Como a emergência de um país que rejeita dogmas neoliberais, e está construindo o Comum, pode sacudir um Ocidente às voltas com desigualdade, estancamento econômico, devastação ambiental e fascismo. Crônica de uma viagem
Por Antonio MARTINS
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Cravada a 2,4 mil quilômetros de Pequim, mas a apenas duzentos da fronteira com o Vietnã, a estação ferroviária de Nanning é um das joias de infraestrutura que povoam a paisagem chinesa. Inaugurada em 1951, dois anos após o revolução liderada por Mao Zedong, ela foi reconstruída por inteiro em 2013. A área de seu saguão principal equivale à de seis campos de futebol, com pé direito de 48 metros. Agora, por lá passam também algumas das linhas da maior rede de trens de alta velocidade do mundo, que tem 35 mil quilômetros é e duas vezes mais extensa que todas as outras somadas.
Mas o gigantismo não ofusca a delicadeza. Os passageiros aguardam os trens em poltronas confortáveis – boa parte delas com massageador. O acesso às composições, que partem do andar subterrâneo, se dá por meio de portões de embarque semelhantes aos dos aeroportos, porém silenciosos. Há restaurantes e lojas, mas nenhum painel publicitário. A arquitetura inspira-se nas varandas da região de Guangxi. O ar é ameno. Apesar do imenso volume da estrutura, os verões indóceis da cidade (a temperatura pode chegar a 39ºC e a umidade produz sensação permanente de estufa) são suavizados por um sistema que combina ar condicionado e cortinas eletrônicas de vento. Duas linhas de metrô ligam a estação à cidade. A energia é fornecida por painéis fotovoltaicos.
Também fora da estação, tudo parece novo em Nanning: os prédios – alguns muito altos – de apartamentos ou escritórios, o transporte público, os sistemas que mantêm limpas as águas do largo rio Yong, o asfalto das ruas e até parte das árvores, escoradas por estacas que indicam plantio recente. A reurbanização da cidade – tinha 1 milhão de habitantes em 2002 e atingiu 8,5 milhões no ano passado – é uma pequena parte do movimento que livrou da pobreza, nas últimas três décadas, o equivalente a três Brasis.
A ação tornou-se intensa a partir de 2015. Vizinha à próspera Guangdong – fulcro da grande abertura da economia chinesa, em 1992 – a província de Guangxi havia ficado para trás. Lá, 32% da população é de origem zhuang (a maior minoria étnica do país) e 44% viviam na zona rural. Seu PIB per capita equivalia a apenas 60% da média nacional; 10,5% (ou 6,4 milhões de pessoas) viviam na pobreza. À época, Xi Jinping enunciava o objetivo de “prosperidade comum”, que revia, ao menos em parte, o padrão de desenvolvimento até então vigente.
A base para o resgate de Guangxi foi o investimento público maciço, que se estendeu muito além da transformação urbana. O Estado lançou um esforço meticuloso para identificar os focos e causas de pobreza rural – muitas vezes oculta em rincões remotos – e um movimento peculiar para superá-la, que examinaremos em detalhe mais tarde. Preservou-se a pequena propriedade camponesa. Estimulou-se entre outras atividades, em Guangxi, o processamento do chá, de ervas da medicina chinesa e de frutas. Cinco anos mais tarde, o processo estava concluído em todo o país.
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A força do dragão chinês é conhecida. A partir de 1977, a economia viveu um processo sem precedentes de industrialização, urbanização e avanço tecnológico. O país tornou-se a grande fábrica do mundo, e evoluiu da produção de têxteis e bugigangas eletrônicas baratas para bens e serviços sofisticados. Suas exportações são quase 50% superiores às dos EUA e o triplo das japonesas. A produção de riquezas materiais, quando medida pelo PIB, passou de menos de 3% a mais de 20% do total mundial e superou a dos Estados Unidos, segundo o critério que despreza a valorização artificial das moedas e considera a produção real.
Mas, previsivelmente, quase não se fala sobre o novo voo do dragão – aquele que poderia inspirar um Ocidente às voltas com múltiplas crises e acossado pelo fascismo. A eliminação da pobreza, as transformações como a de Guangxi, os novos saltos na Educação e Ciência ou os êxitos no combate à poluição e na transição energética não se devem apenas do crescimento do PIB. Derivam de uma virada política, que colocou a China na contramão da ortodoxia neoliberal e lhe permitiu evitar a armadilha rentista.
O giro de Xi não significa uma ruptura radical em relação ao de Deng. A China não quer se desfazer do capital externo ou das empresas privadas. O Estado continua a atraí-las e estimulá-las. Mas as duas marcas principais do processo de desenvolvimento agora são outras. A primeira é o investimento público maciço voltado ao bem-estar das maiorias. Ele eclipsa, em boa medida, a reprodução das relações capitalistas. Porque produz, ao contrário destas, igualdade e desmercantilização das relações sociais.
É fácil compreender. Quando as políticas de Saúde do Estado, por exemplo, apostam em seguros privados, o acesso aos serviços médicos passa a ser mediado pelo dinheiro e se torna, por isso, desigual. Cada indivíduo obtém aquilo que pode comprar – de hospitais com hotelaria cinco estrelas a clínicas populares precárias. Mas se o mesmo Estado oferece a todos redes públicas de médicos de família e hospitais de excelência, ele garante acesso igualitário e desconstrói a proteção privada – pois a torna supérflua.
O investimento público chinês é complementado pelo novo planejamento – ou projetamento, como preferem denominá-lo autores como Elias Jabbour. Mesmo nos momentos de maior abertura, o Estado chinês não deixou de definir condições gerais para atuação da empresa privada. Mas a partir de Xi esta ação tornou-se mais intensa – inclusive porque, numa sociedade mais rica, cresce a força dos grandes grupos privados e das relações capitalistas. Parte da ação estatal tem sentido defensivo. Ao contrário do que ocorre no Ocidente, as Big Techs chinesas são controladas. Em 2021, o Grupo Alibaba foi impedido de lançar o que poderia vir a ser uma moeda digital própria, capaz de submeter as relações sociais a sua própria lógica. Em 2022, o Estado extinguiu o negócio, então disseminado e exuberante, das aulas privadas de reforço escolar. Considerou que elas davam vantagens aos filhos das famílias mais ricas, no acesso às melhores instituições de ensino públicas.
O aspecto principal do projetamento, contudo, é induzir os agentes econômicos. Marx chamou de “anarquia da produção” ao caos que inevitavelmente se produz quando os capitalistas, movidos por seus interesses particulares, investem em atividades que tendem a ser destrutivas, social e ambientalmente. Na China, as empresas privadas estão em toda parte. Respondem por 80% do emprego urbano. Mas o Estado age para conduzi-las, por meio de um feixe de mecanismos como o crédito (concentrado em bancos públicos), os tributos, a criação de infraestrutura e a ação das estatais, dominantes nos setores estratégicos.
Um dos resultados é limitar a exploração dos trabalhadores. O salário médio por hora na indústria chinesa triplicou entre 2005 e 2016, segundo a Organização Internacional do Trabalho e atingiu US$ 3,60. Segue em alta (veja gráfico abaixo, da mesma fonte, para o período 2008-2022). Já era, há sete anos, 33% maior que no Brasil e 71% superior ao do México. A melhora das condições de vida e a transformação da infraestrutura, resultados do novo voo do dragão, espalham-se pela paisagem chinesa e serão examinados em detalhe, em textos futuros. Vale a pena apontar de relance, desde já, os efeitos do mesmo movimento num ponto determinante do debate político atual: as relações entre o ser humano e o ambiente.
Os anos da grande abertura econômica produziram, na China um aumento da contaminação e das emissões de CO². O uso do carvão, base histórica da matriz energética, intensificou-se. O país tornou-se conhecido por imagens de cidadãos mascarados e aflitos, sob os céus sempre turvos de Pequim ou Shangai. Eclodiram desastres ecológicos como a contaminação dos solos, a desertificação, secas e inundações extraordinárias em grandes rios como o Yangtze e o Amarelo.
O roteiro é um clássico. Da Inglaterra no início do século XIX à Índia e ao Vietnã contemporâneos, a industrialização foi sempre marcada por uma relação alienada, que vê a natureza como “recurso” a ser domado e explorado. As causas variam: da falta de consciência ecológica à chantagem do capital – que aceita deslocar suas indústrias, desde que contemplado com regras ambientais frouxas.
O que não está no script é um país do Sul Global assumir liderança na despoluição de sua sociedade e na conversão para energias limpas. Os primeiros sinais de preocupação ecológica na China vêm do início dos anos 1970, com políticas internas limitadas e participação tímida na Conferência de Estocolmo sobre Meio Ambiente, da ONU (1972) e na Rio-92. A mudança significativa começa há pouco mais de dez anos, já no período de Xi Jinping. Em 2012, o 18º congresso do Partido Comunista Chinês afirma que construir uma “civilização ecológica”, é um dos cinco “objetivos do desenvolvimento nacional”.
Outra vez, os resultados são obtidos por meio de investimento público e a condução, pelo Estado, dos agentes privados. No primeiro trimestre de 2023, a capacidade de geração de energia solar na China atingiu 228Gw – equivalente a dezesseis usinas de Itaipu, e mais que a de todos os outros países do mundo somados, segundo a organização norte-americana Global Energy Monitor. Mais 379Gw estão sendo instalados. A geração eólica ultrapassou 310Gw, o dobro de 2017 e o equivalente à soma dos sete países seguintes juntos. Em 2022, o país fabricou 80% dos painéis solares e 57,4% dos veículos elétricos do mundo.
Os resultados políticos do investimento público em favor do bem-estar chamam atenção. Há um vasto debate a ser feito sobre os sistemas institucionais do Ocidente e da China. O que se dirá a seguir não é uma tentativa simplista de apresentar as formas de governo chinesas como superiores – e este tema será retomado. Mas é preciso deixar que os fatos falem. Em março deste ano, a fundação Aliança de Democracias (AoD) sondou, em 53 países, a percepção de suas populações a respeito do caráter dos regimes políticos respectivos. A pesquisa denomina-se “Índice de Percepção de Domocracia”. Fundada por Anders Rasmussen, até há pouco secretário-geral da OTAN, a AoD é abertamente pró-ocidental. Mas a enquete revelou que 73% dos chineses consideram seu país “democrático”, enquanto o percentual cai para 54% nos EUA, 53% na Holanda e 49% na França. Uma das causas centrais parece estar no fato de que 58% dos norte-americanos acreditam que seu sistema político serve “à minoria”. Na China, são apenas 10%.
There is no alternative, disse Margareth Thatcher, e cunhou a frase que se tornou emblema do neoliberalismo. Pode haver, em meio à crise civilizatória em que mergulhou o planeta, um país onde as maiorias acreditam que o Estado age em seu favor – e em que esta opção é bem sucedida?
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Ao longo do tempo, a liderança chinesa soube tirar proveito das ideias vindas do exterior, sempre que as julgou adequadas a seu projeto. Num mundo idílico, livre da luta de classes e de suas misérias, as soluções chinesas seriam agora examinadas pelas elites ocidentais com atenção e interesse; e em seguida adaptadas e incorporadas, ao menos em parte.
Há um motivo para que isso não ocorra. A China avança sobretudo porque contraria os dogmas que mantêm em pé o edifício ideológico neoliberal; e em especial, por ter evitado o rentismo, a forma ultraparasitária de captura da riqueza coletiva que caracteriza o capitalismo contemporâneo. A riqueza coletiva que lá assume a forma de investimentos públicos, modernização da infraestrutura, valorização dos salários ou transição energética, aparece no Ocidente transmutada em múltiplas demonstrações de fausto individual e regalias. Mas expressa-se sobretudo na “exuberância irracional” dos mercados financeiros; nos mega-fundos globais de investimento, que acumulam patrimônio superior ao PIB dos EUA; nos paraísos fiscais onde os muito ricos mantêm seu dinheiro para se livrar de impostos; na corrupção permanente do sistema político pelo poder econômico, raiz da crise que consome a democracia.
Aprender com a China significaria, para a classe rentista que passou a governar o capitalismo, abrir mão de seus privilégios e desconstruir a si mesma. Por isso, ao invés de olhar para a experiência chinesa, fazem-se curiosos esforços para evitar que ela seja examinada. Busca-se isolá-la; bloquear os caminhos por onde avança; se possível, provocar seu fim.
Na esfera econômica, os EUA e seus aliados fazem-no por meio de uma guerra comercial que nega a globalização – seu projeto mais caro por décadas – para tentar evitar que Pequim tenha acesso aos chips mais avançados e possa assumir liderança também em tecnologias como a inteligência artificial. No plano geopolítico, os EUA mergulharam, desde Barack Obama, em um giro para a Ásia. Para isso, aceitaram abrir mão de controlar o Oriente Médio – até então seu objetivo estratégico central. O movimento acirrou-se sob Donald Trump e não refluiu com Joe Biden. Em seu movimento mais recente, Washington tenta atrair a China, em Taiwan, para uma cilada semelhante à que armou para a Rússia na Ucrânia.
Mas é no terreno da luta de ideias que a ofensiva anti-Pequim torna-se intensa e quotidiana. E surge uma virada reveladora. A China foi, durante muitos anos, enaltecida pelos políticos e ideólogos do establishment ocidental. Milton Friedman e Margareth Thatcher visitaram-na e se entusiasmaram. Na narrativa dos neoliberais, o país era visto como prova da inevitabilidade do capitalismo. A União Soviética caíra. A abertura chinesa à empresa privada supostamente confirmava que era inútil e tolo desafiar a supremacia dos mercados. O Partido Comunista governava, é verdade. Mas o fim deste resquício maoísta e a emergência de uma democracia liberal eram apenas questão de tempo. Além de tudo, os chineses usavam seus superávits comerciais gigantescos para financiar, com compras maciças de treasuries, o déficit comercial dos Estados Unidos…
A lua-de-mel azedou quando ficou claro que a China não tencionava submeter-se – e tinha outro projeto. Agora, voltam à cena as armas conhecidas da demonização. Para que suas políticas antineoliberais não “contaminem” o debate político, Pequim é apresentada nas mídias do Ocidente como uma espécie de mundo inferior, incomunicável. Dados como os vistos acima, sobre o aumento expressivo dos salários reais e o avanço da transição energética, causariam impacto, se fizessem parte do debate corrente. Para bloquear este risco, mobilizam-se os preconceitos. O país é apresentado como uma ditadura autoritária, em que a população trabalha sem direitos, não desfruta das liberdades básicas e é obrigada a engolir ordens impostas de cima.
Livros como o recente Como a China escapou da terapia de choque, de Isabella Weber, descrevem as polêmicas intensas e às vezes prolongadas que precedem, em Pequim, a tomada de decisões cruciais. Quem lê os jornais e os artigos dos think tanks chineses disponíveis em inglês dá-se conta de como são tratados, aberta e extensamente, problemas como desemprego juvenil, a redução do crescimento econômico pós-pandemia ou os riscos à privacidade representados pelo reconhecimento facial. De nada serve: para as mídias ocidentais, a China continua a ser o deserto de debate de ideias.
Nos séculos XVI e XVII, os missionários jesuítas que foram à China trouxeram ao Ocidente o pensamento de Confúcio. Traduziram-no e o publicaram. Julgaram que, por defender uma ética sem deus e sem fantasias em relação à vida pós-morte, o filósofo não concorria com as crenças cristãs. Suas ideias, imaginaram, podiam ser incorporadas à doutrina hegemônica, que se tornaria mais rica. No século XXI, um neoliberalismo convertido em dogma não é capaz de fazer o mesmo com as saídas chinesas para a crise global…
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A poética política que a China projeta também incomoda à esquerda, quando esta é romântica. Pequim parece-lhe impura: aceitou a lógica suja dos mercados, quando isso lhe foi indispensável. E mesmo hoje, quando é um nítido contraponto ao credo capitalista, o processo chinês não cabe no figurino das velhas ideias de revolução. Xi Jinping parece simpático e bem humorado. Mas como compará-lo, segundo certa estética, a Lênin e Trotsky, celebrando no Smolny a vitória da revolução; ou a Fidel e o Che, em meio a guerrilhas, charutos, salsa e rum?
A ilusão romântica tem um preço. Mais de trinta anos após o fim da União Soviética, a esquerda no Ocidente não foi capaz de formular um projeto alternativo. E quase nunca reconhece que ele é necessário, diante das imensas mudanças operadas, desde o pós-II Guerra, na produção e captura das riquezas, na estrutura de classes, na natureza e composição do poder político e nas relações sociais. Divide-se entre um pragmatismo eleitoral cego e uma nostalgia diante de uma classe operária que já não existe e das revoluções que ficaram para trás.
A poética chinesa, ao contrário, é antropofágica. Parece não crer em ideal. Deglute e transforma o que lhe serve. Não se vê como modelo. Reconhece o experimento e o erro. Sua trajetória está transformando o mundo. Por desprezar a perfeição, é um convite fascinante à criação política.
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Visitei Pequim e a região de Guangxi entre 12 e 26 de julho, a convite da embaixada chinesa em Brasília e do Grupo Internacional de Comunicações da China. Este é o primeiro de uma série de textos originados da viagem e de um longo acompanhamento da realidade do país, que segue em curso. O objetivo político é explícito: verificar de que forma as políticas chinesas podem ser contraponto à onda de regressão e pessimismo que marca o Ocidente.