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February 16, 2024
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Em resposta à decadência do Ocidente, emergiu um novo ator geopolítico – e potente, porém contraditório. Que grupos de países o compõem? Como cooperam ou divergem? Por que um projeto de desdolarização, energia e paz pode uni-lo?

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Em janeiro de 2023, um repórter do Yomiuri Shimbun pediu à secretária de Comunicação do Ministério das Relações Exteriores do Japão, Hikariko Ono, uma definição do termo “Sul Global”. “O governo do Japão não tem uma definição precisa do termo Sul Global”, ela respondeu, e completou: “entendo que, em geral, se refere aos países emergentes e em desenvolvimento” (Ministério de Relações Exteriores do Japão, 2023a).

O governo japonês se esforçou para encontrar uma avaliação mais precisa do Sul Global, a qual tentou apresentar no Diplomatic Bluebook 2023. Em uma longa seção sobre a ideia do Sul Global, as autoridades japonesas reconhecem que o antigo Terceiro Mundo parece ter desenvolvido um novo estado de espírito. Quando os países do Norte Global, liderados pelos Estados Unidos, exigiram que os países do Sul Global adotassem a posição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre a guerra na Ucrânia (ou seja, isolar a Rússia), eles se recusaram, acusando o Ocidente de “dois pesos e duas medidas”, uma vez que, como observa o Ministério das Relações Exteriores do Japão, os EUA justificam suas próprias guerras enquanto critica as guerras dos outros. À luz desse novo clima no Sul Global, a chancelaria japonesa declarou a necessidade de uma nova atitude com “uma abordagem inclusiva que supere as diferenças de valores e interesses”; como escreveu o ministro da pasta, Yoshimasa Hayashi, no prefácio do relatório: “O mundo está agora em um momento decisivo da história” (Ministério das Relações Exteriores do Japão, 2023b).

Esse ponto de inflexão é exemplificado pelo fato de que poucos Estados do Sul Global estão dispostos a participar do isolamento da Rússia, recusando-se, por exemplo, a apoiar as resoluções ocidentais na Assembleia Geral das Nações Unidas. Nem todos os países que se recusaram a se juntar ao Ocidente em sua cruzada contra a Rússia são “antiocidentais” em um sentido político; muitos deles são motivados por questões práticas, como os preços mais baixos da energia na Rússia. Seja porque estão fartos de serem pressionados pelo Ocidente, seja porque veem oportunidades econômicas em seu relacionamento com a Rússia; cada vez mais os países da África, Ásia e América Latina se recusam a capitular diante da pressão de Washington para romper os laços com a Rússia. Foi essa recusa e evasão que levou o presidente da França, Emmanuel Macron (2023), a admitir que estava “muito impressionado com o quanto estamos perdendo a confiança do Sul Global”.

Em uma mesa de debate em 18 de fevereiro de 2023, na Conferência de Segurança de Munique, três líderes da África, da América Latina e da Ásia desenvolveram o argumento sobre por que estão insatisfeitos com a guerra na Ucrânia e com a campanha que os pressiona a romper laços com a Rússia. Como disse a primeira-ministra da Namíbia, Saara Kuugongelwa-Amadhila: “Estamos promovendo uma resolução pacífica do conflito [na Ucrânia] para que o mundo inteiro e todos os recursos do mundo possam se concentrar na melhoria das condições [de vida] dos povos em todo o mundo, em vez de serem gastos na aquisição de armas, na morte de pessoas e na criação de hostilidades”. Quando lhe perguntaram por que a Namíbia se absteve na votação das Nações Unidas sobre a guerra, Kuugongelwa-Amadhila disse: “Nosso foco é resolver o problema (…) e não transferir a culpa”. O dinheiro usado para comprar armas, disse ela, “seria melhor utilizado para promover o desenvolvimento na Ucrânia, na África, na Ásia, em outros lugares, e na própria Europa, onde muitas pessoas estão passando por dificuldades” (Conselho de Segurança de Munique, 2023).

Uma série de relatórios publicados pelas principais instituições financeiras ocidentais fazem eco ao desconforto de Macron sobre o declínio da credibilidade do Ocidente no Sul Global. A BlackRock observa que estamos entrando em “um mundo fragmentado com blocos concorrentes”, enquanto o Credit Suisse aponta para as “fraturas profundas e persistentes” que se abriram na ordem mundial (BlackRock Investment Institute, 2023, p. 13; Credit Suisse, 2023, p. 14). Em sua avaliação, o Credit Suisse descreve com precisão essas “fraturas”: o Ocidente global (países desenvolvidos ocidentais e aliados) se afastou do Oriente global (China, Rússia e aliados) em termos de interesses estratégicos centrais, enquanto o Sul global (Brasil, Rússia, Índia, China e a maioria dos países em desenvolvimento) está se reorganizando para buscar seus próprios interesses” (Credit Suisse, 2023, p. 14).

Para entender essas grandes mudanças que estão ocorrendo no mundo e a perplexidade do Norte Global com o novo clima no Sul Global, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social produziu o dossiê n. 72, A agitação da ordem global, com base na pesquisa realizada com a Global South Insights e em nosso documento de trabalho produzido em colaboração, Hiper-Imperialismo: uma nova fase perigosa e decadente (janeiro de 2024).1

Sobre os termos Sul Global e Norte Global

A Organização das Nações Unidas (ONU) é formada por 49 países do Norte Global e 145 países do Sul Global. Neste dossiê, usamos os termos “anéis” para descrever o Norte Global e “grupos” para descrever o Sul Global, com base nas representações das figuras a seguir. Os anéis do Norte Global são organizados em torno dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos no centro, sendo que cada anel que circunda esse centro, ou núcleo interno, é composto por Estados do Norte Global que, por diferentes motivos, não estão no núcleo interno. Esses anéis não sugerem nenhuma fragmentação do Norte Global, que opera como um bloco. O Sul Global, por sua vez, não é um bloco, mas um projeto emergente formado por diferentes grupos, cada um com sua própria lógica, como explicaremos a seguir.

O Norte Global

A guerra na Ucrânia esclareceu e acelerou certas mudanças geopolíticas. Por um lado, um grupo de países que segue a orientação dos Estados Unidos reagiu à entrada das forças russas na Ucrânia como um bloco militar, econômico e político integrado. Esses países participam de determinadas plataformas, das quais a Otan e o Grupo dos Sete Países (G7) são as mais significativas. Isso reflete uma dinâmica que vem ocorrendo desde a queda da União Soviética em 1991, na qual a Otan e o G7 agem juntos para conduzir uma agenda amplamente definida pelos Estados Unidos, com a Europa e o Japão como potências secundárias na aliança.

Nas últimas décadas, as contradições entre a Otan e os países do G7 foram amenizadas e ficaram em segundo plano. Apesar das diferenças secundárias entre as posições e capacidades militares, econômicas e políticas desses países (como a discordância entre os EUA, o Reino Unido e a França sobre quem exportaria submarinos para a Austrália em 2021), o Norte Global pode ser melhor entendido como um bloco que está disposto a se unir em torno de questões centrais (Krause-Jackson et al., 2021; Prashad, 2021).

O intelectual egípcio Samir Amin escreveu, em 1980, sobre a “consolidação gradual da zona central do sistema capitalista mundial (Europa, América do Norte, Austrália)”. Logo depois, Amin começou a usar o termo Tríade para se referir a essa “zona central” de potências imperialistas que surgiu após a Segunda Guerra Mundial (Amin, 1980, p. 104; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023). Ele argumentou que as classes dominantes da Europa e do Japão haviam subordinado seus próprios interesses nacionais ao que o governo dos Estados Unidos começou a chamar de “interesse comum”. Com base na concepção de Amin, organizamos a Tríade em quatro anéis, com modificações que refletem as tendências atuais das relações internacionais e regionais.

Esses quatro anéis são:
  1. O núcleo interno dos Estados colonizadores anglo-americanos imperialistas liderados pelos EUA, formado por Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Reino Unido (todos fazem parte do Five Eyes Intelligence Oversight and Review Council [Conselho de Revisão e Supervisão de Inteligência dos Cinco Olhos], uma rede de agências de inteligência vinculadas por acordos não divulgados), além de Israel. Esses países – enraizados em formas de supremacia branca – são os mais avançados nas áreas militar, econômica e política, com os Estados Unidos mantendo o domínio sobre o grupo.
  2. A camada seguinte é composta pelas nove principais potências imperialistas europeias: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França,  Holanda, Itália, Noruega e Suécia. Todos esses países são membros da rede de espionagem “Quatorze Olhos” (formalmente conhecida como Sigint Seniors Europe), e todos são membros da Otan (com a adesão da Suécia praticamente garantida). Esses poderosos países europeus, no entanto, subordinam seus interesses nacionais ao núcleo interno, operando quase como Estados vassalos. Veja o caso da Alemanha, que – apesar de ter uma das maiores economias do mundo e dominar a União Europeia –, ainda assim enfraqueceu sua capacidade de cuidar de seus cidadãos desde o início da guerra na Ucrânia, em 2022, para não contestar a hegemonia dos EUA sobre a política externa europeia. Como descreveu o economista Michael Hudson, essa é “a terceira vez em um século que os Estados Unidos derrotam a Alemanha” (Hudson, 2022).
  3. O terceiro anel é formado pelo Japão e por potências europeias secundárias, como Áustria, Finlândia, Grécia, Irlanda, Portugal e Suíça. Embora leais aos Estados Unidos, esses países não têm tanta influência na ordem mundial quanto as potências imperialistas europeias, com base em suas capacidades militares, econômicas e políticas. Alguns deles, como Portugal, Finlândia e Islândia, fazem parte da Otan, mas são menos importantes para a estratégia militar dos EUA. No caso de Portugal, por exemplo, apesar de ser uma antiga potência colonial, seu PIB relativamente menor é um fator de exclusão do círculo de potências europeias secundárias.
  4. O quarto anel externo é composto por dezenove países do antigo Bloco Oriental. Esses países, que não eram potências coloniais, foram atraídos para o bloco imperialista na era pós-Guerra Fria, principalmente por meio da subordinação econômica e da expansão da Otan no leste. Alguns desses países são governados por regimes de direita pró-Otan (por exemplo, Polônia, Ucrânia e Estônia), que desempenham um papel de linha de frente nos esforços do Ocidente para conter a Rússia. Outros tentam manter distância da Otan (como a Sérvia), embora a pressão ocidental muitas vezes não lhes dê muita escolha.

Em 1945, os EUA começaram a consolidar sua hegemonia sobre os países do Norte Global por meio de três eixos principais:

  1. O domínio militar dos Estados Unidos na Europa por meio da Otan e a expansão das bases militares dos EUA nas potências do eixo derrotadas (Alemanha, Itália e Japão).
  2. Integração econômica e dependência dos Estados Unidos por parte do Japão, da Europa Ocidental e dos Estados colonizadores anglo-americanos. Isso começou com o Plano Marshall (1948) na Europa e no início da ocupação militar do Japão (1945-1952).
  3. A subordinação política das elites dos Estados colonizadores europeus, japoneses e brancos à estrutura de elite dos EUA, selecionando quais partidos políticos teriam permissão para estar no poder. Isso foi realizado por meio da criação de uma elite global pró-EUA, por exemplo, abrindo as universidades dos EUA para estudantes de elite dessas partes do mundo e formando um conjunto de redes (como a Reunião de Bilderberg em 1954) que buscavam criar um entendimento comum do mundo moldado pelos Estados Unidos (Prashad, 2020).

Além da subordinação do Norte Global aos Estados Unidos ao longo desses três eixos – que exigiu muito esforço e luta para ser alcançada –, três outros fatores são fundamentais para entender tanto o conceito de Norte Global quanto a lógica dos quatro anéis em que dividimos esses países.

  • Uma história compartilhada de brutalidade. O termo Norte Global não é um termo geográfico neutro. De fato, ele decididamente não é geográfico, dada a inclusão de países como a Austrália e a Nova Zelândia em seu núcleo interno. Em vez disso, o termo Norte Global é sinônimo de outros termos, como Ocidente e países avançados. Todas essas são designações educadas para o termo mais adequado: o bloco imperialista. Vale a pena observar que a maioria desses países – sejam eles os liderados pelo núcleo anglo-estadunidense (como Reino Unido e os Estados Unidos); o núcleo europeu (como a Alemanha e a Itália); ou potências europeias secundárias (como Portugal e Áustria) – moldaram o mundo moderno por meio de uma história compartilhada de violência que começou com o tráfico atlântico de pessoas escravizadas e continuou com o uso de bombas nucleares contra os civis em Hiroshima e Nagasaki e o genocídio contínuo dos palestinos. Não existe uma contabilização abrangente das centenas de milhões de pessoas mortas pelo colonialismo. Uma característica central dessa violência é a drenagem da riqueza das regiões colonizadas do mundo para as potências coloniais, que não apenas encheu os cofres dessas potências e pagou pela infraestrutura opulenta existente ainda hoje; ela também moldou o sistema neocolonial que continua a sugar a riqueza dos Estados colonizados muito depois do fim do colonialismo formal.
  • O escoamento da riqueza do Sul para o Norte. Apesar de representarem apenas 14,2% da população mundial, os 49 países do Norte Global respondem por 40,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, com base na Paridade do Poder de Compra (PPC).3. Ao controlar o capital e a produção de matérias-primas, a propriedade intelectual e a ciência e tecnologia – todos parte do legado do colonialismo –, os países do Norte Global continuam garantindo o acúmulo de uma parcela maior da riqueza do planeta. Um exemplo do enorme roubo colonial de riquezas são os quase 45 trilhões de dólares que os britânicos drenaram da Índia entre 1765 e 1938, o que representa quase todo o período de domínio britânico na Índia (1757-1947). Essa riqueza inundou o sistema bancário britânico, possibilitou a acumulação de capital para a industrialização britânica e criou vantagens que perduraram por gerações (Patnaik, 2019). Enquanto isso, a expectativa média de vida diminuiu em 20% entre 1870 e 1921; e a taxa de alfabetização quando a Índia conquistou sua independência em 1947, após 300 anos de colonialismo, era de apenas 12,2% (Hickel; Sullivan, 2023).
    Um artigo recente mostra que, com base em trocas desiguais, 152 trilhões de dólares foram saqueados do Sul Global entre 1960 e 2017. Os autores destacam que, somente em 2017, o Norte Global se apropriou de 2,2 trilhões de dólares em commodities no Sul Global – “o suficiente para acabar com a pobreza extrema 15 vezes” (Hickel et al., 2021).  Imagine se pudéssemos calcular toda a drenagem de riqueza das (antigas) colônias e o impacto social que isso teve em seus sistemas de saúde e educação.
  • Uma condição comum de militarização e inteligência. O papel das redes de inteligência é frequentemente subestimado na avaliação do poder do Norte Global. A categoria de “inteligência” não se trata mais apenas de espionagem do tipo antigo, mas agora inclui vigilância digital e guerra (incluindo ataques cibernéticos à infraestrutura principal). Cada um dos países do Norte Global participa de uma coordenação militar de alto nível e do compartilhamento de inteligência, impulsionado pelo núcleo interno. Quanto mais próximo um país estiver do núcleo interno, mais sincronizado será o nível de inteligência e coordenação militar. Isso não significa que os países dos anéis externos não estejam ligados aos sistemas do núcleo interno, mas apenas que eles não são convidados a entrar no santuário interno dos sistemas de informações e armas. A estrutura dos quatro anéis se reflete nas redes globais de inteligência, como exemplificado pelas distinções entre as redes de inteligência Five, Nine e Fourteen Eyes. A rede de inteligência Five Eyes (composta por cinco dos seis países do núcleo interno, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos – com Israel como um “sexto olho” de fato) trabalha em estreita colaboração, mas mantém uma distinção dos países Nine Eyes (Dinamarca, França, Holanda e Noruega, adicionados aos Five Eyes) e, finalmente, com os países Fourteen Eyes (Bélgica, Alemanha, Itália, Espanha e Suécia, adicionados aos Nine Eyes), que têm acesso a um nível de compartilhamento de inteligência cada vez mais reduzido quanto mais se afastam do núcleo interno.

O Sul Global

Ao contrário do Norte Global, o Sul Global não é um bloco integrado. Os países do Sul Global têm diferentes realidades econômicas, capacidades militares, sistemas políticos e governos, muitas vezes com tradições políticas conflitantes. Embora vários desses países compartilhem certas características e interesses, o conceito de Sul Global não é definido por seus pontos em comum, mas por um conjunto de outros fatores. No entanto, esses países compartilham o fato de que:

  • são ex-colônias e semicolônias que foram submetidas a 500 anos de humilhação;
  • em alguns casos, têm e buscam projetos socialistas, pelos quais foram punidos pelo bloco imperialista;
  • eles são, por diversos motivos, vítimas da invasão imperialista por meio de força extraeconômica, como golpes e sanções;
  • muitas vezes, uniram-se em torno de vários interesses comuns, como buscar o alívio da dívida, estabelecer seu direito de construir uma democracia econômica e acessar medidas globais de saúde, incluindo vacinas durante a pandemia da Covid-19.

Apesar desses pontos em comum, seria um exagero chamá-los – como fizemos com o Norte Global – de bloco. Em vez disso, pensamos no Sul Global como sendo composto por seis grupos com relações interligadas (bem como disputas antagônicas entre alguns deles). Esses agrupamentos são:

  1. Estados socialistas independentes. Esse grupo inclui seis países (China, Vietnã, Venezuela, Laos, República Democrática da Coreia e Cuba) que continuam comprometidos com a trajetória socialista, com todos os seus complexos ziguezagues. Desde 2016, a China, um dos principais membros do grupo, tem o maior PIB (PPC) do mundo e uma economia quase três vezes maior do que a da Índia (um país com uma população comparável).4 . O povo chinês realizou a maior façanha dos tempos modernos em termos de desenvolvimento humano, tirando 800 milhões de pessoas da pobreza (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2021).
  2. Estados em busca de soberania. Esse grupo é definido por Estados que, mais recentemente e apesar das muitas diferenças internas entre eles, tomaram medidas para afirmar sua soberania, mas não estabeleceram um processo socialista formal. Muitos desses países, como a Eritreia e o Mali, fazem parte do Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU, formado em julho de 2021 sob a liderança do governo venezuelano. O Ocidente, por sua vez, puniu essa postura por meio de uma guerra híbrida extrema.5. A Rússia, um caso especial nesse grupo, é o principal alvo da mudança de regime e de medidas coercitivas que buscam desmembrá-la e desnuclearizá-la.
  3. Estados atualmente progressistas. As sociedades desses países foram moldadas por movimentos de libertação nacional – como a luta contra o apartheid na África do Sul – e por movimentos contra ditaduras – como no Brasil – cujo impacto marcou profundamente suas culturas políticas. Apesar das limitações dos governos desse grupo, de suas graves contradições internas e das dificuldades de se emanciparem do sistema capitalista global, eles não se acovardaram diante da interferência dos EUA. No entanto, nenhum desses países se beneficiou de uma revolução socialista que poderia ter enfraquecido sua burguesia nacional por meio de uma reforma agrária substancial ou da socialização de setores avançados da economia, por exemplo.
  4. Novos Estados não alinhados. Esses países, com PIBs crescentes, estão superando sua dependência do Ocidente. O tamanho e a escala de suas economias lhes deram certa independência para buscar interesses econômicos nacionais sem avançar ativamente na soberania política. Eles perceberam que o confisco de reservas estrangeiras pelos EUA e o uso de sanções contra pelo menos 31,5% da população mundial se tornaram ameaças graves para a maioria global e que os Estados Unidos não são mais um mercado de último recurso nem um importante fornecedor de investimento estrangeiro direto.6
  5. O Sul Global Diverso. Esse grupo inclui os 111 países que não possuem uma unidade política, econômica ou militar clara. Eles variam no grau de alinhamento com o Norte Global.
  6. Estados fortemente militarizados pelos EUA. Os dois países que compõem esse grupo – República da Coreia e Filipinas – são efetivamente colônias militares dos Estados Unidos, embora suas populações se esforcem contra as limitações de estarem subordinadas às necessidades militares e de segurança estadunidenses.

Juntos, esses 145 países (incluindo a Palestina como Estado observador) representam 85,8% da população mundial e 59,4% do PIB mundial (PPC).7

Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.Nota de rodapé Como veremos na seção final deste dossiê, esses seis grupos fazem parte de grandes projetos regionais e internacionais (como a Organização de Cooperação de Xangai, a Unasul, o BRICS10 e o G77, respectivamente) que refletem o novo clima no Sul Global – um clima que está mudando em direção ao regionalismo e ao multilateralismo e se afastando do domínio único criado pelo bloco imperialista.

Sobre a ideia dos cinco controles

A avaliação marxista do imperialismo ao longo do século passado foi moldada pelas contribuições teóricas e práticas de Vladimir Lenin, com base na experiência da Revolução Russa. Na obra clássica de Lenin, Imperialismo: estágio superior do capitalismo (1916), ele argumenta que, em seu estágio mais competitivo, o capitalismo avançou para produzir oligopólios em setores importantes – como o financeiro – que entraram em contradição uns com os outros, levando seus Estados a um conflito sobre os mercados das colônias e a confrontos militares diretos entre si. A onda de descolonização formal iniciada após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 – que tinha uma história anterior na América Latina nos anos 1800, mas foi reiniciada com a Revolução Cubana (1959) – criou novas condições para o imperialismo. O recuo territorial das potências imperialistas não foi acompanhado de forma alguma pela perda de seu controle sobre a economia mundial. Ao contrário, eles criaram o que Kwame Nkrumah chamou de neocolonialismo.

Nos últimos anos, no entanto, testemunhamos o lento desgaste do controle do Ocidente sobre a economia mundial, bem como a deslegitimação gradual de toda a estrutura neocolonial. Para entender melhor esse desgaste, adotamos um método que Samir Amin desenvolveu há quase 30 anos para avaliar a natureza do poder imperialista (Amin, 1996).8

Ele argumentou que a estrutura neocolonial não exigia que as corporações transnacionais baseadas no Ocidente possuíssem a maior parte dos ativos do mundo. Em vez disso, ele explicou, o que era necessário era que tivessem controle monopolista sobre muitos dos ativos em setores-chave e garantissem que o beneficiário final desses ativos fosse a Tríade, ou o Norte Global, e suas classes dominantes. Amin identificou cinco formas de controle que estão no centro da estrutura neocolonial:

  • Controle sobre os recursos naturais
  • Controle sobre os fluxos financeiros
  • Controle sobre ciência e tecnologia
  • Controle sobre o poder militar
  • Controle sobre as informações

Em O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento (jul. 2023), argumentamos que o controle do Ocidente sobre os recursos naturais, os fluxos financeiros e a ciência e tecnologia está sendo contestado pela emergência das principais economias do Sul Global: China, Índia, Indonésia, Brasil, Turquia e México, que estavam entre as treze maiores economias do mundo em termos de PIB (PPC) em 2022.9 A impressionante ascensão da China, que saiu da pobreza extrema, foi fundamental para enfraquecer o domínio do Norte Global sobre esses três primeiros controles.

Dois exageros dos Estados Unidos e do bloco imperialista, de meados da década de 1990 até a década de 2010, também contribuíram para enfraquecer esse controle:

  1. As guerras dos EUA, da guerra global contra o terrorismo até as guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia.
  2. superextensão econômica dos EUA, do excesso de crédito no mercado imobiliário dos EUA até a regulamentação frouxa do sistema bancário ocidental.

Essas guerras dos EUA e a Grande Depressão de 2007-2008 provocaram uma crise na liderança do Norte Global no sistema mundial. Foi nesse contexto que o presidente russo, Vladimir Putin, disse na Conferência de Segurança de Munique de 2007 que o mundo não precisa de “um senhor”.10 Começaram a surgir grandes dúvidas em grande parte do Sul Global sobre o papel dos EUA como o comprador de última instância, a âncora do sistema monetário mundial e o estabilizador político da ordem mundial.

Novos desenvolvimentos na China e na Rússia, que estavam ocorrendo ao mesmo tempo que essas guerras dos EUA e o caos no sistema capitalista mundial, começaram a acelerar novas mudanças:

  1. China. Nos últimos anos do governo de Hu Jintao (2003-2013), a liderança da China começou a reavaliar sua dependência do mercado e da liderança política dos EUA. A formação do BRICS em 2009 foi parte dessa nova postura. Essa reavaliação foi então traduzida em uma nova estrutura de políticas sob a liderança de Xi Jinping. Isso incluiu o estabelecimento de alternativas ao mercado e à liderança dos EUA, como a criação de um mercado interno por meio de investimentos de capital em larga escala, a erradicação da pobreza extrema e a construção da Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (mais tarde, Iniciativa do Cinturão e Rota). Além disso, a China começou a usar o processo do BRICS para incentivar a formação de novos sistemas monetários e novas lideranças políticas.
  2. Rússia. No final da primeira década dos anos 2000, o governo russo começou a desfazer os danos que a destruição da União Soviética havia causado ao seu povo. Em primeiro lugar, o governo, liderado por Putin, começou a recuperar o setor de energia dos “oligarcas” e a organizar a base da economia em torno de princípios de autossuficiência, incluindo a manutenção do capital no país e a não permissão de retirada de lucros para o sistema bancário controlado pelo Ocidente. Em segundo lugar, o governo começou a aumentar o papel da Rússia na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep+, que inclui outros 10 países não membros) e a construir seu setor de energia para vender petróleo e gás natural para a Europa em um contexto em que as guerras do Norte Global contra o Iraque e a Líbia e a guerra híbrida contra o Irã, impulsionada por sanções, interferiam nas principais fontes de energia da Europa.

O magnetismo econômico da China e da Rússia – no contexto de uma crise econômica de longo prazo no Norte Global – levou os países da União Europeia a se integrarem mais à Eurásia. Isso ocorreu em dois níveis: os países europeus começaram a depender cada vez mais da energia russa (um terço das necessidades energéticas da Alemanha era atendido pela Rússia, por exemplo) e do investimento e da tecnologia da China (18 países da União Europeia aderiram à Iniciativa do Cinturão e Rota), incluindo Itália, Polônia, Portugal e República Tcheca (Nedopil, 2022). A integração da Europa com a Ásia foi historicamente lógica e necessária e, combinada com a ascensão da China, ameaçou a estrutura unipolar geral do Norte Global, bem como a estrutura neocolonial da economia mundial. Incapazes de reverter essa integração e a ascensão da China, os EUA, ao lado de seus aliados no Norte Global, aceleraram uma guerra híbrida contra a China e a Rússia. As linhas de frente dessa guerra eram inicialmente econômicas (por meio de uma guerra comercial, por exemplo), mas rapidamente começaram a se concentrar em duas áreas: Ucrânia e Taiwan. A guerra na Ucrânia teve duas consequências importantes na ordem mundial: em primeiro lugar, aumentou o custo dos alimentos e do combustível em todo o mundo e, em segundo lugar, houve uma recusa de muitos países em desenvolvimento em se curvar ao Ocidente e à sua postura em relação à guerra. Juntas, essas consequências geraram um novo clima no mundo em desenvolvimento e o surgimento de um novo não alinhamento.

O controle do Norte Global sobre o poder militar e as informações, no entanto, não diminuiu. Em um momento de apatia econômica e fragilidade política, o Norte Global – liderado pelos Estados Unidos – está exercendo o restante de seu poder com grande força e, ao fazê-lo, coloca em risco a existência do planeta. Como mostra nossa pesquisa, os países do Norte Global – especialmente os Estados Unidos – gastam quantias significativas de seus orçamentos com as Forças Armadas, sistemas de construção que ameaçam todos os aspectos da vida humana e desperdiçam a engenhosidade humana para destruir a vida em vez de afirmá-la.

O controle de armas

Incapazes e relutantes em construir um projeto social e político para lidar com os dilemas da humanidade em escala global, os Estados Unidos e seu bloco buscaram uma estratégia para manter seu domínio sobre o planeta. Esse domínio teve início com o colapso da União Soviética e do sistema estatal comunista na Europa Oriental em 1991, bem como o enfraquecimento do Terceiro Mundo por meio da crise da dívida, que começou a se agravar com a inadimplência do México em 1982. Os intelectuais dos Estados Unidos começaram a falar como se esse domínio fosse eterno, com o “fim da história” pronunciado contra qualquer enfrentamento à ordem dos EUA. No entanto, as rachaduras nessa narrativa começaram a se ampliar à medida que o domínio do G7, com os EUA à frente, foi profundamente abalado por seu exagero militar na guerra global contra o terrorismo (especialmente a invasão ilegal do Iraque em 2003) e pela Terceira Grande Depressão, de 2007-2008 (desencadeada pelo colapso dos mercados imobiliários ocidentais).

Na segunda década do século XXI, os Estados Unidos e seus aliados fizeram todos os esforços para reafirmar seu controle sobre o planeta. A guerra da Otan contra a Líbia em 2011 foi uma importante sinalização da política ocidental, que foi um prelúdio para as discussões sobre o uso de uma Otan global como plataforma para avançar a agressão militar ocidental, do Mar do Sul da China ao Caribe. As sanções tentaram disciplinar qualquer um que cruzasse as linhas traçadas pelos Estados Unidos e por seus aliados, bloqueando países do sistema financeiro internacional e, assim, privando populações inteiras do acesso a medicamentos, alimentos e outros bens básicos. (Vale a pena observar que as sanções, que aumentaram 933% nos últimos 20 anos, tornaram-se a forma favorita de intervenção liderada pelos EUA) (Rodrigues, 2023; Departamento do Tesouro dos EUA, 2021). Por fim, o Fundo Monetário Internacional (FMI) retornou com uma agenda de austeridade renovada, que foi aprofundada mesmo durante a pandemia, forçando dezenas de países pobres a pagarem mais aos ricos detentores de títulos do que aos seus próprios sistemas de saúde e educação (Unctad, 2023).11

Em 2018, os Estados Unidos declararam o fim da guerra contra o terrorismo e afirmaram claramente em sua Estratégia Nacional de Defesa que seus principais problemas eram a ascensão da China e da Rússia. O Secretário de Defesa dos EUA, Jim Mattis, falou abertamente sobre a necessidade de impedir a ascensão de “rivais próximos” – China e Rússia – e sugeriu que toda a panóplia de poder dos EUA fosse usada para colocá-los de joelhos (Mattis, 2018).

Os Estados Unidos não só têm centenas de bases militares que circundam a Eurásia, como também têm aliados, da Alemanha ao Japão, que lhes fornecem posições avançadas contra a Rússia e a China. Em 2015 e 2019, respectivamente, a frota naval dos EUA e seus aliados iniciaram exercícios agressivos de “liberdade de navegação” contra a integridade territorial da China (no Mar do Sul da China) e da Rússia (principalmente no Ártico). Essas manobras, bem como a intervenção política dos EUA na Ucrânia em 2014 e o grande acordo de armas dos EUA com Taiwan em 2015, ameaçaram ainda mais a soberania da Rússia e da China. Então, em 2018, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (conhecido pela sigla INF), o que abalou o mapa do controle de armas nucleares. Essa retirada, juntamente com os objetivos declarados dos EUA na Estratégia de Defesa Nacional de 2018, mostrou que os EUA estavam contemplando o uso de “armas nucleares táticas” contra a Rússia e a China.

Até o momento, os aliados dos EUA na região da Ásia-Pacífico, como a Austrália e a República da Coreia, não estão ansiosos para permitir a entrada de armas nucleares intermediárias em seu território, embora essas armas possam ser posicionadas em bases dos EUA em outros lugares, de Guam a Okinawa. É impossível entender a intervenção da Rússia na Ucrânia sem entender esse histórico mais longo de ameaças sofridas por Moscou. Não é despropositado se preocupar com a possibilidade de os Estados Unidos posicionarem suas armas nucleares intermediárias na Ucrânia, independentemente de a Ucrânia entrar ou não para a Otan.12

Para afirmar sua posição de domínio sobre a ordem mundial, os Estados Unidos e seus aliados aumentaram os gastos militares de forma inacreditável. O Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) calculou que, em 2022, os gastos militares dos EUA foram de aproximadamente 877 bilhões de dólares, cerca de 39% dos gastos militares globais estimados (Sipri, 2023). No entanto, como mostra um relatório recente publicado na Monthly Review, esse número está muito subestimado: os gastos militares reais dos EUA estão mais próximos de 1,537 trilhão de dólares – quase o dobro do cálculo do Sipri e dos números oficiais dos EUA (Cernadas, Bellamy-Foster, 2023). Somando-se os gastos estimados para 2022 de outros países da Otan (360 bilhões de dólares) e de todos os aliados militares não pertencentes à Otan, dominados pelos EUA (234 bilhões de dólares), com base em números oficiais, o total de gastos militares do bloco militar liderado pelos EUA chega a 2,13 trilhões de dólares, embora esse valor possa estar abaixo dos gastos reais. Esse cálculo eleva os gastos militares globais em 2022 para 2,87 trilhões de dólares. Em outras palavras, o bloco militar liderado pelos EUA é responsável por 74,3% dos gastos militares mundiais, e os EUA gastam 12,6 vezes mais per capita do que a média mundial (Israel, em segundo lugar, gasta 7,2 vezes mais do que a média mundial per capita, e as outras potências imperialistas gastam de duas a três vezes mais do que a média mundial).13

A China, por sua vez, é responsável por 10% dos gastos militares mundiais (292 bilhões de dólares), e seus gastos militares per capita são 22 vezes menores do que os dos Estados Unidos.14 O medo que se instala sobre os gastos militares chineses não é fundamentado pelos fatos. O que está comprovado por fatos é que a China gasta mais de sua riqueza social em infraestrutura e indústria do que no setor militar. Enquanto isso, os EUA gastam apenas 252 bilhões de dólares em educação, por exemplo, de acordo com o Centre on Budget and Policies Priorities, mas gastam 1,537 trilhão com as Forças Armadas, parte do qual é destinado ao pagamento de suas cerca de 902 bases militares em todo o mundo (Centre on Budget and Policy Priorities, 2023; World Beyond War, 2023).

A única área do mundo que está livre do aparato militar dos EUA é grande parte da Eurásia: China, Índia, Irã e Rússia. Desde 1992, os Estados Unidos sonham em conquistar essa região, inclusive com o uso de poder militar. Em 1997, Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional do presidente dos EUA, Jimmy Carter, advertiu que “potencialmente, o cenário mais perigoso seria uma grande coalizão da China, Rússia e talvez do Irã, uma coalizão ‘anti hegemônica’ unida não por ideologia, mas por queixas complementares”. “Para os Estados Unidos”, escreveu Brzezinski, “o principal prêmio geopolítico é a Eurásia”, que, segundo ele, é “o tabuleiro de xadrez no qual a luta pela primazia global continua a ser jogada” (Brzezinski, 1997). Para evitar esse cenário, Brzezinski e outros alertaram que os EUA deveriam tentar conquistar a China ou a Rússia para isolar a outra e, assim, dominar o “tabuleiro de xadrez” da Eurásia. No entanto, nas últimas décadas, os Estados Unidos fizeram exatamente o oposto, optando por pressionar a China e a Rússia por meio de sua Nova Guerra Fria que, como Brzezinski previu, uniu esses dois países em uma aliança estratégica bilateral e multilateral. Além disso, os dados do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA informam que as Forças Armadas dos EUA foram mobilizadas para 101 países entre 1798 e 2023 (Serviço de Pesquisa do Congresso, 2023). De acordo com o Projeto de Intervenção Militar, entre 1776 e 2019, os EUA realizaram pelo menos 392 intervenções militares em todo o mundo. Metade dessas operações foi realizada entre 1950 e 2019, e 25% delas ocorreram no período pós-Guerra Fria (Kushi; Toft, 2023). Somente em 2022, 317 forças imperialistas foram deslocadas para países do Sul Global e 137 para aliados do Norte Global, em um total de 454 deslocamentos (IISS, 2023).

Talvez a melhor evidência dos planos raciais, políticos, militares e econômicos das potências ocidentais que se manifestaram por meio da Nova Guerra Fria possa ser resumida por uma declaração recente da Otan e da UE:

A Otan e a UE desempenham papéis complementares, coerentes e que se reforçam mutuamente no apoio à paz e à segurança internacionais. Mobilizaremos ainda mais o conjunto coordenado de instrumentos à nossa disposição, sejam eles políticos, econômicos ou militares, para buscar nossos objetivos comuns em benefício de nosso bilhão de cidadãos.

Sobre o surgimento de novas organizações

No último dia da cúpula do BRICS15 em Joanesburgo, África do Sul, os cinco Estados fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)16 deram as boas-vindas a seis novos membros: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU). Embora o novo governo de direita da Argentina, liderado por Javier Milei, tenha se retirado oficialmente da adesão ao BRICS em 29 de dezembro de 2023, os dez países do bloco abrangem agora 45,5% da população mundial, com um PIB global combinado (PPC) de 35,6%. Em comparação, embora os Estados do G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) representem apenas 10% da população mundial, sua participação no PIB global (PPC) é de 30,3%. Enquanto os países que hoje formam o BRICS10 são responsáveis por 44,6% da produção industrial global, seus pares do G7 respondem por apenas 21,6%.17

Certamente, as nações do BRICS, apesar de todas as suas hierarquias e desafios internos, agora representam uma parcela maior do PIB global do que o G7, que continua a se comportar como o poder executivo do mundo. Vinte e três países solicitaram sua adesão antes da reunião da África do Sul (incluindo sete dos 13 países da Opep), embora mais de 40 tenham expressado interesse em participar do BRICS10, incluindo a Indonésia, o sétimo maior país do mundo em termos de PIB (PPC).

É importante mencionar que o BRICS não opera de forma independente das novas formações regionais que visam construir plataformas fora do controle do Ocidente, como a Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe (Celac) e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX, na sigla em inglês). Em vez disso, a participação no BRICS10 tem o potencial de aprimorar o regionalismo para aqueles que já fazem parte desses fóruns regionais.

Por que o BRICS acolheu um grupo de países tão díspares, incluindo duas monarquias? Quando solicitado a refletir sobre o caráter dos novos Estados membros plenos, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva disse: “o que importa não é a pessoa que governa, mas a relevância do país. Não podemos negar a relevância geopolítica do Irã e de outros países que se juntarão ao BRICS”. Essa é a medida de como os países fundadores tomaram a decisão de expandir sua aliança (Boadle, 2023).

No centro do crescimento do BRICS estão pelo menos três questões: controle sobre o fornecimento e as rotas de energia, controle sobre os sistemas financeiros e de desenvolvimento globais e controle sobre as instituições de paz e segurança.

Controle sobre suprimentos e vias de energia

Um BRICS maior criou agora um grupo energético importante. O Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos também são membros da Opep, que, ao lado da Rússia, um dos principais membros da Opep+, responde atualmente por 26,3 milhões de barris de petróleo por dia, pouco menos de 30% da produção diária global de petróleo (Hill; Comstock, 2023). O papel da China na intermediação de um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita em abril permitiu a entrada desses dois países produtores de petróleo no BRICS. O Egito, outro novo país no BRICS10, embora não seja membro da Opep, é, no entanto, um dos maiores produtores de petróleo da África, com uma produção que representa mais de um quarto da produção mundial de petróleo (The Global Economy, 2023). A questão aqui não é apenas a produção de petróleo, mas o estabelecimento de novas rotas globais de energia.

A Iniciativa de Cinturão e Rota, liderada pela China, combinada com o desenvolvimento da Visão 2030 da Arábia Saudita, já criou uma rede de plataformas de petróleo e gás natural no Sul Global, integrada à expansão do Porto Khalifa e às instalações de gás natural em Fujairah e Ruwais (nos Emirados Árabes Unidos). Há uma grande expectativa de que o BRICS10 comece a coordenar sua infraestrutura de energia com outros produtores de energia. Por exemplo, as tensões entre a Rússia e a Arábia Saudita sobre os volumes de petróleo aumentaram este ano, pois a Rússia excedeu sua cota em uma tentativa de compensar as sanções ocidentais impostas a ela como resultado da guerra na Ucrânia. Agora, esses dois países terão outro fórum, fora da Opep+ e com a China na mesa, para criar uma agenda comum sobre energia. Essa plataforma em expansão também ameaça minar o sistema de petrodólares, com mais países – como a Arábia Saudita – planejando vender petróleo para a China em renminbi, ou RMB (os outros dois principais fornecedores de petróleo da China, Iraque e Rússia, já recebem pagamento em RMB).

Controle sobre os sistemas financeiros e de desenvolvimento globais

Tanto as discussões na cúpula do BRICS quanto seu comunicado final destacaram a necessidade de fortalecer uma arquitetura financeira e de desenvolvimento para o mundo que não seja governada pelo triunvirato do Fundo Monetário Internacional (FMI), Wall Street e o dólar estadunidense. Entretanto, o BRICS não busca evitar as instituições de comércio e desenvolvimento globais estabelecidas, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial e o FMI. Por exemplo, na declaração final da cúpula, o BRICS reafirmou a importância do “sistema de comércio multilateral baseado em regras com a Organização Mundial do Comércio em seu núcleo” e pediu “uma Rede de Segurança Financeira Global robusta com um [FMI] baseado em cotas e com recursos adequados em seu centro” (BRICS, 2023). Suas propostas não rompem fundamentalmente com o FMI ou a OMC; em vez disso, oferecem um caminho duplo: primeiro, para que os BRICS exerçam mais controle e direção sobre essas organizações, das quais são membros, mas que foram subornadas a uma agenda ocidental; e, segundo, para que os Estados dos BRICS realizem suas aspirações de construir suas próprias instituições paralelas (como o Novo Banco de Desenvolvimento, ou NBD). O enorme fundo de investimento da Arábia Saudita vale cerca de 1 trilhão de dólares, o que poderia financiar parcialmente o NBD.

Para Cyril Ramaphosa (2023), atual presidente dos BRICS, a agenda do bloco para melhorar “a estabilidade, a confiabilidade e a justiça da arquitetura financeira global” está sendo levada adiante principalmente pelo “uso de moedas locais, acordos financeiros alternativos e sistemas de pagamento alternativos”. O conceito de “moedas locais” refere-se à prática crescente de os países usarem suas próprias moedas para o comércio internacional, em vez de dependerem do dólar. Embora aproximadamente 150 moedas no mundo sejam consideradas de curso legal, os pagamentos internacionais quase sempre dependem do dólar (que, a partir de 2021, passou a representar 40% dos fluxos na rede da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications, ou Swift) (Perez-Saiz, 2023).

Outras moedas desempenham um papel limitado, com o renminbi chinês representando 2,5% dos pagamentos internacionais. No entanto, o surgimento de novas plataformas globais de mensagens, como o Sistema Interbancário de Pagamentos Transfronteiriços da China, Interface Unificada de Pagamentos da Índia, e o Sistema de Mensagens Financeiras (SPFS) da Rússia, bem como os sistemas regionais de moeda digital, prometem aumentar o uso de moedas alternativas. Por exemplo, ativos de criptomoeda forneceram brevemente um caminho em potencial para novos sistemas de negociação antes que suas avaliações de ativos diminuíssem, e o BRICS expandido recentemente aprovou a criação de um grupo de trabalho para estudar uma moeda de referência do bloco.

Após a expansão do BRICS, o NBD disse que também expandirá seus membros e que, como sua Estratégia Geral, 2022-2026 30% de todo o seu financiamento será em moedas locais. Como parte de sua estrutura para um novo sistema de desenvolvimento, sua presidenta, Dilma Rousseff, disse que o NBD não seguirá a política do FMI de impor condições aos países tomadores de empréstimos. “Repudiamos qualquer tipo de condicionalidade”, disse Dilma. “Muitas vezes, um empréstimo é concedido sob a condição de que determinadas políticas sejam executadas. Nós não fazemos isso. Respeitamos as políticas de cada país”.

A entrada da Etiópia e do Irã no BRICS mostra como esses grandes países do Sul Global estão reagindo à política de sanções do Ocidente contra dezenas de países, incluindo dois membros fundadores do BRICS (China e Rússia). Há muito tempo a China mantém relações comerciais com a Etiópia, cuja capital, Adis Abeba, é a sede da União Africana. A inclusão da Etiópia no BRICS garante que esse grande país (com uma população considerável e importantes terras agrícolas) não voltará para a órbita ocidental.

Controle sobre instituições de paz e segurança

Em seu comunicado, as nações do BRICS escrevem sobre a importância de uma “reforma abrangente da ONU, incluindo seu Conselho de Segurança”. Atualmente, o Conselho de Segurança da ONU tem 15 membros, cinco dos quais são permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA). Não há membros permanentes da África, da América Latina ou do país mais populoso do mundo, a Índia. Para reparar essas desigualdades, o BRICS oferece seu apoio às “aspirações legítimas dos países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo o Brasil, a Índia e a África do Sul, de desempenhar um papel mais importante nos assuntos internacionais” (BRICS, 2023, p. 3). A recusa do Ocidente em permitir que esses países tenham um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU apenas fortaleceu seu compromisso com o processo do BRICS e com o aprimoramento de seu papel no G20.

Três grandes plataformas inter-regionais, ainda em estágio embrionário, definem o novo regionalismo e multilateralismo:

  1. BRICS10 (uma expansão da formação do BRIC em 2009), que é em grande parte estratégico, mas também uma potência econômica, tem 17 membros oficiais e vários parceiros não oficiais.
  2. A Organização de Cooperação de Xangai (2001), que foi formada principalmente em torno de questões de segurança na Ásia Central, avançou para conversas sobre desenvolvimento e comércio.
  3. O Group of Friends in Defence of the UN Charter (Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU) (2021), que é sobretudo uma plataforma política, reúne 20 estados membros da ONU que estão enfrentando o peso das sanções ilegais dos EUA, da Argélia ao Zimbábue. Muitos desses países participaram da cúpula do BRICS como convidados e estão ansiosos para participar do bloco expandido como membros plenos.

Não é por acaso que há três países, todos alvos principais de campanhas de pressão do bloco imperialista, que estão em todas essas três organizações: China, Irã e Rússia.

Há vários desafios e oportunidades compartilhados que surgiram no Sul Global e que reuniram muitos de seus países em torno da necessidade de uma estrutura comum para discussão e colaboração. Esses interesses comuns incluem a necessidade de:

  • Multilateralismo e regionalismo centrados na criação de uma cooperação ancorada no Sul Global.
  • Nova modernização que se concentra na construção de economias regionais e continentais que usam moedas locais em vez do dólar para comércio e reservas.
  • Soberania, que cria barreiras à intervenção ocidental. Isso inclui envolvimentos militares e colonialismo digital, que facilitam as intervenções da inteligência dos EUA.
  • Reparações, que implica em negociação coletiva para compensar as armadilhas de dívidas centenárias do Ocidente e o abuso do excesso de orçamento de carbono, bem como seu legado de colonialismo de alcance muito maior.

Mudanças profundas estão ocorrendo no mundo, aceleradas pelas guerras na Ucrânia e pelo genocídio em rápida escalada na Palestina. Essas mudanças são moldadas, por um lado, pela perda de poder econômico do Norte Global ao lado do aumento da militarização e, por outro, pela nova disposição do Sul Global em relação à soberania e ao desenvolvimento econômico. Este dossiê é um exercício preliminar, baseado em pesquisas e análises originais, para dar sentido a essas mudanças e, consequentemente, ao novo clima no Sul Global.

Notas:

Leia nosso relatório completo: Hiper-Imperialismo: uma nova fase perigosa e decadente. Estudos sobre dilemas contemporâneos n. 4, 23 January 2024: https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-sobre-dilemas-contemporaneos-4-hiper-imperialismo.

2 No entanto, há evidências de que, até 1600, pelo menos 56 milhões de indígenas nas Américas pereceram devido à violência colonial e à introdução de patógenos mortais; pelo menos 15,5 milhões de africanos foram capturados e vendidos no tráfico atlântico de escravos; pelo menos 10 milhões de pessoas morreram no Congo entre 1515 e 1865 devido à ganância do colonialismo belga; e, somente entre 1880 e 1920 (uma pequena parte do colonialismo britânico na Índia), pelo menos 165 milhões de indianos morreram em decorrência da violência colonial britânica. Consultar Alexander Koch et al. (2019); Steven J. Micheletti et al. (2020); Adam Hochschild (1999); Fritz Blackwell (2008), Dylan Sullivan; Jason Hickel (2023).

3 Elaboração própria do Global South Insights com base em dados do World Development Indicators (2022) e World Economic Outlook (2022). https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2029/October.

4 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.

5 Para saber mais sobre guerra híbrida, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Crepúsculo: a erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar, dossiê n. 36, 4 jan. 2021, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-35-crepusculo/ e Venezuela e as guerras híbridas na América Latina, dossiê n. 17, 3 de jun. 2019, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-17-venezuela-e-as-guerras-hibridas-na-america-latina/.

6 Elaboração própria da Global South Insights com base em World Population Prospects 2022, Departamento de Economia e Assuntos Sociais, Nações Unidas, 1 jul. 2022, https://population.un.org/wpp/ e What are Sanctions?, Campanha SanctionsKill, set. 2022, https://sanctionskill.org.

7 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.

8 Ver também Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Globalização e sua alternativa: uma entrevista com Samir Amin, caderno n. 1, 29 out. 2018, https://thetricontinental.org/pt-pt/globalizacao-e-sua-alternativa/.

9 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento, dossiê n. 66, 4 jul. 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-66-teoria-do-desenvolvimento/.

10 Vladimir Putin, discurso na Conferência de Munique sobre Política de Segurança: Conferência de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034.

11 Para saber mais sobre a crise da dívida, ler  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Vida ou dívida: o limiar estrangulador do neocolonialismo e a busca por alternativas na África,  dossiê n. 63, 11 abr. 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-63-crise-da-divida-africana/.

12 Para saber mais sobre a Ucrânia, ver: Instituto Tricontinental  de Pesquisa Social, Esta não é uma era de certezas, mas de contradições, carta semanal n. 14. 7 abr. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-ucrania-2/; Estamos em um período de grandes mudanças tectônicas), carta semanal n. 11, 17 mar. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-mudanca-ordem-mundial/Nestes dias de grande tensão, a paz é a prioridade, carta semanal n. 9, 3 mar. 2022https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-ucrania/.

13 Elaboração própria do Global South Insights com base em números ajustados do “SIPRI Military Expenditure Database”, Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri), acesso em: out. 2023, https://www.sipri.org/databases/milex; e Monthly Review.

14Elaboração própria da Global South Insights com base em números ajustados do Sipri e da Monthly Review.

15 Para saber mais sobre a Ucrânia, ver: Instituto Tricontinental  de Pesquisa Social BRICS, ver: BRICS, uma alternativa ao imperialismo? , https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/brics-uma-alternativa-ao-imperialismo/.

16 Para saber mais sobre os BRICS, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. BRICS: Uma alternativa ao imperialismo? 31 ago. 2023. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/brics-uma-alternativa-ao-imperialismo/.

17 Elaboração própria do Global South Insights com base no WPP da ONU, WDI do Banco Mundial e WEO do FMI.


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Publicado originalmente por Retrato do Sul Global, este desconhecido – Outras Palavras

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Retrato do Sul Global, este desconhecido

Em resposta à decadência do Ocidente, emergiu um novo ator geopolítico – e potente, porém contraditório. Que grupos de países o compõem? Como cooperam ou divergem? Por que um projeto de desdolarização, energia e paz pode uni-lo?

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Em janeiro de 2023, um repórter do Yomiuri Shimbun pediu à secretária de Comunicação do Ministério das Relações Exteriores do Japão, Hikariko Ono, uma definição do termo “Sul Global”. “O governo do Japão não tem uma definição precisa do termo Sul Global”, ela respondeu, e completou: “entendo que, em geral, se refere aos países emergentes e em desenvolvimento” (Ministério de Relações Exteriores do Japão, 2023a).

O governo japonês se esforçou para encontrar uma avaliação mais precisa do Sul Global, a qual tentou apresentar no Diplomatic Bluebook 2023. Em uma longa seção sobre a ideia do Sul Global, as autoridades japonesas reconhecem que o antigo Terceiro Mundo parece ter desenvolvido um novo estado de espírito. Quando os países do Norte Global, liderados pelos Estados Unidos, exigiram que os países do Sul Global adotassem a posição da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre a guerra na Ucrânia (ou seja, isolar a Rússia), eles se recusaram, acusando o Ocidente de “dois pesos e duas medidas”, uma vez que, como observa o Ministério das Relações Exteriores do Japão, os EUA justificam suas próprias guerras enquanto critica as guerras dos outros. À luz desse novo clima no Sul Global, a chancelaria japonesa declarou a necessidade de uma nova atitude com “uma abordagem inclusiva que supere as diferenças de valores e interesses”; como escreveu o ministro da pasta, Yoshimasa Hayashi, no prefácio do relatório: “O mundo está agora em um momento decisivo da história” (Ministério das Relações Exteriores do Japão, 2023b).

Esse ponto de inflexão é exemplificado pelo fato de que poucos Estados do Sul Global estão dispostos a participar do isolamento da Rússia, recusando-se, por exemplo, a apoiar as resoluções ocidentais na Assembleia Geral das Nações Unidas. Nem todos os países que se recusaram a se juntar ao Ocidente em sua cruzada contra a Rússia são “antiocidentais” em um sentido político; muitos deles são motivados por questões práticas, como os preços mais baixos da energia na Rússia. Seja porque estão fartos de serem pressionados pelo Ocidente, seja porque veem oportunidades econômicas em seu relacionamento com a Rússia; cada vez mais os países da África, Ásia e América Latina se recusam a capitular diante da pressão de Washington para romper os laços com a Rússia. Foi essa recusa e evasão que levou o presidente da França, Emmanuel Macron (2023), a admitir que estava “muito impressionado com o quanto estamos perdendo a confiança do Sul Global”.

Em uma mesa de debate em 18 de fevereiro de 2023, na Conferência de Segurança de Munique, três líderes da África, da América Latina e da Ásia desenvolveram o argumento sobre por que estão insatisfeitos com a guerra na Ucrânia e com a campanha que os pressiona a romper laços com a Rússia. Como disse a primeira-ministra da Namíbia, Saara Kuugongelwa-Amadhila: “Estamos promovendo uma resolução pacífica do conflito [na Ucrânia] para que o mundo inteiro e todos os recursos do mundo possam se concentrar na melhoria das condições [de vida] dos povos em todo o mundo, em vez de serem gastos na aquisição de armas, na morte de pessoas e na criação de hostilidades”. Quando lhe perguntaram por que a Namíbia se absteve na votação das Nações Unidas sobre a guerra, Kuugongelwa-Amadhila disse: “Nosso foco é resolver o problema (…) e não transferir a culpa”. O dinheiro usado para comprar armas, disse ela, “seria melhor utilizado para promover o desenvolvimento na Ucrânia, na África, na Ásia, em outros lugares, e na própria Europa, onde muitas pessoas estão passando por dificuldades” (Conselho de Segurança de Munique, 2023).

Uma série de relatórios publicados pelas principais instituições financeiras ocidentais fazem eco ao desconforto de Macron sobre o declínio da credibilidade do Ocidente no Sul Global. A BlackRock observa que estamos entrando em “um mundo fragmentado com blocos concorrentes”, enquanto o Credit Suisse aponta para as “fraturas profundas e persistentes” que se abriram na ordem mundial (BlackRock Investment Institute, 2023, p. 13; Credit Suisse, 2023, p. 14). Em sua avaliação, o Credit Suisse descreve com precisão essas “fraturas”: o Ocidente global (países desenvolvidos ocidentais e aliados) se afastou do Oriente global (China, Rússia e aliados) em termos de interesses estratégicos centrais, enquanto o Sul global (Brasil, Rússia, Índia, China e a maioria dos países em desenvolvimento) está se reorganizando para buscar seus próprios interesses” (Credit Suisse, 2023, p. 14).

Para entender essas grandes mudanças que estão ocorrendo no mundo e a perplexidade do Norte Global com o novo clima no Sul Global, o Instituto Tricontinental de Pesquisa Social produziu o dossiê n. 72, A agitação da ordem global, com base na pesquisa realizada com a Global South Insights e em nosso documento de trabalho produzido em colaboração, Hiper-Imperialismo: uma nova fase perigosa e decadente (janeiro de 2024).1

Sobre os termos Sul Global e Norte Global

A Organização das Nações Unidas (ONU) é formada por 49 países do Norte Global e 145 países do Sul Global. Neste dossiê, usamos os termos “anéis” para descrever o Norte Global e “grupos” para descrever o Sul Global, com base nas representações das figuras a seguir. Os anéis do Norte Global são organizados em torno dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos no centro, sendo que cada anel que circunda esse centro, ou núcleo interno, é composto por Estados do Norte Global que, por diferentes motivos, não estão no núcleo interno. Esses anéis não sugerem nenhuma fragmentação do Norte Global, que opera como um bloco. O Sul Global, por sua vez, não é um bloco, mas um projeto emergente formado por diferentes grupos, cada um com sua própria lógica, como explicaremos a seguir.

O Norte Global

A guerra na Ucrânia esclareceu e acelerou certas mudanças geopolíticas. Por um lado, um grupo de países que segue a orientação dos Estados Unidos reagiu à entrada das forças russas na Ucrânia como um bloco militar, econômico e político integrado. Esses países participam de determinadas plataformas, das quais a Otan e o Grupo dos Sete Países (G7) são as mais significativas. Isso reflete uma dinâmica que vem ocorrendo desde a queda da União Soviética em 1991, na qual a Otan e o G7 agem juntos para conduzir uma agenda amplamente definida pelos Estados Unidos, com a Europa e o Japão como potências secundárias na aliança.

Nas últimas décadas, as contradições entre a Otan e os países do G7 foram amenizadas e ficaram em segundo plano. Apesar das diferenças secundárias entre as posições e capacidades militares, econômicas e políticas desses países (como a discordância entre os EUA, o Reino Unido e a França sobre quem exportaria submarinos para a Austrália em 2021), o Norte Global pode ser melhor entendido como um bloco que está disposto a se unir em torno de questões centrais (Krause-Jackson et al., 2021; Prashad, 2021).

O intelectual egípcio Samir Amin escreveu, em 1980, sobre a “consolidação gradual da zona central do sistema capitalista mundial (Europa, América do Norte, Austrália)”. Logo depois, Amin começou a usar o termo Tríade para se referir a essa “zona central” de potências imperialistas que surgiu após a Segunda Guerra Mundial (Amin, 1980, p. 104; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2023). Ele argumentou que as classes dominantes da Europa e do Japão haviam subordinado seus próprios interesses nacionais ao que o governo dos Estados Unidos começou a chamar de “interesse comum”. Com base na concepção de Amin, organizamos a Tríade em quatro anéis, com modificações que refletem as tendências atuais das relações internacionais e regionais.

Esses quatro anéis são:
  1. O núcleo interno dos Estados colonizadores anglo-americanos imperialistas liderados pelos EUA, formado por Austrália, Canadá, Estados Unidos, Nova Zelândia e Reino Unido (todos fazem parte do Five Eyes Intelligence Oversight and Review Council [Conselho de Revisão e Supervisão de Inteligência dos Cinco Olhos], uma rede de agências de inteligência vinculadas por acordos não divulgados), além de Israel. Esses países – enraizados em formas de supremacia branca – são os mais avançados nas áreas militar, econômica e política, com os Estados Unidos mantendo o domínio sobre o grupo.
  2. A camada seguinte é composta pelas nove principais potências imperialistas europeias: Alemanha, Bélgica, Dinamarca, Espanha, França,  Holanda, Itália, Noruega e Suécia. Todos esses países são membros da rede de espionagem “Quatorze Olhos” (formalmente conhecida como Sigint Seniors Europe), e todos são membros da Otan (com a adesão da Suécia praticamente garantida). Esses poderosos países europeus, no entanto, subordinam seus interesses nacionais ao núcleo interno, operando quase como Estados vassalos. Veja o caso da Alemanha, que – apesar de ter uma das maiores economias do mundo e dominar a União Europeia –, ainda assim enfraqueceu sua capacidade de cuidar de seus cidadãos desde o início da guerra na Ucrânia, em 2022, para não contestar a hegemonia dos EUA sobre a política externa europeia. Como descreveu o economista Michael Hudson, essa é “a terceira vez em um século que os Estados Unidos derrotam a Alemanha” (Hudson, 2022).
  3. O terceiro anel é formado pelo Japão e por potências europeias secundárias, como Áustria, Finlândia, Grécia, Irlanda, Portugal e Suíça. Embora leais aos Estados Unidos, esses países não têm tanta influência na ordem mundial quanto as potências imperialistas europeias, com base em suas capacidades militares, econômicas e políticas. Alguns deles, como Portugal, Finlândia e Islândia, fazem parte da Otan, mas são menos importantes para a estratégia militar dos EUA. No caso de Portugal, por exemplo, apesar de ser uma antiga potência colonial, seu PIB relativamente menor é um fator de exclusão do círculo de potências europeias secundárias.
  4. O quarto anel externo é composto por dezenove países do antigo Bloco Oriental. Esses países, que não eram potências coloniais, foram atraídos para o bloco imperialista na era pós-Guerra Fria, principalmente por meio da subordinação econômica e da expansão da Otan no leste. Alguns desses países são governados por regimes de direita pró-Otan (por exemplo, Polônia, Ucrânia e Estônia), que desempenham um papel de linha de frente nos esforços do Ocidente para conter a Rússia. Outros tentam manter distância da Otan (como a Sérvia), embora a pressão ocidental muitas vezes não lhes dê muita escolha.

Em 1945, os EUA começaram a consolidar sua hegemonia sobre os países do Norte Global por meio de três eixos principais:

  1. O domínio militar dos Estados Unidos na Europa por meio da Otan e a expansão das bases militares dos EUA nas potências do eixo derrotadas (Alemanha, Itália e Japão).
  2. Integração econômica e dependência dos Estados Unidos por parte do Japão, da Europa Ocidental e dos Estados colonizadores anglo-americanos. Isso começou com o Plano Marshall (1948) na Europa e no início da ocupação militar do Japão (1945-1952).
  3. A subordinação política das elites dos Estados colonizadores europeus, japoneses e brancos à estrutura de elite dos EUA, selecionando quais partidos políticos teriam permissão para estar no poder. Isso foi realizado por meio da criação de uma elite global pró-EUA, por exemplo, abrindo as universidades dos EUA para estudantes de elite dessas partes do mundo e formando um conjunto de redes (como a Reunião de Bilderberg em 1954) que buscavam criar um entendimento comum do mundo moldado pelos Estados Unidos (Prashad, 2020).

Além da subordinação do Norte Global aos Estados Unidos ao longo desses três eixos – que exigiu muito esforço e luta para ser alcançada –, três outros fatores são fundamentais para entender tanto o conceito de Norte Global quanto a lógica dos quatro anéis em que dividimos esses países.

  • Uma história compartilhada de brutalidade. O termo Norte Global não é um termo geográfico neutro. De fato, ele decididamente não é geográfico, dada a inclusão de países como a Austrália e a Nova Zelândia em seu núcleo interno. Em vez disso, o termo Norte Global é sinônimo de outros termos, como Ocidente e países avançados. Todas essas são designações educadas para o termo mais adequado: o bloco imperialista. Vale a pena observar que a maioria desses países – sejam eles os liderados pelo núcleo anglo-estadunidense (como Reino Unido e os Estados Unidos); o núcleo europeu (como a Alemanha e a Itália); ou potências europeias secundárias (como Portugal e Áustria) – moldaram o mundo moderno por meio de uma história compartilhada de violência que começou com o tráfico atlântico de pessoas escravizadas e continuou com o uso de bombas nucleares contra os civis em Hiroshima e Nagasaki e o genocídio contínuo dos palestinos. Não existe uma contabilização abrangente das centenas de milhões de pessoas mortas pelo colonialismo. Uma característica central dessa violência é a drenagem da riqueza das regiões colonizadas do mundo para as potências coloniais, que não apenas encheu os cofres dessas potências e pagou pela infraestrutura opulenta existente ainda hoje; ela também moldou o sistema neocolonial que continua a sugar a riqueza dos Estados colonizados muito depois do fim do colonialismo formal.
  • O escoamento da riqueza do Sul para o Norte. Apesar de representarem apenas 14,2% da população mundial, os 49 países do Norte Global respondem por 40,6% do Produto Interno Bruto (PIB) do mundo, com base na Paridade do Poder de Compra (PPC).3. Ao controlar o capital e a produção de matérias-primas, a propriedade intelectual e a ciência e tecnologia – todos parte do legado do colonialismo –, os países do Norte Global continuam garantindo o acúmulo de uma parcela maior da riqueza do planeta. Um exemplo do enorme roubo colonial de riquezas são os quase 45 trilhões de dólares que os britânicos drenaram da Índia entre 1765 e 1938, o que representa quase todo o período de domínio britânico na Índia (1757-1947). Essa riqueza inundou o sistema bancário britânico, possibilitou a acumulação de capital para a industrialização britânica e criou vantagens que perduraram por gerações (Patnaik, 2019). Enquanto isso, a expectativa média de vida diminuiu em 20% entre 1870 e 1921; e a taxa de alfabetização quando a Índia conquistou sua independência em 1947, após 300 anos de colonialismo, era de apenas 12,2% (Hickel; Sullivan, 2023).
    Um artigo recente mostra que, com base em trocas desiguais, 152 trilhões de dólares foram saqueados do Sul Global entre 1960 e 2017. Os autores destacam que, somente em 2017, o Norte Global se apropriou de 2,2 trilhões de dólares em commodities no Sul Global – “o suficiente para acabar com a pobreza extrema 15 vezes” (Hickel et al., 2021).  Imagine se pudéssemos calcular toda a drenagem de riqueza das (antigas) colônias e o impacto social que isso teve em seus sistemas de saúde e educação.
  • Uma condição comum de militarização e inteligência. O papel das redes de inteligência é frequentemente subestimado na avaliação do poder do Norte Global. A categoria de “inteligência” não se trata mais apenas de espionagem do tipo antigo, mas agora inclui vigilância digital e guerra (incluindo ataques cibernéticos à infraestrutura principal). Cada um dos países do Norte Global participa de uma coordenação militar de alto nível e do compartilhamento de inteligência, impulsionado pelo núcleo interno. Quanto mais próximo um país estiver do núcleo interno, mais sincronizado será o nível de inteligência e coordenação militar. Isso não significa que os países dos anéis externos não estejam ligados aos sistemas do núcleo interno, mas apenas que eles não são convidados a entrar no santuário interno dos sistemas de informações e armas. A estrutura dos quatro anéis se reflete nas redes globais de inteligência, como exemplificado pelas distinções entre as redes de inteligência Five, Nine e Fourteen Eyes. A rede de inteligência Five Eyes (composta por cinco dos seis países do núcleo interno, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos – com Israel como um “sexto olho” de fato) trabalha em estreita colaboração, mas mantém uma distinção dos países Nine Eyes (Dinamarca, França, Holanda e Noruega, adicionados aos Five Eyes) e, finalmente, com os países Fourteen Eyes (Bélgica, Alemanha, Itália, Espanha e Suécia, adicionados aos Nine Eyes), que têm acesso a um nível de compartilhamento de inteligência cada vez mais reduzido quanto mais se afastam do núcleo interno.

O Sul Global

Ao contrário do Norte Global, o Sul Global não é um bloco integrado. Os países do Sul Global têm diferentes realidades econômicas, capacidades militares, sistemas políticos e governos, muitas vezes com tradições políticas conflitantes. Embora vários desses países compartilhem certas características e interesses, o conceito de Sul Global não é definido por seus pontos em comum, mas por um conjunto de outros fatores. No entanto, esses países compartilham o fato de que:

  • são ex-colônias e semicolônias que foram submetidas a 500 anos de humilhação;
  • em alguns casos, têm e buscam projetos socialistas, pelos quais foram punidos pelo bloco imperialista;
  • eles são, por diversos motivos, vítimas da invasão imperialista por meio de força extraeconômica, como golpes e sanções;
  • muitas vezes, uniram-se em torno de vários interesses comuns, como buscar o alívio da dívida, estabelecer seu direito de construir uma democracia econômica e acessar medidas globais de saúde, incluindo vacinas durante a pandemia da Covid-19.

Apesar desses pontos em comum, seria um exagero chamá-los – como fizemos com o Norte Global – de bloco. Em vez disso, pensamos no Sul Global como sendo composto por seis grupos com relações interligadas (bem como disputas antagônicas entre alguns deles). Esses agrupamentos são:

  1. Estados socialistas independentes. Esse grupo inclui seis países (China, Vietnã, Venezuela, Laos, República Democrática da Coreia e Cuba) que continuam comprometidos com a trajetória socialista, com todos os seus complexos ziguezagues. Desde 2016, a China, um dos principais membros do grupo, tem o maior PIB (PPC) do mundo e uma economia quase três vezes maior do que a da Índia (um país com uma população comparável).4 . O povo chinês realizou a maior façanha dos tempos modernos em termos de desenvolvimento humano, tirando 800 milhões de pessoas da pobreza (Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, 2021).
  2. Estados em busca de soberania. Esse grupo é definido por Estados que, mais recentemente e apesar das muitas diferenças internas entre eles, tomaram medidas para afirmar sua soberania, mas não estabeleceram um processo socialista formal. Muitos desses países, como a Eritreia e o Mali, fazem parte do Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU, formado em julho de 2021 sob a liderança do governo venezuelano. O Ocidente, por sua vez, puniu essa postura por meio de uma guerra híbrida extrema.5. A Rússia, um caso especial nesse grupo, é o principal alvo da mudança de regime e de medidas coercitivas que buscam desmembrá-la e desnuclearizá-la.
  3. Estados atualmente progressistas. As sociedades desses países foram moldadas por movimentos de libertação nacional – como a luta contra o apartheid na África do Sul – e por movimentos contra ditaduras – como no Brasil – cujo impacto marcou profundamente suas culturas políticas. Apesar das limitações dos governos desse grupo, de suas graves contradições internas e das dificuldades de se emanciparem do sistema capitalista global, eles não se acovardaram diante da interferência dos EUA. No entanto, nenhum desses países se beneficiou de uma revolução socialista que poderia ter enfraquecido sua burguesia nacional por meio de uma reforma agrária substancial ou da socialização de setores avançados da economia, por exemplo.
  4. Novos Estados não alinhados. Esses países, com PIBs crescentes, estão superando sua dependência do Ocidente. O tamanho e a escala de suas economias lhes deram certa independência para buscar interesses econômicos nacionais sem avançar ativamente na soberania política. Eles perceberam que o confisco de reservas estrangeiras pelos EUA e o uso de sanções contra pelo menos 31,5% da população mundial se tornaram ameaças graves para a maioria global e que os Estados Unidos não são mais um mercado de último recurso nem um importante fornecedor de investimento estrangeiro direto.6
  5. O Sul Global Diverso. Esse grupo inclui os 111 países que não possuem uma unidade política, econômica ou militar clara. Eles variam no grau de alinhamento com o Norte Global.
  6. Estados fortemente militarizados pelos EUA. Os dois países que compõem esse grupo – República da Coreia e Filipinas – são efetivamente colônias militares dos Estados Unidos, embora suas populações se esforcem contra as limitações de estarem subordinadas às necessidades militares e de segurança estadunidenses.

Juntos, esses 145 países (incluindo a Palestina como Estado observador) representam 85,8% da população mundial e 59,4% do PIB mundial (PPC).7

Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.Nota de rodapé Como veremos na seção final deste dossiê, esses seis grupos fazem parte de grandes projetos regionais e internacionais (como a Organização de Cooperação de Xangai, a Unasul, o BRICS10 e o G77, respectivamente) que refletem o novo clima no Sul Global – um clima que está mudando em direção ao regionalismo e ao multilateralismo e se afastando do domínio único criado pelo bloco imperialista.

Sobre a ideia dos cinco controles

A avaliação marxista do imperialismo ao longo do século passado foi moldada pelas contribuições teóricas e práticas de Vladimir Lenin, com base na experiência da Revolução Russa. Na obra clássica de Lenin, Imperialismo: estágio superior do capitalismo (1916), ele argumenta que, em seu estágio mais competitivo, o capitalismo avançou para produzir oligopólios em setores importantes – como o financeiro – que entraram em contradição uns com os outros, levando seus Estados a um conflito sobre os mercados das colônias e a confrontos militares diretos entre si. A onda de descolonização formal iniciada após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 – que tinha uma história anterior na América Latina nos anos 1800, mas foi reiniciada com a Revolução Cubana (1959) – criou novas condições para o imperialismo. O recuo territorial das potências imperialistas não foi acompanhado de forma alguma pela perda de seu controle sobre a economia mundial. Ao contrário, eles criaram o que Kwame Nkrumah chamou de neocolonialismo.

Nos últimos anos, no entanto, testemunhamos o lento desgaste do controle do Ocidente sobre a economia mundial, bem como a deslegitimação gradual de toda a estrutura neocolonial. Para entender melhor esse desgaste, adotamos um método que Samir Amin desenvolveu há quase 30 anos para avaliar a natureza do poder imperialista (Amin, 1996).8

Ele argumentou que a estrutura neocolonial não exigia que as corporações transnacionais baseadas no Ocidente possuíssem a maior parte dos ativos do mundo. Em vez disso, ele explicou, o que era necessário era que tivessem controle monopolista sobre muitos dos ativos em setores-chave e garantissem que o beneficiário final desses ativos fosse a Tríade, ou o Norte Global, e suas classes dominantes. Amin identificou cinco formas de controle que estão no centro da estrutura neocolonial:

  • Controle sobre os recursos naturais
  • Controle sobre os fluxos financeiros
  • Controle sobre ciência e tecnologia
  • Controle sobre o poder militar
  • Controle sobre as informações

Em O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento (jul. 2023), argumentamos que o controle do Ocidente sobre os recursos naturais, os fluxos financeiros e a ciência e tecnologia está sendo contestado pela emergência das principais economias do Sul Global: China, Índia, Indonésia, Brasil, Turquia e México, que estavam entre as treze maiores economias do mundo em termos de PIB (PPC) em 2022.9 A impressionante ascensão da China, que saiu da pobreza extrema, foi fundamental para enfraquecer o domínio do Norte Global sobre esses três primeiros controles.

Dois exageros dos Estados Unidos e do bloco imperialista, de meados da década de 1990 até a década de 2010, também contribuíram para enfraquecer esse controle:

  1. As guerras dos EUA, da guerra global contra o terrorismo até as guerras no Afeganistão, Iraque e Líbia.
  2. superextensão econômica dos EUA, do excesso de crédito no mercado imobiliário dos EUA até a regulamentação frouxa do sistema bancário ocidental.

Essas guerras dos EUA e a Grande Depressão de 2007-2008 provocaram uma crise na liderança do Norte Global no sistema mundial. Foi nesse contexto que o presidente russo, Vladimir Putin, disse na Conferência de Segurança de Munique de 2007 que o mundo não precisa de “um senhor”.10 Começaram a surgir grandes dúvidas em grande parte do Sul Global sobre o papel dos EUA como o comprador de última instância, a âncora do sistema monetário mundial e o estabilizador político da ordem mundial.

Novos desenvolvimentos na China e na Rússia, que estavam ocorrendo ao mesmo tempo que essas guerras dos EUA e o caos no sistema capitalista mundial, começaram a acelerar novas mudanças:

  1. China. Nos últimos anos do governo de Hu Jintao (2003-2013), a liderança da China começou a reavaliar sua dependência do mercado e da liderança política dos EUA. A formação do BRICS em 2009 foi parte dessa nova postura. Essa reavaliação foi então traduzida em uma nova estrutura de políticas sob a liderança de Xi Jinping. Isso incluiu o estabelecimento de alternativas ao mercado e à liderança dos EUA, como a criação de um mercado interno por meio de investimentos de capital em larga escala, a erradicação da pobreza extrema e a construção da Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota (mais tarde, Iniciativa do Cinturão e Rota). Além disso, a China começou a usar o processo do BRICS para incentivar a formação de novos sistemas monetários e novas lideranças políticas.
  2. Rússia. No final da primeira década dos anos 2000, o governo russo começou a desfazer os danos que a destruição da União Soviética havia causado ao seu povo. Em primeiro lugar, o governo, liderado por Putin, começou a recuperar o setor de energia dos “oligarcas” e a organizar a base da economia em torno de princípios de autossuficiência, incluindo a manutenção do capital no país e a não permissão de retirada de lucros para o sistema bancário controlado pelo Ocidente. Em segundo lugar, o governo começou a aumentar o papel da Rússia na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep+, que inclui outros 10 países não membros) e a construir seu setor de energia para vender petróleo e gás natural para a Europa em um contexto em que as guerras do Norte Global contra o Iraque e a Líbia e a guerra híbrida contra o Irã, impulsionada por sanções, interferiam nas principais fontes de energia da Europa.

O magnetismo econômico da China e da Rússia – no contexto de uma crise econômica de longo prazo no Norte Global – levou os países da União Europeia a se integrarem mais à Eurásia. Isso ocorreu em dois níveis: os países europeus começaram a depender cada vez mais da energia russa (um terço das necessidades energéticas da Alemanha era atendido pela Rússia, por exemplo) e do investimento e da tecnologia da China (18 países da União Europeia aderiram à Iniciativa do Cinturão e Rota), incluindo Itália, Polônia, Portugal e República Tcheca (Nedopil, 2022). A integração da Europa com a Ásia foi historicamente lógica e necessária e, combinada com a ascensão da China, ameaçou a estrutura unipolar geral do Norte Global, bem como a estrutura neocolonial da economia mundial. Incapazes de reverter essa integração e a ascensão da China, os EUA, ao lado de seus aliados no Norte Global, aceleraram uma guerra híbrida contra a China e a Rússia. As linhas de frente dessa guerra eram inicialmente econômicas (por meio de uma guerra comercial, por exemplo), mas rapidamente começaram a se concentrar em duas áreas: Ucrânia e Taiwan. A guerra na Ucrânia teve duas consequências importantes na ordem mundial: em primeiro lugar, aumentou o custo dos alimentos e do combustível em todo o mundo e, em segundo lugar, houve uma recusa de muitos países em desenvolvimento em se curvar ao Ocidente e à sua postura em relação à guerra. Juntas, essas consequências geraram um novo clima no mundo em desenvolvimento e o surgimento de um novo não alinhamento.

O controle do Norte Global sobre o poder militar e as informações, no entanto, não diminuiu. Em um momento de apatia econômica e fragilidade política, o Norte Global – liderado pelos Estados Unidos – está exercendo o restante de seu poder com grande força e, ao fazê-lo, coloca em risco a existência do planeta. Como mostra nossa pesquisa, os países do Norte Global – especialmente os Estados Unidos – gastam quantias significativas de seus orçamentos com as Forças Armadas, sistemas de construção que ameaçam todos os aspectos da vida humana e desperdiçam a engenhosidade humana para destruir a vida em vez de afirmá-la.

O controle de armas

Incapazes e relutantes em construir um projeto social e político para lidar com os dilemas da humanidade em escala global, os Estados Unidos e seu bloco buscaram uma estratégia para manter seu domínio sobre o planeta. Esse domínio teve início com o colapso da União Soviética e do sistema estatal comunista na Europa Oriental em 1991, bem como o enfraquecimento do Terceiro Mundo por meio da crise da dívida, que começou a se agravar com a inadimplência do México em 1982. Os intelectuais dos Estados Unidos começaram a falar como se esse domínio fosse eterno, com o “fim da história” pronunciado contra qualquer enfrentamento à ordem dos EUA. No entanto, as rachaduras nessa narrativa começaram a se ampliar à medida que o domínio do G7, com os EUA à frente, foi profundamente abalado por seu exagero militar na guerra global contra o terrorismo (especialmente a invasão ilegal do Iraque em 2003) e pela Terceira Grande Depressão, de 2007-2008 (desencadeada pelo colapso dos mercados imobiliários ocidentais).

Na segunda década do século XXI, os Estados Unidos e seus aliados fizeram todos os esforços para reafirmar seu controle sobre o planeta. A guerra da Otan contra a Líbia em 2011 foi uma importante sinalização da política ocidental, que foi um prelúdio para as discussões sobre o uso de uma Otan global como plataforma para avançar a agressão militar ocidental, do Mar do Sul da China ao Caribe. As sanções tentaram disciplinar qualquer um que cruzasse as linhas traçadas pelos Estados Unidos e por seus aliados, bloqueando países do sistema financeiro internacional e, assim, privando populações inteiras do acesso a medicamentos, alimentos e outros bens básicos. (Vale a pena observar que as sanções, que aumentaram 933% nos últimos 20 anos, tornaram-se a forma favorita de intervenção liderada pelos EUA) (Rodrigues, 2023; Departamento do Tesouro dos EUA, 2021). Por fim, o Fundo Monetário Internacional (FMI) retornou com uma agenda de austeridade renovada, que foi aprofundada mesmo durante a pandemia, forçando dezenas de países pobres a pagarem mais aos ricos detentores de títulos do que aos seus próprios sistemas de saúde e educação (Unctad, 2023).11

Em 2018, os Estados Unidos declararam o fim da guerra contra o terrorismo e afirmaram claramente em sua Estratégia Nacional de Defesa que seus principais problemas eram a ascensão da China e da Rússia. O Secretário de Defesa dos EUA, Jim Mattis, falou abertamente sobre a necessidade de impedir a ascensão de “rivais próximos” – China e Rússia – e sugeriu que toda a panóplia de poder dos EUA fosse usada para colocá-los de joelhos (Mattis, 2018).

Os Estados Unidos não só têm centenas de bases militares que circundam a Eurásia, como também têm aliados, da Alemanha ao Japão, que lhes fornecem posições avançadas contra a Rússia e a China. Em 2015 e 2019, respectivamente, a frota naval dos EUA e seus aliados iniciaram exercícios agressivos de “liberdade de navegação” contra a integridade territorial da China (no Mar do Sul da China) e da Rússia (principalmente no Ártico). Essas manobras, bem como a intervenção política dos EUA na Ucrânia em 2014 e o grande acordo de armas dos EUA com Taiwan em 2015, ameaçaram ainda mais a soberania da Rússia e da China. Então, em 2018, os Estados Unidos se retiraram unilateralmente do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário (conhecido pela sigla INF), o que abalou o mapa do controle de armas nucleares. Essa retirada, juntamente com os objetivos declarados dos EUA na Estratégia de Defesa Nacional de 2018, mostrou que os EUA estavam contemplando o uso de “armas nucleares táticas” contra a Rússia e a China.

Até o momento, os aliados dos EUA na região da Ásia-Pacífico, como a Austrália e a República da Coreia, não estão ansiosos para permitir a entrada de armas nucleares intermediárias em seu território, embora essas armas possam ser posicionadas em bases dos EUA em outros lugares, de Guam a Okinawa. É impossível entender a intervenção da Rússia na Ucrânia sem entender esse histórico mais longo de ameaças sofridas por Moscou. Não é despropositado se preocupar com a possibilidade de os Estados Unidos posicionarem suas armas nucleares intermediárias na Ucrânia, independentemente de a Ucrânia entrar ou não para a Otan.12

Para afirmar sua posição de domínio sobre a ordem mundial, os Estados Unidos e seus aliados aumentaram os gastos militares de forma inacreditável. O Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri, na sigla em inglês) calculou que, em 2022, os gastos militares dos EUA foram de aproximadamente 877 bilhões de dólares, cerca de 39% dos gastos militares globais estimados (Sipri, 2023). No entanto, como mostra um relatório recente publicado na Monthly Review, esse número está muito subestimado: os gastos militares reais dos EUA estão mais próximos de 1,537 trilhão de dólares – quase o dobro do cálculo do Sipri e dos números oficiais dos EUA (Cernadas, Bellamy-Foster, 2023). Somando-se os gastos estimados para 2022 de outros países da Otan (360 bilhões de dólares) e de todos os aliados militares não pertencentes à Otan, dominados pelos EUA (234 bilhões de dólares), com base em números oficiais, o total de gastos militares do bloco militar liderado pelos EUA chega a 2,13 trilhões de dólares, embora esse valor possa estar abaixo dos gastos reais. Esse cálculo eleva os gastos militares globais em 2022 para 2,87 trilhões de dólares. Em outras palavras, o bloco militar liderado pelos EUA é responsável por 74,3% dos gastos militares mundiais, e os EUA gastam 12,6 vezes mais per capita do que a média mundial (Israel, em segundo lugar, gasta 7,2 vezes mais do que a média mundial per capita, e as outras potências imperialistas gastam de duas a três vezes mais do que a média mundial).13

A China, por sua vez, é responsável por 10% dos gastos militares mundiais (292 bilhões de dólares), e seus gastos militares per capita são 22 vezes menores do que os dos Estados Unidos.14 O medo que se instala sobre os gastos militares chineses não é fundamentado pelos fatos. O que está comprovado por fatos é que a China gasta mais de sua riqueza social em infraestrutura e indústria do que no setor militar. Enquanto isso, os EUA gastam apenas 252 bilhões de dólares em educação, por exemplo, de acordo com o Centre on Budget and Policies Priorities, mas gastam 1,537 trilhão com as Forças Armadas, parte do qual é destinado ao pagamento de suas cerca de 902 bases militares em todo o mundo (Centre on Budget and Policy Priorities, 2023; World Beyond War, 2023).

A única área do mundo que está livre do aparato militar dos EUA é grande parte da Eurásia: China, Índia, Irã e Rússia. Desde 1992, os Estados Unidos sonham em conquistar essa região, inclusive com o uso de poder militar. Em 1997, Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro de segurança nacional do presidente dos EUA, Jimmy Carter, advertiu que “potencialmente, o cenário mais perigoso seria uma grande coalizão da China, Rússia e talvez do Irã, uma coalizão ‘anti hegemônica’ unida não por ideologia, mas por queixas complementares”. “Para os Estados Unidos”, escreveu Brzezinski, “o principal prêmio geopolítico é a Eurásia”, que, segundo ele, é “o tabuleiro de xadrez no qual a luta pela primazia global continua a ser jogada” (Brzezinski, 1997). Para evitar esse cenário, Brzezinski e outros alertaram que os EUA deveriam tentar conquistar a China ou a Rússia para isolar a outra e, assim, dominar o “tabuleiro de xadrez” da Eurásia. No entanto, nas últimas décadas, os Estados Unidos fizeram exatamente o oposto, optando por pressionar a China e a Rússia por meio de sua Nova Guerra Fria que, como Brzezinski previu, uniu esses dois países em uma aliança estratégica bilateral e multilateral. Além disso, os dados do Serviço de Pesquisa do Congresso dos EUA informam que as Forças Armadas dos EUA foram mobilizadas para 101 países entre 1798 e 2023 (Serviço de Pesquisa do Congresso, 2023). De acordo com o Projeto de Intervenção Militar, entre 1776 e 2019, os EUA realizaram pelo menos 392 intervenções militares em todo o mundo. Metade dessas operações foi realizada entre 1950 e 2019, e 25% delas ocorreram no período pós-Guerra Fria (Kushi; Toft, 2023). Somente em 2022, 317 forças imperialistas foram deslocadas para países do Sul Global e 137 para aliados do Norte Global, em um total de 454 deslocamentos (IISS, 2023).

Talvez a melhor evidência dos planos raciais, políticos, militares e econômicos das potências ocidentais que se manifestaram por meio da Nova Guerra Fria possa ser resumida por uma declaração recente da Otan e da UE:

A Otan e a UE desempenham papéis complementares, coerentes e que se reforçam mutuamente no apoio à paz e à segurança internacionais. Mobilizaremos ainda mais o conjunto coordenado de instrumentos à nossa disposição, sejam eles políticos, econômicos ou militares, para buscar nossos objetivos comuns em benefício de nosso bilhão de cidadãos.

Sobre o surgimento de novas organizações

No último dia da cúpula do BRICS15 em Joanesburgo, África do Sul, os cinco Estados fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul)16 deram as boas-vindas a seis novos membros: Argentina, Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos (EAU). Embora o novo governo de direita da Argentina, liderado por Javier Milei, tenha se retirado oficialmente da adesão ao BRICS em 29 de dezembro de 2023, os dez países do bloco abrangem agora 45,5% da população mundial, com um PIB global combinado (PPC) de 35,6%. Em comparação, embora os Estados do G7 (Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão, Reino Unido e Estados Unidos) representem apenas 10% da população mundial, sua participação no PIB global (PPC) é de 30,3%. Enquanto os países que hoje formam o BRICS10 são responsáveis por 44,6% da produção industrial global, seus pares do G7 respondem por apenas 21,6%.17

Certamente, as nações do BRICS, apesar de todas as suas hierarquias e desafios internos, agora representam uma parcela maior do PIB global do que o G7, que continua a se comportar como o poder executivo do mundo. Vinte e três países solicitaram sua adesão antes da reunião da África do Sul (incluindo sete dos 13 países da Opep), embora mais de 40 tenham expressado interesse em participar do BRICS10, incluindo a Indonésia, o sétimo maior país do mundo em termos de PIB (PPC).

É importante mencionar que o BRICS não opera de forma independente das novas formações regionais que visam construir plataformas fora do controle do Ocidente, como a Comunidade dos Estados da América Latina e do Caribe (Celac) e a Organização de Cooperação de Xangai (OCX, na sigla em inglês). Em vez disso, a participação no BRICS10 tem o potencial de aprimorar o regionalismo para aqueles que já fazem parte desses fóruns regionais.

Por que o BRICS acolheu um grupo de países tão díspares, incluindo duas monarquias? Quando solicitado a refletir sobre o caráter dos novos Estados membros plenos, o presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva disse: “o que importa não é a pessoa que governa, mas a relevância do país. Não podemos negar a relevância geopolítica do Irã e de outros países que se juntarão ao BRICS”. Essa é a medida de como os países fundadores tomaram a decisão de expandir sua aliança (Boadle, 2023).

No centro do crescimento do BRICS estão pelo menos três questões: controle sobre o fornecimento e as rotas de energia, controle sobre os sistemas financeiros e de desenvolvimento globais e controle sobre as instituições de paz e segurança.

Controle sobre suprimentos e vias de energia

Um BRICS maior criou agora um grupo energético importante. O Irã, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos também são membros da Opep, que, ao lado da Rússia, um dos principais membros da Opep+, responde atualmente por 26,3 milhões de barris de petróleo por dia, pouco menos de 30% da produção diária global de petróleo (Hill; Comstock, 2023). O papel da China na intermediação de um acordo entre o Irã e a Arábia Saudita em abril permitiu a entrada desses dois países produtores de petróleo no BRICS. O Egito, outro novo país no BRICS10, embora não seja membro da Opep, é, no entanto, um dos maiores produtores de petróleo da África, com uma produção que representa mais de um quarto da produção mundial de petróleo (The Global Economy, 2023). A questão aqui não é apenas a produção de petróleo, mas o estabelecimento de novas rotas globais de energia.

A Iniciativa de Cinturão e Rota, liderada pela China, combinada com o desenvolvimento da Visão 2030 da Arábia Saudita, já criou uma rede de plataformas de petróleo e gás natural no Sul Global, integrada à expansão do Porto Khalifa e às instalações de gás natural em Fujairah e Ruwais (nos Emirados Árabes Unidos). Há uma grande expectativa de que o BRICS10 comece a coordenar sua infraestrutura de energia com outros produtores de energia. Por exemplo, as tensões entre a Rússia e a Arábia Saudita sobre os volumes de petróleo aumentaram este ano, pois a Rússia excedeu sua cota em uma tentativa de compensar as sanções ocidentais impostas a ela como resultado da guerra na Ucrânia. Agora, esses dois países terão outro fórum, fora da Opep+ e com a China na mesa, para criar uma agenda comum sobre energia. Essa plataforma em expansão também ameaça minar o sistema de petrodólares, com mais países – como a Arábia Saudita – planejando vender petróleo para a China em renminbi, ou RMB (os outros dois principais fornecedores de petróleo da China, Iraque e Rússia, já recebem pagamento em RMB).

Controle sobre os sistemas financeiros e de desenvolvimento globais

Tanto as discussões na cúpula do BRICS quanto seu comunicado final destacaram a necessidade de fortalecer uma arquitetura financeira e de desenvolvimento para o mundo que não seja governada pelo triunvirato do Fundo Monetário Internacional (FMI), Wall Street e o dólar estadunidense. Entretanto, o BRICS não busca evitar as instituições de comércio e desenvolvimento globais estabelecidas, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial e o FMI. Por exemplo, na declaração final da cúpula, o BRICS reafirmou a importância do “sistema de comércio multilateral baseado em regras com a Organização Mundial do Comércio em seu núcleo” e pediu “uma Rede de Segurança Financeira Global robusta com um [FMI] baseado em cotas e com recursos adequados em seu centro” (BRICS, 2023). Suas propostas não rompem fundamentalmente com o FMI ou a OMC; em vez disso, oferecem um caminho duplo: primeiro, para que os BRICS exerçam mais controle e direção sobre essas organizações, das quais são membros, mas que foram subornadas a uma agenda ocidental; e, segundo, para que os Estados dos BRICS realizem suas aspirações de construir suas próprias instituições paralelas (como o Novo Banco de Desenvolvimento, ou NBD). O enorme fundo de investimento da Arábia Saudita vale cerca de 1 trilhão de dólares, o que poderia financiar parcialmente o NBD.

Para Cyril Ramaphosa (2023), atual presidente dos BRICS, a agenda do bloco para melhorar “a estabilidade, a confiabilidade e a justiça da arquitetura financeira global” está sendo levada adiante principalmente pelo “uso de moedas locais, acordos financeiros alternativos e sistemas de pagamento alternativos”. O conceito de “moedas locais” refere-se à prática crescente de os países usarem suas próprias moedas para o comércio internacional, em vez de dependerem do dólar. Embora aproximadamente 150 moedas no mundo sejam consideradas de curso legal, os pagamentos internacionais quase sempre dependem do dólar (que, a partir de 2021, passou a representar 40% dos fluxos na rede da Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunications, ou Swift) (Perez-Saiz, 2023).

Outras moedas desempenham um papel limitado, com o renminbi chinês representando 2,5% dos pagamentos internacionais. No entanto, o surgimento de novas plataformas globais de mensagens, como o Sistema Interbancário de Pagamentos Transfronteiriços da China, Interface Unificada de Pagamentos da Índia, e o Sistema de Mensagens Financeiras (SPFS) da Rússia, bem como os sistemas regionais de moeda digital, prometem aumentar o uso de moedas alternativas. Por exemplo, ativos de criptomoeda forneceram brevemente um caminho em potencial para novos sistemas de negociação antes que suas avaliações de ativos diminuíssem, e o BRICS expandido recentemente aprovou a criação de um grupo de trabalho para estudar uma moeda de referência do bloco.

Após a expansão do BRICS, o NBD disse que também expandirá seus membros e que, como sua Estratégia Geral, 2022-2026 30% de todo o seu financiamento será em moedas locais. Como parte de sua estrutura para um novo sistema de desenvolvimento, sua presidenta, Dilma Rousseff, disse que o NBD não seguirá a política do FMI de impor condições aos países tomadores de empréstimos. “Repudiamos qualquer tipo de condicionalidade”, disse Dilma. “Muitas vezes, um empréstimo é concedido sob a condição de que determinadas políticas sejam executadas. Nós não fazemos isso. Respeitamos as políticas de cada país”.

A entrada da Etiópia e do Irã no BRICS mostra como esses grandes países do Sul Global estão reagindo à política de sanções do Ocidente contra dezenas de países, incluindo dois membros fundadores do BRICS (China e Rússia). Há muito tempo a China mantém relações comerciais com a Etiópia, cuja capital, Adis Abeba, é a sede da União Africana. A inclusão da Etiópia no BRICS garante que esse grande país (com uma população considerável e importantes terras agrícolas) não voltará para a órbita ocidental.

Controle sobre instituições de paz e segurança

Em seu comunicado, as nações do BRICS escrevem sobre a importância de uma “reforma abrangente da ONU, incluindo seu Conselho de Segurança”. Atualmente, o Conselho de Segurança da ONU tem 15 membros, cinco dos quais são permanentes (China, França, Rússia, Reino Unido e EUA). Não há membros permanentes da África, da América Latina ou do país mais populoso do mundo, a Índia. Para reparar essas desigualdades, o BRICS oferece seu apoio às “aspirações legítimas dos países emergentes e em desenvolvimento da África, Ásia e América Latina, incluindo o Brasil, a Índia e a África do Sul, de desempenhar um papel mais importante nos assuntos internacionais” (BRICS, 2023, p. 3). A recusa do Ocidente em permitir que esses países tenham um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU apenas fortaleceu seu compromisso com o processo do BRICS e com o aprimoramento de seu papel no G20.

Três grandes plataformas inter-regionais, ainda em estágio embrionário, definem o novo regionalismo e multilateralismo:

  1. BRICS10 (uma expansão da formação do BRIC em 2009), que é em grande parte estratégico, mas também uma potência econômica, tem 17 membros oficiais e vários parceiros não oficiais.
  2. A Organização de Cooperação de Xangai (2001), que foi formada principalmente em torno de questões de segurança na Ásia Central, avançou para conversas sobre desenvolvimento e comércio.
  3. O Group of Friends in Defence of the UN Charter (Grupo de Amigos em Defesa da Carta da ONU) (2021), que é sobretudo uma plataforma política, reúne 20 estados membros da ONU que estão enfrentando o peso das sanções ilegais dos EUA, da Argélia ao Zimbábue. Muitos desses países participaram da cúpula do BRICS como convidados e estão ansiosos para participar do bloco expandido como membros plenos.

Não é por acaso que há três países, todos alvos principais de campanhas de pressão do bloco imperialista, que estão em todas essas três organizações: China, Irã e Rússia.

Há vários desafios e oportunidades compartilhados que surgiram no Sul Global e que reuniram muitos de seus países em torno da necessidade de uma estrutura comum para discussão e colaboração. Esses interesses comuns incluem a necessidade de:

  • Multilateralismo e regionalismo centrados na criação de uma cooperação ancorada no Sul Global.
  • Nova modernização que se concentra na construção de economias regionais e continentais que usam moedas locais em vez do dólar para comércio e reservas.
  • Soberania, que cria barreiras à intervenção ocidental. Isso inclui envolvimentos militares e colonialismo digital, que facilitam as intervenções da inteligência dos EUA.
  • Reparações, que implica em negociação coletiva para compensar as armadilhas de dívidas centenárias do Ocidente e o abuso do excesso de orçamento de carbono, bem como seu legado de colonialismo de alcance muito maior.

Mudanças profundas estão ocorrendo no mundo, aceleradas pelas guerras na Ucrânia e pelo genocídio em rápida escalada na Palestina. Essas mudanças são moldadas, por um lado, pela perda de poder econômico do Norte Global ao lado do aumento da militarização e, por outro, pela nova disposição do Sul Global em relação à soberania e ao desenvolvimento econômico. Este dossiê é um exercício preliminar, baseado em pesquisas e análises originais, para dar sentido a essas mudanças e, consequentemente, ao novo clima no Sul Global.

Notas:

Leia nosso relatório completo: Hiper-Imperialismo: uma nova fase perigosa e decadente. Estudos sobre dilemas contemporâneos n. 4, 23 January 2024: https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-sobre-dilemas-contemporaneos-4-hiper-imperialismo.

2 No entanto, há evidências de que, até 1600, pelo menos 56 milhões de indígenas nas Américas pereceram devido à violência colonial e à introdução de patógenos mortais; pelo menos 15,5 milhões de africanos foram capturados e vendidos no tráfico atlântico de escravos; pelo menos 10 milhões de pessoas morreram no Congo entre 1515 e 1865 devido à ganância do colonialismo belga; e, somente entre 1880 e 1920 (uma pequena parte do colonialismo britânico na Índia), pelo menos 165 milhões de indianos morreram em decorrência da violência colonial britânica. Consultar Alexander Koch et al. (2019); Steven J. Micheletti et al. (2020); Adam Hochschild (1999); Fritz Blackwell (2008), Dylan Sullivan; Jason Hickel (2023).

3 Elaboração própria do Global South Insights com base em dados do World Development Indicators (2022) e World Economic Outlook (2022). https://www.imf.org/en/Publications/WEO/weo-database/2029/October.

4 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.

5 Para saber mais sobre guerra híbrida, ver Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Crepúsculo: a erosão do controle dos EUA e o futuro multipolar, dossiê n. 36, 4 jan. 2021, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-35-crepusculo/ e Venezuela e as guerras híbridas na América Latina, dossiê n. 17, 3 de jun. 2019, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-17-venezuela-e-as-guerras-hibridas-na-america-latina/.

6 Elaboração própria da Global South Insights com base em World Population Prospects 2022, Departamento de Economia e Assuntos Sociais, Nações Unidas, 1 jul. 2022, https://population.un.org/wpp/ e What are Sanctions?, Campanha SanctionsKill, set. 2022, https://sanctionskill.org.

7 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI.

8 Ver também Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Globalização e sua alternativa: uma entrevista com Samir Amin, caderno n. 1, 29 out. 2018, https://thetricontinental.org/pt-pt/globalizacao-e-sua-alternativa/.

9 Elaboração própria da Global South Insights com base no WEO do FMI; Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, O mundo precisa de uma nova teoria socialista do desenvolvimento, dossiê n. 66, 4 jul. 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-66-teoria-do-desenvolvimento/.

10 Vladimir Putin, discurso na Conferência de Munique sobre Política de Segurança: Conferência de Segurança de Munique, Munique, Alemanha, 10 de fevereiro de 2007, http://en.kremlin.ru/events/president/transcripts/24034.

11 Para saber mais sobre a crise da dívida, ler  Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Vida ou dívida: o limiar estrangulador do neocolonialismo e a busca por alternativas na África,  dossiê n. 63, 11 abr. 2023, https://thetricontinental.org/pt-pt/dossie-63-crise-da-divida-africana/.

12 Para saber mais sobre a Ucrânia, ver: Instituto Tricontinental  de Pesquisa Social, Esta não é uma era de certezas, mas de contradições, carta semanal n. 14. 7 abr. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-ucrania-2/; Estamos em um período de grandes mudanças tectônicas), carta semanal n. 11, 17 mar. 2022, https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-mudanca-ordem-mundial/Nestes dias de grande tensão, a paz é a prioridade, carta semanal n. 9, 3 mar. 2022https://thetricontinental.org/pt-pt/newsletterissue/cartasemanal-ucrania/.

13 Elaboração própria do Global South Insights com base em números ajustados do “SIPRI Military Expenditure Database”, Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (Sipri), acesso em: out. 2023, https://www.sipri.org/databases/milex; e Monthly Review.

14Elaboração própria da Global South Insights com base em números ajustados do Sipri e da Monthly Review.

15 Para saber mais sobre a Ucrânia, ver: Instituto Tricontinental  de Pesquisa Social BRICS, ver: BRICS, uma alternativa ao imperialismo? , https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/brics-uma-alternativa-ao-imperialismo/.

16 Para saber mais sobre os BRICS, ver: Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. BRICS: Uma alternativa ao imperialismo? 31 ago. 2023. Disponível em: https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/brics-uma-alternativa-ao-imperialismo/.

17 Elaboração própria do Global South Insights com base no WPP da ONU, WDI do Banco Mundial e WEO do FMI.


Referências bibliográficas:

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Amin, Samir. “The Challenge of Globalisation”, Review of International Political Economy 3, n. 2, 1996, p. 216-259.

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Publicado originalmente por Retrato do Sul Global, este desconhecido – Outras Palavras