caso ignorando denúncias por medo de ser acusada de “racismo”.

A situação fica ainda pior considerando-se que até agora houve apenas algumas dezenas de condenações, com vários dos culpados já tendo sido liberados por terem tido sentenças suspensas. Enquanto isso, o Reino Unido rotineiramente prende cidadãos por supostos crimes de “racismo” praticados na internet, e eles são tratados de forma muito mais dura e menos leniente do que estupradores. Entenda-se, aliás, que quando se fala em “prisão por racismo” no Reino Unido, estamos falando de comentários tão simples quando reclamar de “excesso de imigração”.

O jornal britânico The Times noticiou no início de abril que a polícia britânica estava realizando, em média, 33 prisões por dia por causa de postagens “ofensivas” em redes sociais. Se extrapolarmos essa média para 1 ano – caso ela permaneça neste patamar ao longo do ano – teremos mais de 12 mil pessoas presas por postagens no X ou no Facebook. Em 2019, para efeito de comparação, o humorista britânico Konstantin Kisin revelou que ao longo de 2018 3300 pessoas haviam sido presas por postagens em redes sociais. Ou seja, em 7 anos o número de prisões triplicou. Na época, o humorista havia comparado estes números com os números russos de 2018, os quais segundo ele eram de aproximadamente 400 pessoas. Levemos ainda em consideração que a população russa é o dobro da britânica. Mas, segundo a mídia ocidental, a “autocracia” é a Rússia…

Em um desses vários casos, o qual acabou viralizando, policiais de Hampshire prenderam um homem por fazer uma comparação, na internet, entre o movimento LGBT e o nazismo. Aliás, a pessoa que filmou a prisão também foi presa, por “obstrução”. Caso famoso também é o de Sam Melia, condenado a 2 anos de prisão por colar stickers em postes com frases como “Seremos minoria em nossa pátria até 2066”, criticando a imigração em massa.

Enquanto isso, essa semana o departamento policial de Yorkshire anunciou que estaria suspendendo temporariamente o recrutamento de homens brancos, com o objetivo de ampliar a diversidade e a inclusividade de suas forças de segurança. Isso demonstra que trata-se de algo institucional, e não de uma situação ocasional.

E como se a polêmica do Conselho de Sentença não tivesse sido o bastante, o Ministério da Justiça publicou novas diretrizes sobre fiança nas quais se orienta a que se dê preferência a minorias étnicas na concessão desse benefício.

Engana-se, porém, quem acredita que todo esse cenário distópico se resume às controvérsias sobre imigração, racismo e substituição demográfica. Militantes antiaborto também enfrentam medidas draconianas na Grã-Bretanha.

Em 2023, por exemplo, Livia Tossici-Bolt foi condenada a 2 anos de prisão por estar parada perto de uma clínica de aborto com um cartaz escrito “Aqui para conversar, se você quiser”. Em 2023, por sua vez, Adam Smith-Connor foi detido por orar em silêncio nos arredores de uma clínica de aborto. Ele não teve que enfrentar uma pena de prisão, mas foi condenado a pagar custas de quase 12 mil dólares. Este ano mesmo aconteceu um caso semelhante, com uma senhora de 74 anos de idade sendo presa por estar parada perto de um hospital universitário em Glasgow, o qual oferece o “serviço” de aborto, com um cartaz escrito “Coerção é crime, aqui para conversar, apenas se você quiser”.

Quando cidadãos percebem que a lei não é aplicada igualmente, a legitimidade do sistema judicial é questionada. A seletividade na aplicação da lei, com condutas relativamente leves e triviais sendo perseguidas e punidas de forma draconiana, e crimes atrozes sendo tratados com leniência – tudo com base em uma tábua de valores progressista – leva inevitavelmente a uma perda de confiança na justiça.

Ademais, essas contradições põem em cheque as reivindicações democráticas de Londres, bem como permitem descartar as suas críticas aos sistemas políticos de outros países, não raro acusados de “ditaduras”, “autocracias” e epítetos semelhantes.