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Em julho, veio à tona a revelação de que o governo dos Estados Unidos espionou e monitorou o presidente Lula durante ao menos 53 anos e suas agências produziram no mínimo 819 documentos sobre suas atividades. O período vai desde 1966, quando começava a surgir como uma liderança sindical, até 2019, enquanto ainda estava preso.
Esses arquivos foram obtidos pela equipe jurídica de Fernando Morais, biógrafo de Lula. A maior parte dos documentos (613, totalizando mais de 2.000 páginas) pertence à CIA.
A revelação causou uma onda de indignação entre setores da esquerda brasileira.
Embora o presidente brasileiro e o governo não tenham se manifestado publicamente, uma fonte de dentro do Palácio do Planalto me disse que esse caso é “muito grave”.
A presidenta do Partido dos Trabalhadores (PT), fundado e liderado extra-oficialmente por Lula, Gleisi Hoffmann, denunciou o caso de espionagem de maneira contundente.
Nas redes sociais, a também deputada criticou o fato de que os EUA monitoram a “defesa, as relações internacionais, a produção de petróleo e sabe-se lá o que mais” do Brasil. Ela ainda rotulou o episódio como “uma inaceitável violência contra um cidadão brasileiro” e uma “afronta à soberania nacional”.
“Os EUA nos veem como alguém que está subordinado aos seus interesses”, disse o jornalista mainstream Reinaldo Azevedo. “O Brasil é um dos articuladores do chamado Sul Global, que os EUA combatem”, completou.
A revelação da espionagem americana a Lula pode afetar a imagem dos Estados Unidos em determinados setores da sociedade brasileira que historicamente sempre foram críticos ao regime norte-americano, particularmente a esquerda. Essa é a avaliação de Rafael Ioris, professor de História e Política na Universidade de Denver.
“Na direita bolsonarista, por outro lado, essa revelação reforça a imagem que se tem dos EUA como um país que deve pautar os desígnios do Brasil”, uma vez que Lula é o principal inimigo desse setor.
Historicamente, a opinião das classes médias e das elites brasileiras, como em toda a América Latina em geral, sobre os EUA sempre foi positiva, explica Ioris. Principalmente devido à lenda do “American way of life”, à sociedade de consumo americana e à sua indústria cultural.
Em maio deste ano, foi divulgado o relatório “Democracy Perception Index 2024” (Latana/Alliance of Democracies), que apresenta, entre outros dados, a opinião pública mundial sobre os Estados Unidos. Segundo esse relatório, cerca de 40% dos brasileiros têm uma visão positiva sobre os EUA.
Em termos comparativos, a visão sobre os Estados Unidos é menos positiva no Brasil do que na Venezuela, no Peru e na Colômbia, entre os países da América Latina. Já em comparação com o ano de 2023, os EUA caíram sete pontos no conceito dos brasileiros – uma queda de prestígio menor apenas que entre os mexicanos, que foi de 9%.
Esse índice é muito inferior ao do início da década de 2010. De acordo com o Pew Global Attitudes Project de 2012, entre os anos de 2010 e 2011 a visão positiva sobre os Estados Unidos no Brasil era de 62%.
Dados do Latinobarómetro compilados entre 1996 e 2017 mostram um nível ainda mais elevado de percepção positiva dos EUA no Brasil. O percentual mais baixo, de acordo com o seu relatório, foi em 1997, quando 47% dos brasileiros tinham uma opinião “boa” ou “muito boa” sobre o país norte-americano. Em 2013 e 2016 essa percepção positiva alcançou o pico de 74%, para cair para 67% em 2017.
Ioris acredita que essa deterioração da imagem dos EUA se deve, em grande medida, aos acontecimentos políticos que têm corroído o próprio país internamente. “Há uma crise profunda na sociedade norte-americana e, desde a eleição de George W. Bush contra Al Gore, em 2000 [considerada fraudulenta por muitos], tem havido uma erosão na imagem da democracia americana”, diz. “Até mesmo na economia, no desenvolvimento tecnológico e na área da cultura houve mudanças na percepção das pessoas pelo mundo, porque há uma deterioração geral. Há uma erosão da imagem dos EUA desde a guerra fria”.
De fato, a Democracy Perception Index 2024 aponta que os EUA perderam prestígio na maioria esmagadora dos países do mundo. Na Indonésia, por exemplo, o índice de percepção positiva sobre os EUA caiu 27 pontos desde o ano passado. Na Malásia, a queda foi de 24%, na Turquia de 22% e no Marrocos e na Suíça foi de 20%.
Carla Holand Mello, mestra em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, avalia que a relação entre Brasil e Estados Unidos tem sido muito oscilante nos últimos anos. “O quase alinhamento automático e a política externa de ‘balcão de negócios’ de Bolsonaro foi um período parecido com outros anteriores quando a democracia brasileira se viu abalada, como por exemplo nos governos Eurico Gaspar Dutra e Castelo Branco”, afirma.
“Pelo lado do governo Lula, volta-se a trilhar uma política exterior para com os EUA muito mais assertiva e em busca do interesse nacional. Importante frisar que nos dois governos houve visitas oficiais e encontros com os presidentes norte-americanos”, adiciona.
Os dois analistas avaliam que uma vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais americanas deste ano reforçaria a direita bolsonarista brasileira e sua visão positiva sobre os EUA. Ioris acredita que uma vitória de Kamala Harris, por outro lado, poderia facilitar um melhor relacionamento de Lula com o governo dos EUA, “mas tentando manter essa equidistância que ele tem mantido e que lhe permite também buscar seus interesses com outros parceiros”.
A vitória de Harris poderia, contudo, acentuar a percepção negativa da esquerda brasileira sobre os EUA caso ela adote a linha tradicional dos democratas de maior intervencionismo no Oriente Médio, segundo Carla. Contudo, por ser uma mulher advinda de grupos étnicos minoritários e por substituir uma “liderança enfraquecida e cansada” como é o presidente Joe Biden, Harris poderia projetar uma visão positiva para os mesmos grupos.