Daniel Vaz de CARVALHO
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Formalmente a União Soviética deixou de existir em 26 de dezembro de 1991, contudo desde novembro que este processo estava em curso. Em 6 de novembro Iéltsin proibiu por decreto todas as atividades do PCUS na Rússia. Em 8 de dezembro, Iéltsin com os presidentes da Ucrânia e Bielorrússia declararam que a União Soviética não existia mais “como sujeito de direito internacional e realidade geopolítica” e anunciaram em seu lugar a formação de uma “Comunidade de Estados Independentes”. Gorbachov em 17 de dezembro, concordou em dissolver a URSS, a 26 o Conselho das Repúblicas votou pelo fim da União.
De um dia para o outro sem transição, cidadãos das várias repúblicas tornaram-se estrangeiros no que tinha sido até ali a sua pátria e pela qual tinham trabalhado e lutado. Quanto às relações económicas… cada um que tratasse de si. A Rússia pelo menos tomava a seu cargo as dívidas de todos. Assim se iniciou (mal) em termos geopolíticos o século XXI, moldando os acontecimentos dos tempos atuais. A direita e as social-democracias exultavam, desdobrando-se em argumentos contra o “totalitarismo comunista”, o triunfo da liberdade e da democracia. Na realidade, estendia a passadeira ao neofascismo e às agressões imperialistas.
Os horrores das guerras que ocorreram desde então, a insegurança e incerteza, que mesmo nos países em paz os povos sentem, aliada à ascensão da extrema-direita, têm origem naquele acontecimento. Quando Putin declarou em 2005 que o fim da URSS tinha sido a maior catástrofe geopolítica do século XX, os fazedores de opinião ficaram apopléticos. Para os “senhores do mundo”, tornou-se um suspeito, depois um inimigo a abater. Nas suas cabeças o “império do mal” tinha sido derrotado para sempre. Putin também disse que “aqueles que festejam o fim da União Soviética, não têm coração, mas os que desejam reconstituí-la não têm cérebro”.
Com o fim da União Soviética, criou-se um edifício geopolítico definido pelo imbecil “fim da História”, foi oscilando e entrou em colapso em 2022. Agora o ocidente vive nos seus escombros pretendendo (sem cérebro…) reconstituí-lo, enquanto o resto do mundo constrói um outro edifício geopolítico.
Sob a presidência de Iéltsin a economia socialista da Rússia, ou o que restava dela depois da “reformas” de Gorbachov, foi transformada numa economia de mercado capitalista, através de privatizações e liberalização económica, na forma de “terapia de choque”. Grande parte da riqueza nacional passou para a posse de gente ligada ao ocidente, criando-se uma classe de oligarcas. As maravilhas do capitalismo fizeram-se sentir desde logo: corrupção, colapso económico, pobreza generalizada, crime organizado (violência, prostituição inclusive infantil, drogas).
As “reformas” liberais devastaram os padrões de vida da população. O PIB caiu 50%, a desigualdade social e o desemprego cresceram dramaticamente, empresas produtivas foram destruídas. A inflação descontrolada anulou as poupanças dos trabalhadores obtidas nos “horrores” da “era soviética”. Com o colapso dos serviços médicos, antes considerados os melhores do mundo, a expectativa de vida regrediu ao nível dos países pobres.
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Alexander Rutskoi, um comunista, líder na Duma (Parlamento) denunciou as reformas como “genocídio económico”. Em 1993 a Duma opõe-se ao prosseguimento das reformas liberais conduzidas por “especialistas” dos EUA. Iéltsin em 21 de setembro dissolve o parlamento. Em resposta a Duma anuncia o processo de destituição de Iéltsin, proclamando Rutskoi, novo presidente. O parlamento ganha apoio do povo, intensificando-se os protestos contra Iéltsin.
Dezenas de milhares de cidadãos russos marcharam para o parlamento protestando contra as terríveis condições de vida e contra o autoritarismo de Iéltsin, que se afirmara como líder – apoiado pelo ocidente – criticando o “autoritarismo soviético”. Face à resistência do Parlamento russo às políticas pró-capitalistas, Iéltsin ordenou o seu bombardeamento. Provocadores com interferência dos EUA, dispararam sobre a população que se juntara em apoio dos deputados, na grande maioria comunistas, resultando na morte de 187 pessoas, deputados que se opunham a Iéltsin foram presos. A Constituição foi anulada, sendo estabelecida outra que consagrava as “reformas económicas” odiadas pelo povo.
Nos países capitalistas os media, apresentaram esta tragédia, feita farsa, como o triunfo da democracia. Iéltsin foi erigido aos píncaros como herói democrático. As mortes ignoradas, os correspondentes no local cortavam a palavra a quem criticasse o que acontecia, eram “as vozes do passado”. A imagem de Iéltsin num tanque fazendo declarações patéticas sobre o triunfo da democracia, foi repetidamente passada nos media. Ali estava o neoliberalismo a nu, nas palavras de um corrupto e alcoólico, totalmente manipulado do exterior.
A democracia festejada pelos media era de facto a gestão do Banco Mundial, do FMI, da Secretaria de Estado dos EUA, donos da Rússia e das ex-repúblicas soviéticas. Quando não foi mais possível esconder o que os povos ex-soviéticos sofriam, os propagandistas trataram a questão com sobranceria, até ridicularizando, como sendo o resultado dos problemas herdados da “era soviética”.
A realidade desta tragédia era a necessidade do imperialismo combater o Partido Comunista da Federação Russa, que ameaçava vitória. As forças patrióticas na Rússia, perceberam então que o objetivo dos EUA não se afastava do delineado por Goebbels em maio de 1941: “A Rússia deve ser dividida nos seus componentes. Não se pode tolerar a existência a Oriente de um Estado tão vasto”. Assim foi lançada a guerra na Chechénia, e incentivados outros movimentos separatistas.
Com as maravilhas do “mercado” a funcionar, liberalização do comércio externo, dos preços e da moeda, austeridade para controlar a inflação, cancelados subsídios às empresas nacionais, cortes na segurança social, o resultado foi o acelerado endividamento e o descalabro financeiro associado ao roubo posto em prática como sistema pelos “democratas”. Parte do dinheiro emprestado pelo FMI e outras entidades financeiras, foi roubado pelos magnatas do círculo de Iéltsin e guardado em bancos estrangeiros.
Em 1998, o governo não pagou o serviço de dívida, causando o colapso do rublo, levando a Rússia à beira da bancarrota. Em maio de 1999, Iéltsin livrou-se de uma tentativa de destituição, pela Duma. Foi acusado de diversas atividades inconstitucionais, incluindo o fim da União Soviética apesar da escolha do povo ter sido à favor da existência do país; do golpe de Estado em outubro de 1993; da guerra da Chechénia, em 1994. As acusações não receberam 2/3 dos votos necessários para iniciar um processo de destituição, porém em agosto, Iéltsin demitiu o governo e indicou Vladimir Putin, ex-tenente-coronel do KGB, então vice-prefeito de S. Petersburgo, como primeiro-ministro.
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Não é comparável, mas há semelhanças com o legado que Estaline recebeu no fim da “guerra civil” com intervenção imperialista, e o que Putin recebeu. No final dos anos 1990 o número de pessoas a viver na pobreza extrema havia atingido largas dezenas de milhões. Milhões de crianças sofriam de desnutrição. A economia estava dominada por grupos do crime organizado e estrangeiros.
O fim da União Soviética permite-nos refletir sobre as potencialidades do sistema socialista, que muitos progressistas, ou tidos como tal, passaram a ter medo ou vergonha de abordar, de tal forma a propaganda imperialista se insinuou. O fim da União Soviética demonstrou que: se de acordo com o marxismo a passagem do capitalismo para o socialismo representa uma fase mais avançada do progresso da humanidade, então a passagem de experiências socialistas para o capitalismo representa uma regressão civilizacional. Foi isso que aconteceu.
Uma regressão civilizacional evidente nos países ex-socialistas, traduzindo-se em pobreza e desigualdades que atingiram o nível do obsceno, dependência económica, instabilidade social, crime organizado, com todos os seus dramas, tornando-se peões das estratégias de guerra do imperialismo e avanço da extrema-direita.
Países que encetavam vias socialistas, democráticas e populares e exerciam o seu direito à autodeterminação, na América Latina, África, Ásia, foram alvo de golpes de Estado patrocinados pelo imperialismo, agressões militares, chantagem económica e financeira, dando lugar a governos corruptos em violação sistemática dos direitos humanos, mesmo sanguinários, apoiados pelo ocidente. Retrocessos que produziram catástrofes e milhões de vítimas, tiveram a participação das ditas ONG patrocinadas pela CIA como a National Endowment for Democracy (NED) e o apoio expresso ou tácito das social-democracias.
As social-democracias, alinharam sem problemas de consciência com o neoliberalismo chamando a este sistema oligárquico, “democracia liberal”; fizeram coro com a propaganda anticomunista, desmobilizaram as camadas populares, cederam aos interesses do capital monopolista e empenharam-se – em nome da “eficiência económica” – na destruição das conquistas democráticas do proletariado obtidas nas décadas anteriores à dissolução da URSS, abrindo as portas aos neofascismos e mesmo neonazis como na Ucrânia.
Com o fim da União Soviética e outros países socialistas, os EUA emergiram como a única superpotência a nível mundial, arrogando-se o direito de ditarem as regras pelas quais todos os países tinham de ser geridos, em seu benefício, claro. Os media controlados pelas oligarquias consagraram o absurdo do “fim da História”, não se cansaram de cantar loas à “democracia” estipulada pelas “regras” e o “Consenso de Washington”. Países acusados de “iliberais” – isto é, com controlo soberano sobre as transnacionais – foram sujeitos a sanções e ingerências. Tudo isto os media e seus “comentadores” acrítica e servilmente justificaram.
4 – O reinício da História…
Disse Marx, que os que esquecem o passado estão destinados e revive-lo. Daqui a necessidade de procurar compreender o passado para enfrentar com adequadas soluções, os desafios que o mundo atual nos traz.
Em 1992 Paul Wolfowitz elaborou um memorando que estabelecia uma estratégia para consolidar e expandir o domínio global dos EUA perpetuamente. Este absurdo, fora de qualquer racionalidade, tornou-se no entanto base da política externa dos EUA para ambos os partidos.
Desencadearam guerras e perderam-nas, deixando apenas caos e tragédias humanas. O delírio da omnipotência levou a ilegais e criminosas sanções. Que morressem centenas de milhares de crianças no Iraque, no Afeganistão, que a Líbia fosse levada ao caos, para o ocidente “valeu a pena” como Madeline Albright, ou Tony Blair, expressaram. Hilary Clinton festejou o bárbaro assassinato de Kadhafi como um triunfo imperial. A ideia era idêntica à da cúpula nazi do führer: ninguém pede satisfações aos vencedores.
Mas é impossível ter bons resultados com maus diagnósticos, a realidade impõe-se e hoje o império é constituído por entidades reacionárias, que se afundam em crises, corrupção e num acentuado declínio. Como dizia uma nota do Saker Latinoamérica: o que estamos testemunhando é uma perda colossal das capacidades executivas, cientificas e intelectuais do ocidente: é o CAD – computer assisted degeneration (degeneração assistida por computador). [1]
A arrogância e a ilusão que os media transmitiam, era tão grande que a Rússia era reduzida a uma caricatura. Scholz dizia que os russos estavam a tirar os chips das máquinas de lavar alemãs para utilizar nos mísseis; a economia russa tinha a dimensão da da Espanha; eram uma “bomba de gasolina com armas nucleares”, iria implodir com “a bomba atómica das sanções”. O espantoso é que não se tratava apenas de mera propaganda: a CAD dos líderes do ocidente, acreditava nisto.
A Rússia é herdeira das realizações soviéticas. Foram as realizações soviéticas que permitiram a recuperação económica, social e militar da Rússia após o descalabro dos anos 1990, em que a população russa tentava sobreviver às inumanas “reformas” da “democracia liberal”. Na ciência, na reindustrialização, no desenvolvimento dos meios militares, que tornaram a Rússia uma grande e próspera potência aos olhos do resto do mundo, está a marca deixada pelo socialismo. As principais economias europeias estão estagnadas. A Rússia – por ironia graças às sanções – tem excedentes orçamentais, no terceiro trimestre de 2023 o equivalente a 600 milhões de dólares.
Para manter o império, os EUA e os vassalos da NATO intervieram, ameaçaram, fizeram guerras intervindo direta ou indiretamente, por todo o mundo. Mesmo assim, depararam-se com novas potências que não seguiram as “regras”, cresceram em poder, impondo-se internacionalmente, como a Rússia, a China, o Irão, a RPDC (Coreia do Norte), entre outros.
A guerra na Ucrânia, desde 2014 destinada a isolar e enfraquecer a Rússia, exauriu a população ucraniana, morta, ferida ou emigrada, tornou uma próspera República Soviética, num país falido e inviável. Agora o império, exibindo uma qualitativa inferioridade militar em relação à Rússia, apenas discute como se livrar de mais este fracasso.
No Médio Oriente, os EUA estão perante mais um dilema que criaram, com o conflito e a brutalidade israelense sobre os palestinos, para o qual não têm solução, que os aliena de todo o mundo muçulmano e não só, ao ficar a claro a sua duplicidade.
Reiniciando a História, o império vê-se olhado com sobranceria pelos que a sua arrogância transformou em adversários, mas até a guerra mediática estão a perder. A maioria dos povos já não acredita nas grandes corporações que possuem os media. Claro que no ocidente é diferente.
Mas exatamente o que significa o ocidente? O professor Jin Canrong, da Universidade Renmin em Pekin, explica: “O ocidente é composto por três grandes países e quatro pequenos países. Os três grandes países são os Estados Unidos, Europa e Japão, e os quatro pequenos são Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Israel. Eles formam um pequeno círculo fechado em que outros países não podem entrar”. [2]
Nem a Rússia nem a China têm ilusões sobre o ocidente. Na AG da ONU Lavrov disse que as garantias dos líderes ocidentais nada valem. Não se envergonham pelo facto da expansão da NATO para Leste também ter violado os acordos da OSCE. “O ocidente é um “império de mentiras”. Esta frase dita por um importante ministro russo, revela desprezo pelo ocidente só possível se o declínio do império não fosse uma evidência. (Geopolítica ao vivo, Telegram, 23/09)
Na reunião do Clube Internacional de Valdai, em 5 de outubro, Putin voltou a definir as linhas da alternativa ao mundo unipolar dos EUA: “Enfrentamos a tarefa de construir um novo mundo. A Rússia foi capaz de dar uma enorme contribuição para a nova ordem mundial. Os problemas globais da humanidade exigem soluções coletivas, o egoísmo e a presunção levarão a um beco sem saída. A prosperidade ocidental foi alcançada em grande parte roubando todo o planeta e através da expansão”.
As velas que o anticomunismo andou a acender pela “liberdade” na Polónia, os delirantes festejos pela queda do Muro de Berlim, que significavam outro “império de mil anos” para o ocidente “roubando todo o planeta”, resultou em crises generalizadas, a ascensão da besta fascista e ameaças de guerra, como derradeiro recurso do imperialismo.
É evidente que o império e seus acólitos já nada podem fazer de construtivo, semeiam conflitos, criam o caos, induzem “quintas-colunas” seduzidas pela opulência dos ultraricos, enquanto os psicóticos neocons elaboram delírios nucleares porque, enfim, os EUA não são capazes de enfrentar a derrota, não a conceberam, nem os acéfalos governos europeus obedientes, completamente à margem da realidade. Enfrentar a realidade tornou-se uma das questões fundamentais do século XXI.
[1] Trocadilho com CAD, Computer Aided Design (projeto assistido por computador)
[2] Jin Canrong: O mundo entrou num “mundo de grandes disputas”. (da tradução automática)
Dezembro de 1991, fim da União Soviética – início do século XXI (resistir.info)