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Karl Popper provavelmente foi o filósofo mais influente do século XX: ele reinou na ciência e na política. Em cursos de filosofia, ele costuma ser lembrado por sua epistemologia, que pretende dar os critérios para diferenciar ciência de pseudociência – categoria na qual foi posto o marxismo. Sua contribuição política, porém, se agiganta diante da científica. Com A sociedade aberta e seus inimigos, Popper lançou as balizas da democracia no pós-guerra.
O livro saiu em 1945, com apoio do aristocrata liberal Friedrich von Hayek. Karl Popper era um cristão novo (luterano) austríaco pobre, que a duras penas conseguiu fugir de Hitler e foi parar na Nova Zelândia. Era um ex-marxista que se aproximou dos liberais em Viena. Em 1945, portanto, ele tinha um calhamaço que explicava por que a democracia (a “sociedade aberta”) era superior ao comunismo e ao fascismo. Tanto no âmbito epistemológico quanto no político, Popper tinha classificações binárias. Em epistemologia, ou bem uma teroia era científica, ou pseudocientífica. Em política, ou bem uma sociedade era aberta, ou era fechada. A democracia seria a sociedade aberta; a sociedade fechada englobaria igualmente o comunismo, o fascismo ou qualquer outro regime político inspirado em Hegel ou Platão.
A teoria política de Popper está baseada em sua visão epistemológica. Para ele, é impossível provar que uma teoria científica é verdadeira; é possível apenas provar que ela está errada. Assim, toda a ciência é provisória; ela vale enquanto ninguém prova que está errada. Popper não pretende que a ciência descubra a verdade, mas sim que se afaste gradualmente do erro, com as teorias científicas sendo gradualmente trocadas por outras melhores.
Popper olha para a política como um cientista; e, com seu igualitarismo herdado da criação luterana, enxerga todo cidadão como um cidadão-cientista, assim como ele. A sociedade é pensada não como um corpo no qual se decide livre e arbitrariamente o bem comum, mas sim como um grande laboratório de políticas públicas. Por isso, o importante é manter a sociedade sempre aberta a mudanças, para que um sistema falho possa ser derrubado e trocado sempre por outro melhor. Na utopia de Popper, os políticos se vangloriariam não dos seus acertos (pois não existe tal coisa), mas sim dos erros que descobriram em suas próprias políticas.
Nessa utopia liberal, a liberdade de expressão tem uma função bastante específica: possibilitar o surgimento de novas teorias científicas e sociais. Cabe aos cidadãos lê-las e rejeitá-las caso sejam falsas. O argumento é bem milliano: as ideias falsas devem circular e sua falsidade deve ser exposta, valendo-se da mesma liberdade de expressão. O oposto desse embate racional proposto por Popper é o embate físico. Assim, a liberdade de expressão não pode ser usada para incitar violência – e as revoluções da primeira metade do século XX eram entendidas como violentas. A revolução sexual, embora não tenha sido aventada por Popper, é uma revolução legítima do ponto de vista popperiano: não se usa da força. Já a revolução comunista é ilegítima porque usa da força.
Para Popper, o uso da violência é o oposto do uso da razão, e numa democracia as questões só devem ser decididas por meio do debate racional.
Este mês, uma controvérsia nos Estados Unidos parece ter tocado num ponto nevrálgico do consenso popperiano do pós-guerra – no qual se pode falar quase tudo e não se pode fazer quase nada.
O diretor de um grande plano de saúde, Brian Thompson da UnitedHealthcare, foi assassinado por Luigi Mangione, um rapaz bem nascido e bem sucedido, que em seu sucinto manifesto ofereceu o seguinte arrazoado:
“Um lembrete: os EUA têm o sistema de saúde mais caro do mundo, mas ainda assim estamos em torno do quadragésimo segundo lugar em expectativa de vida. A United é a maior empresa [ilegível] do país em capitalização de mercado, ficando atrás só da Apple, Google, Walmart. Ela só fez crescer, mas e a nossa expectativa de vida? Não, a realidade é que esses [ilegível] simplesmente ficaram poderosos demais, e continuam a abusar do nosso país por um lucro imenso porque o público estadunidense permitiu que se safassem. Por óbvio, o problema é mais complexo, mas não tenho espaço nem, francamente, tenho a pretensão de ser a pessoa mais qualificada para expor o argumento inteiro. Mas muitos iluminaram a corrupção e a ganância (e.g.: Rosenthal, Moore), há décadas e os problemas simplesmente permanecem. A esta altura, não é mais uma questão de consciência, mas, claramente, de um jogo de poder. É evidente que sou o primeiro a confrontá-lo com esta honestidade brutal.”
Ao que parece, a pessoa de Brian Thompson foi escolhida porque ele já fora criticado antes, numa carta aberta da American Hospital Association, por planejar negar atendimentos na emergência. Além disso, com Thompson, a empresa começou a usar inteligência artificial para negar atendimentos. Este ano, essa empresa, junto com outras que atendem o Medicare, receberam atenção de uma subcomissão do Senado em virtude de suas negativas de atendimentos.
Se o esquema popperiano funcionasse, o sistema de saúde dos EUA já teria caído há muito. O problema ignorado por todo o liberalismo democrático do pós-guerra é a força do dinheiro. Para o bem ou para o mal, a ação de Mangione nos lembra aquilo que era evidente quando o espectro do comunismo rondava a Europa: que os muito ricos estão sujeitos à força bruta.