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April 12, 2024
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Achatamento dos salários e pensões. Tarifaço. Desmonte dos serviços públicos. População se precariza, mas ganham os exportadores de matérias-primas e fundos especulativos. País é o novo laboratório ultraliberal. As ruas frearão a catástrofe?

Eduardo GIORDANO

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Depois de quase quatro meses de governo de Javier Milei, a economia argentina continua em queda livre. Quase todos os indicadores de atividade e de consumo mostram sinais de forte depressão, com a única exceção das exportações de bens primários. Enquanto isso, os planos autoritários do presidente fracassaram pela segunda vez no Congresso. Depois de ter retirado a Lei Ómnibus por falta de apoio dos legisladores, o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) promulgado em dezembro foi rejeitado por ampla maioria no Senado (42 votos contra e 25 a favor). Contudo, os mais de 300 artigos do DNU que não foram suspensos pela Justiça permanecem em vigor desde o momento de sua promulgação, até que o decreto seja debatido na Câmara dos Deputados para sua rejeição ou aprovação definitiva.

Com estes dois instrumentos jurídicos, que totalizavam mais de mil artigos, o governo Milei esperava reconfigurar as “bases” da sociedade argentina. O fracasso político do presidente alimenta o conflito declarado pelo Executivo contra outros poderes do Estado: o Legislativo e os governadores das províncias, a quem acusa de boicotar a mudança que propõe, por interesses supostamente mesquinhos.

Desvalorização, inflação e reavaliação do peso

Poucos dias após a posse do governo Milei, o ministro da Economia, Luis Caputo, anunciou uma desvalorização brutal do peso de 118%, o que funcionou como um gatilho para a inflação, principalmente nas áreas de alimentação e necessidades básicas. Os salários, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), perderam 16% do poder de compra devido à inflação em dezembro e janeiro, com queda mais acentuada no setor público. As aposentadorias recuaram ainda mais: estima-se que, ao final de março, a queda teria sido de 33,8% em termos reais.

Enquanto o governo Milei empreende mais energia no ajuste sobre os setores mais vulneráveis da população, como os aposentados e as pessoas com deficiência, e corta despesas sociais básicas, como a entrega de medicamentos oncológicos e alimentos para cozinhas comunitárias, uma tropa de especuladores sem escrúpulos usufruem dos benefícios que o ajuste proporciona aos seus negócios, sejam eles produtores ou distribuidores de bens de consumo em massa ou operadores financeiros. Os primeiros se beneficiam da inflação que eles próprios retroalimentam, os segundos se beneficiam das elevadas taxas de juro (as mais elevadas do mundo) que esta espiral inflacionária possibilita.

A inflação acumulada durante o primeiro trimestre do governo de La Libertad Avanza (LLA), entre os meses de dezembro e fevereiro, ultrapassou os 70% (13,2% em fevereiro). No entanto, desde o final de janeiro houve uma forte revalorização do peso, de mais de 20% em relação ao dólar azul ou informal, um movimento imprevisto e bastante implausível para a história cambial da Argentina no contexto atual.

No meio de uma perspectiva econômica desoladora, com uma queda notável na produção industrial e no consumo interno, o governo celebrou estes dados cambiais como altamente positivos, travando assim o dilúvio de más notícias econômicas. Dados do Indec mostram que em janeiro de 2024 a atividade industrial caiu 12% e a construção 22%, face ao mesmo mês do ano anterior.

Enquanto são anunciados mais fechamentos de fábricas, por exemplo no setor metalúrgico, os continuam os aumentos de tarifas nos serviços energéticos devido à remoção dos subsídios estatais, e alerta-se que a eletricidade e o gás poderão aumentar em 400% e 600% respectivamente, de forma escalonada ao longo dos próximos meses.

No meio deste caos desregulatório com forte impacto na produção e nas famílias, é surpreendente a anomalia cambial de uma moeda que pela primeira vez começa a se valorizar em vez de seguir a lógica habitual de desvalorização.

Uma causa aparente desta mudança na tendência temporária poderia ser a escassez física de notas de peso no mercado informal de câmbio. Os pesos são escassos devido ao aumento dos gastos por causa da inflação, à estagnação dos rendimentos e à falta de emissão monetária sob a forma de notas físicas, que são exigidas nas “cuevas” (escritórios ilegais) onde o dólar paralelo é trocado.

Além disso, o valor máximo das notas de peso tornou-se completamente obsoleto após sucessivas desvalorizações e ondas inflacionárias, uma vez que o papel de maior valor é hoje equivalente a dois dólares (2.000 pesos) e ainda não é aceito por muitos caixas de banco. O governo anunciou a emissão de notas de maior denominação que ainda não estão disponíveis. E as moedas praticamente desapareceram. Seu preço vendido como metais pode atingir até 15 vezes seu valor nominal.

O “aspirador” monetário do Banco Central

As restrições à emissão de notas em pesos afetam a capacidade de compra em dinheiro, ou seja, aqueles que negociam fora dos canais eletrônicos, particularmente o extenso setor da economia informal, mas não significa que o governo tenha posto fim à emissão monetária, como sustenta Milei. As novas emissões foram feitas na forma de títulos. Embora a base monetária permaneça em torno de 10,4 trilhões de pesos desde o final de 2023, o dinheiro em circulação representa um valor de compra muito inferior devido ao efeito da inflação.

Segundo reportagem jornalística do Infobae de 6 de março, “o mercado está ‘seco’ de pesos devido à intensa absorção monetária realizada simultaneamente pelo Banco Central [com a emissão de passivos remunerados em pesos, e também em dólares, como Bopreal] e o Ministério da Economia [emissão de títulos do Tesouro].”

Uma das principais causas da valorização inesperada do peso foi a compra de dólares pelo Banco Central, que acumulou cerca de 10 bilhões de dólares durante os primeiros três meses do governo. A origem desses dólares veio tanto do mercado interno quanto do exterior.

Em primeiro lugar, o Banco Central sugou os dólares de particulares e pequenas empresas que abriram mão das suas poupanças para enfrentar a situação de emergência econômica. O próprio Javier Milei admitiu-o cinicamente numa entrevista transmitida em cadeia nacional: “E se for necessário que entre mais dinheiro no sistema, os próprios agentes entrarão; por exemplo, eles vão abrir o colchão e começar a fazer transações.”

Outro fator importante foram os dólares captados do exterior devido à alta taxa de juros, de 100% — o Banco Central reduziu para 80% no dia 12 de março, ao mesmo tempo em que desregulamentou as taxas que os bancos oferecem aos seus clientes pelos prazos fixados. Ou seja, o lançamento da chamada “bicicleta financeira”.

A estes dois fatores soma-se a liquidação de divisas do setor agroexportador, que por razões sazonais será maior entre abril e junho, quando são cobradas as retenções de impostos da chamada “safra bruta”. O governo espera então obter a quantia de dólares que lhe permitirá reequilibrar as suas contas, enquanto o setor agroexportador obterá vantagens desta situação; é muito provável que para liquidar as colheitas de soja e milho seja necessária uma desvalorização ou um câmbio preferencial.

Na primeira intervenção do ministro da Economia, Luis Caputo, quando anunciou a desvalorização do peso de 118%, ele confirmou também que tinha sido estabelecido um sistema de mini-desvalorizações periódicas automáticas, tecnicamente conhecido como crawling peg (âncora por gotejamento), pelo qual o Banco Central faz ajustes graduais predefinidos na taxa de câmbio para aproximar a taxa de câmbio oficial das expectativas das taxas de câmbio financeiras e informais.

Desta forma, mantém-se uma depreciação progressiva do peso, embora de forma comedida ao longo do tempo, o que permite prever a taxa de câmbio futura para beneficiar a entrada de capital estrangeiro e garantir os termos da sua posterior saída ou fuga. Esta é uma fórmula endossada pelo FMI, com o objetivo de aproximar mais rapidamente o valor do dólar oficial do paralelo e de evitar os controles cambiais.

O retorno da bicicleta financeira

Durante o governo de Mauricio Macri, entre 2015 e 2019, o atual ministro da Economia, Luis Caputo, lançou um esquema de pilhagem econômica para favorecer bancos e fundos de investimento estrangeiros conhecido como “bicicleta financeira”, ou internacionalmente como carry trade.

Após a assinatura de um acordo com os “fundos abutres”, que têm títulos que levaram o governo de Cristina Fernández de Kirchner a não cumprir os pagamentos em 2014, o governo de Macri começou em 2016 a contrair dívida em dólares e a emitir dívida em pesos através de Cartas do BCRA , mais conhecidos como Lebacs, com altas taxas de juros. Com juros de 26% ao ano, a bicicleta “consistia em trazer dólares, trocá-los por pesos, investir em Lebacs, ganhar 2,2% em um mês, reconverter em dólares pela mesma taxa original e depois sacar o dinheiro”, indica um analista citado pela BBC, uma rentabilidade que naquela altura não poderia ser alcançada em nenhum país do mundo.

É preciso dizer que este tipo de fuga não foi algo original do macrismo. Anteriormente, em outros governos com políticas neoliberais, havia uma história de “bicicleta financeira” ou “plata dulce”, como foi chamada durante a última ditadura.

Na época de Milei, com taxas de juros superiores a 100%, grandes fundos de investimento estrangeiros podem obter retornos muito mais elevados. A condição para que este esquema possa atrair capital do exterior através de incursões especulativas de fundos internacionais é eliminar completamente os controles cambiais, os chamados estoques. Ou, na falta disso, reduzir ao mínimo a diferença entre o valor do dólar oficial e o dólar informal ou azul. Um assessor financeiro entre os muitos que pululam nas redes sociais garantiu em fevereiro que “há fundos de dinheiro no exterior que pedem por favor que a Argentina levante os estoques”, já que desta forma “os dólares podem entrar, eles os convertem em pesos com uma taxa de 10% em um mês, voltam a converter para dólar e ganharam 10% em dólares. A famosa bicicleta financeira”. Obter esse rendimento em dólares “leva a um bom ano” no resto do mundo.

Para que a especulação financeira obtenha este retorno exorbitante, a taxa de câmbio peso/dólar deve permanecer estável. Daí a insistência dos “investidores” e do FMI para que os controles cambiais sejam removidos. Se ocorrer uma desvalorização do peso enquanto os especuladores mantêm prazos fixos com altas taxas de juros nesta moeda, os lucros e possivelmente boa parte do capital investido viram fumaça. Dado que se trata de um negócio de risco, para que o capital flua para o sistema financeiro é essencial ancorar a taxa de câmbio de forma temporariamente estável. Se o governo puder garantir de alguma forma, está garantida a entrada de dólares, que obterão uma renda muito elevada durante seu trânsito pelo peso.

Existem também mecanismos sofisticados para evitar a exposição do investidor a uma “corrida” cambial. Em vez de contratar o convencional prazo fixo de um mês, alguns consultores financeiros aconselham limitar o risco fazendo a bicicleta financeira “com instrumentos de resgate rápido, como garantias de bolsa ou fundos mútuos de investimento MoneyMarket, que, embora paguem uma rentabilidade um pouco menor do que o prazo fixo, permitem que você saia muito mais rápido.”

Durante a campanha eleitoral, Javier Milei dedicou-se a demolir a credibilidade da moeda argentina, declarando que “o peso não vale nada”, e assim conseguiu que muitos cidadãos transferissem as suas poupanças para dólares.

Depois vieram a desvalorização e o aumento generalizado dos preços, mantendo os rendimentos congelados, de modo que uma parte da população teve que recorrer às suas poupanças em dólares e vender essas notas a uma taxa de câmbio muito menos favorável. Em fevereiro o peso valorizou perto de 20% em relação ao dólar paralelo, voltando ao valor que tinha em dezembro de 2023. No entanto, a inflação continuou a subir com um aumento de 13,2% apenas nesse mês, e as previsões para o mês de março flutuam em torno da mesma cifra.

O Banco Central comporta-se assim, como um gigantesco aspirador de pó dos dólares acumulados como reservas pela população. Milei comemorou em sua conta na rede X que a população, e em especial a classe média, estava abrindo mão de suas economias em dólares para poder pagar os aumentos estratosféricos de alimentos, medicamentos, planos de saúde, taxas de serviços, etc. É precisamente isso que se procura com a “honestidade” de preços que o governo proclama.

Uma economia bimonetária

Nas últimas cinco décadas, o dólar adquiriu importância crescente na economia argentina, que se define e se comporta de fato como bimonetária. Com efeito, a Argentina é um país com duas moedas: a sua própria moeda desvalorizada e desvalorizável, e a moeda de reserva, que os indivíduos acumulam como o seu principal “investimento”.

A consagração da divisa estadunidense como valor de refúgio contra a inflação galopante remonta a meados da década de 1970, quando o plano econômico – de ajuste e corte de gastos públicos – da ditadura de Videla e do seu ministro da Economia, José Martínez de Hoz levou a uma perda sustentada e muito significativa do valor do peso e popularizou a compra de dólares entre os pequenos poupadores.

O filme Plata dulce dá conta deste significativo fenômeno sociocultural, condenado pelo regime como conduta especulativa, nas suas tentativas de travar a inflação com taxas de juro muito elevadas. A inflação desenfreada já tinha levado os argentinos a terem de escolher em que moeda “investir” o seu salário ou aposentadoria, para poupar ou apenas sobreviver. Diante de prazos fixos em pesos, sempre sujeitos a possíveis desvalorizações, a maioria dos poupadores foi às “cuevas” da city portenha para comprar as notas verdes.

A centralidade do dólar como referência monetária é consequência direta da inflação, sustentada ao longo de décadas, com picos de hiperinflação. O dólar torna-se assim uma sólida referência de valor e âncora monetária da atividade econômica no mercado interno. Embora os bens de consumo sejam trocados em pesos, os valores dos imóveis são estabelecidos e transmitidos em dólares.

Automóveis, eletrodomésticos e outros bens duráveis atualizam seus preços a cada salto do dólar. Dada a fraqueza histórica do peso, uma parte significativa da classe média argentina compra anualmente cerca de 20 bilhões de dólares para “acumular”, e estima-se que as suas poupanças acumuladas nas últimas duas décadas totalizem cerca de 200 bilhões, dos quais 40% estariam fora dos circuitos oficiais e poderiam estar sujeitos a lavagem de dinheiro.

As classes sociais de maior renda da população argentina concentram uma parcela significativa do total de dólares que circulam fora dos Estados Unidos nas mãos de pessoas físicas, tanto em contas no exterior quanto fisicamente no país, em cofres bancários. Depósitos em dólares em contas bancárias argentinas são mais raros, devido a experiências passadas de confiscos de contas em moeda estrangeira e do famoso “corralito”.

Assim, os dólares são acumulados improdutivamente em cofres ou “debaixo do colchão”. O fato de a nota de cem dólares ser o bem mais precioso para uma parte substancial da classe média argentina condiciona fatalmente o sucesso de qualquer política monetária destinada a consolidar o peso como moeda nacional. Uma mudança de mentalidade monetária encontraria enorme resistência social, principalmente entre as classes médias, que sempre viram as suas poupanças em pesos liquefeitas devido à inflação excessiva.

Rumo a uma dolarização incerta

Numa reunião que o governo Milei manteve com os quadros do FMI no final de fevereiro, esta entidade sugeriu a possibilidade de eliminar os controles cambiais – os chamados cepos – em meados de 2024. Tudo dependeria da obtenção de divisas estrangeiras necessárias para ser capaz de suportar a taxa de câmbio determinada pelo mercado. Para obter estas divisas, o governo lançou um plano de “aspirador” de notas verdes, que consiste em absorver as poupanças em dólares dos setores da classe média e das pequenas empresas que se desfazem dos seus ativos financeiros para sobreviver.

No final de fevereiro, Milei argumentou que com a compra de dólares no mercado seu governo já tinha 87% da base monetária e, portanto, faltava pouco para conseguir dolarizar. Dito assim, esse argumento nada mais é do que uma falácia, pois não contempla o endividamento do Banco Central com passivos remunerados, os títulos de um dia chamados Passes, passivos que são de um dia e rendem juros de 100% ao ano a uma taxa taxa nominal, o que equivale a uma taxa efetiva de 171% ao ano.

Esses títulos somam três vezes a base monetária, que permanece em pouco mais de 10,5 trilhões, apesar da desvalorização do peso. De qualquer forma, é impossível dolarizar sem antes liquidar essas dívidas com bancos e fundos de investimento, que são os beneficiários de altas taxas de juros.

Um dos indicadores de que as reservas em dólares são insuficientes é que a transferência de divisas estrangeira para pagar as importações é feita em quatro parcelas, 30, 60, 90 e 120 dias. A única exceção é a feita pelo ministro da Economia para as importações de alimentos da cesta básica, na sua tentativa de reduzir a inflação, que são liquidadas no prazo de 30 dias. Outras empresas tiveram que suspender a atividade nas suas fábricas porque não dispõem das divisas necessárias para adquirir maquinaria ou matérias-primas no exterior.

O governo Milei substituiu os títulos Leliqs, com prazo de um mês, pelos Passes, com vencimento diário. Isto não resolve o problema da dívida do Banco Central. Com a oferta de novos instrumentos financeiros atrelados ao preço do dólar, há uma transferência de dívidas de passivos remunerados em pesos para títulos referenciados em dólares, como o Bopreal (Bono para a Reconstrução de uma Argentina Livre), com prazo de vencimento a vários anos.

Estas críticas não são especulações dos seus oponentes “de esquerda”. Diego Giacomini, o economista ultraliberal que inspirou os primeiros passos de Milei nesta corrente de pensamento e lhe apresentou a “economia austríaca”, resume como funciona a bicicleta financeira: “Até poucos dias atrás Milei dizia: ‘Compramos 10 bilhões (de dólares) de reservas. É isso que ele quer te mostrar, mas o que ele está escondendo de você? Para comprar essa quantidade de reservas, ele emitiu nove trilhões de pesos, o equivalente à quantidade de dinheiro nas ruas, e dos 10 tri guarda apenas 7, perdendo 30% ao longo do caminho. Emite nove trilhões com os Passes, que é um dinheiro que paga juros em pesos, e esses Passes são sacados com o Bopreal, que é uma dívida em dólares, que paga juros em dólares. Tudo isto põe em funcionamento uma máquina de dívidas cujos pato pagaremos mais tarde.” Giacomini publicou alguns livros em colaboração com Mieli, fez o prefácio em outros e atuou como cumpincha do presidente em seus programas de televisão, embora mais tarde tenha se tornado um de seus críticos do mesmo espectro ideológico. Numa entrevista recente, ele fez cair por terra a possibilidade de uma dolarização iminente porque “os dólares não existem para dolarizar”, a menos que se faça “uma dolarização imperfeita, o que traria sérios problemas no caso de uma corrida” cambial.

Segundo outros analistas econômicos, como o jornalista Alfredo Zaiat, do Página 12, “o Banco Central de Milei só conseguiu reter 52% dos dólares adquiridos no mercado de câmbio”. A possibilidade de dolarização no curto prazo é muito incerta, a menos que o governo tenha financiamento externo para poder realizá-la, recorrendo a um maior endividamento. E se o governo está reduzindo o déficit fiscal com um custo social e econômico tão elevado, porque é que precisa aumentar a dívida? O especialista em dívida pública Alejandro Olmos, conhecido pelas suas investigações e denúncias contra governos anteriores por terem contraído dívida externa ilegítima, referiu-se num vídeo divulgado em 19 de março à “enorme dívida dos últimos dois meses, mais de 18 bilhões de dólares, além dos 12 trilhões que acabam de ser emitidos”.

Em todo caso, Milei não fala mais diretamente em dolarização, mas sim em adotar uma cesta de moedas entre as quais estariam o peso e o dólar estadunidense. Apesar do aumento da dívida pública com a emissão de novos títulos, Milei anunciou que enviaria uma lei ao Congresso com o objetivo de punir criminalmente a emissão monetária no futuro. Este anúncio poderia ser interpretado como uma medida de dissuasão para os governadores provinciais que pretendem imprimir quase-moedas locais (como o Chacho, na província de La Rioja) para completar o pagamento dos salários dos trabalhadores do setor público, compensando assim a falta de pesos enviados pelo governo nacional.

Capitais transnacionais com interesses na Argentina poderiam vir em auxílio do governo Milei para impor seu modelo econômico de ajuste e dolarização, como o fundo americano Blackrock, maior fundo de investimento do mundo e principal investidor em empresas de energia, bancos e até da dívida pública argentina.

Após uma reunião virtual entre o seu presidente Larry Fink e Javier Milei, no início de fevereiro, a BlackRock fez o gesto simbólico de comprar uma determinada quantidade de títulos Bopreal no mercado secundário de dívida, antecipando um movimento que poderá expandir-se no futuro. Segundo a Bloomberg, a BlackRock possui mais de US$ 1,6 bilhão em 20 títulos diferentes emitidos pela Argentina. Este fundo é o principal acionista privado da YPF, a petrolífera sob controle estatal, bem como o maior acionista do Banco Galicia e o segundo acionista do Banco Macro, além de estar presente nos setores das telecomunicações, eletricidade e cimento, entre outros.

Larry Fink concordou com Milei em visitar a Argentina em maio para embarcar em novos investimentos. Ao mesmo tempo, outros magnatas estadunidenses foram convidados ao país, como Elon Musk, chefe da Tesla e X entre outras multinacionais, que declarou seu interesse em investir na mineração de lítio segundo o próprio presidente, em um programa de televisão. A rede de satélites Starlink, de propriedade de Musk, foi a única empresa citada por Milei na promulgação do DNU e já opera no país.

O marco regulatório que o governo tenta desenvolver, de liberalização de investimentos com venda do território nacional e privatização de empresas e obras públicas, atrai capitalistas estrangeiros que saqueiam recursos. O fim dos controles cambiais seria o maior estímulo para um rápido aumento do investimento direto estrangeiro, o que poderia levar a um aumento no preço dos ativos das bolsas locais. No entanto, o receio de saltos repentinos nas taxas de câmbio devido à desconfiança nos resultados do seu plano econômico mantém esta possibilidade restringida por enquanto. Em qualquer caso, se estes capitais desejados chegassem do exterior, no máximo a situação financeira melhoraria, mas isso não teria qualquer impacto positivo na economia real, que é cada vez menos competitiva, exceto no setor exportador de bens primários. O resto continua sofrendo devido à desaceleração do consumo, com sinais negativos no que diz respeito à produção industrial, construção, comércio e emprego.

Brecha cambial e brecha social

Durante os primeiros cem dias do governo de Milei, a brecha cambial entre o dólar oficial e o dólar paralelo foi reduzida– com o risco de uma desvalorização iminente – mas abriu-se uma profunda brecha social entre os principais beneficiários das suas políticas e os setores mais vulneráveis. desfavorecidos da população: trabalhadores formais e informais e, mais particularmente, aposentados, sobre quem recaiu o maior peso do feroz ajuste fiscal. O governo emitiu um decreto para ajustar as aposentadorias à inflação a partir de abril, sem compensar a enorme perda de poder de compra dos meses anteriores. E, no final de março, o porta-voz presidencial Manuel Adorni anunciou outra reviravolta no ajuste com a suspensão da autorização de funcionamento de quase 12 mil cooperativas autorizadas pelo anterior governo.

Uma reportagem do jornal Página 12 sobre o colapso da economia argentina durante os primeiros meses do governo Milei relata uma queda na atividade de mais de 4% tanto em dezembro como em janeiro, e conclui corretamente: “Enquanto os mercados comemoram a alta nas ações, nos títulos e na estabilidade dos dólares financeiros, a economia real está em colapso”.

Um dos maiores problemas do governo Milei é a improvisação, a falta de um roteiro consistente que gere confiança a partir de uma sucessão de passos previsíveis. O presidente realmente não sabe se as medidas que adota serão viáveis ou não, se serão revogadas por um juiz ou invalidadas pelo Congresso e se terão algum resultado efetivo. Seu método de tentativa e erro se desenrola como um trem fantasma imprudente que corre descontroladamente com altos e baixos permanentes. E a sociedade argentina, presa nesta situação anômala, tornou-se um laboratório global para as novas políticas do capital para aprofundar a pilhagem dos recursos dos países dependentes, desmantelando regulamentações e bloqueando qualquer intervenção moderadora ou contrapeso do Estado.

Publicado originalmente por Outras Palavras

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Argentina: Milei busca a recolonização total

Achatamento dos salários e pensões. Tarifaço. Desmonte dos serviços públicos. População se precariza, mas ganham os exportadores de matérias-primas e fundos especulativos. País é o novo laboratório ultraliberal. As ruas frearão a catástrofe?

Eduardo GIORDANO

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Depois de quase quatro meses de governo de Javier Milei, a economia argentina continua em queda livre. Quase todos os indicadores de atividade e de consumo mostram sinais de forte depressão, com a única exceção das exportações de bens primários. Enquanto isso, os planos autoritários do presidente fracassaram pela segunda vez no Congresso. Depois de ter retirado a Lei Ómnibus por falta de apoio dos legisladores, o Decreto de Necessidade e Urgência (DNU) promulgado em dezembro foi rejeitado por ampla maioria no Senado (42 votos contra e 25 a favor). Contudo, os mais de 300 artigos do DNU que não foram suspensos pela Justiça permanecem em vigor desde o momento de sua promulgação, até que o decreto seja debatido na Câmara dos Deputados para sua rejeição ou aprovação definitiva.

Com estes dois instrumentos jurídicos, que totalizavam mais de mil artigos, o governo Milei esperava reconfigurar as “bases” da sociedade argentina. O fracasso político do presidente alimenta o conflito declarado pelo Executivo contra outros poderes do Estado: o Legislativo e os governadores das províncias, a quem acusa de boicotar a mudança que propõe, por interesses supostamente mesquinhos.

Desvalorização, inflação e reavaliação do peso

Poucos dias após a posse do governo Milei, o ministro da Economia, Luis Caputo, anunciou uma desvalorização brutal do peso de 118%, o que funcionou como um gatilho para a inflação, principalmente nas áreas de alimentação e necessidades básicas. Os salários, segundo dados oficiais do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), perderam 16% do poder de compra devido à inflação em dezembro e janeiro, com queda mais acentuada no setor público. As aposentadorias recuaram ainda mais: estima-se que, ao final de março, a queda teria sido de 33,8% em termos reais.

Enquanto o governo Milei empreende mais energia no ajuste sobre os setores mais vulneráveis da população, como os aposentados e as pessoas com deficiência, e corta despesas sociais básicas, como a entrega de medicamentos oncológicos e alimentos para cozinhas comunitárias, uma tropa de especuladores sem escrúpulos usufruem dos benefícios que o ajuste proporciona aos seus negócios, sejam eles produtores ou distribuidores de bens de consumo em massa ou operadores financeiros. Os primeiros se beneficiam da inflação que eles próprios retroalimentam, os segundos se beneficiam das elevadas taxas de juro (as mais elevadas do mundo) que esta espiral inflacionária possibilita.

A inflação acumulada durante o primeiro trimestre do governo de La Libertad Avanza (LLA), entre os meses de dezembro e fevereiro, ultrapassou os 70% (13,2% em fevereiro). No entanto, desde o final de janeiro houve uma forte revalorização do peso, de mais de 20% em relação ao dólar azul ou informal, um movimento imprevisto e bastante implausível para a história cambial da Argentina no contexto atual.

No meio de uma perspectiva econômica desoladora, com uma queda notável na produção industrial e no consumo interno, o governo celebrou estes dados cambiais como altamente positivos, travando assim o dilúvio de más notícias econômicas. Dados do Indec mostram que em janeiro de 2024 a atividade industrial caiu 12% e a construção 22%, face ao mesmo mês do ano anterior.

Enquanto são anunciados mais fechamentos de fábricas, por exemplo no setor metalúrgico, os continuam os aumentos de tarifas nos serviços energéticos devido à remoção dos subsídios estatais, e alerta-se que a eletricidade e o gás poderão aumentar em 400% e 600% respectivamente, de forma escalonada ao longo dos próximos meses.

No meio deste caos desregulatório com forte impacto na produção e nas famílias, é surpreendente a anomalia cambial de uma moeda que pela primeira vez começa a se valorizar em vez de seguir a lógica habitual de desvalorização.

Uma causa aparente desta mudança na tendência temporária poderia ser a escassez física de notas de peso no mercado informal de câmbio. Os pesos são escassos devido ao aumento dos gastos por causa da inflação, à estagnação dos rendimentos e à falta de emissão monetária sob a forma de notas físicas, que são exigidas nas “cuevas” (escritórios ilegais) onde o dólar paralelo é trocado.

Além disso, o valor máximo das notas de peso tornou-se completamente obsoleto após sucessivas desvalorizações e ondas inflacionárias, uma vez que o papel de maior valor é hoje equivalente a dois dólares (2.000 pesos) e ainda não é aceito por muitos caixas de banco. O governo anunciou a emissão de notas de maior denominação que ainda não estão disponíveis. E as moedas praticamente desapareceram. Seu preço vendido como metais pode atingir até 15 vezes seu valor nominal.

O “aspirador” monetário do Banco Central

As restrições à emissão de notas em pesos afetam a capacidade de compra em dinheiro, ou seja, aqueles que negociam fora dos canais eletrônicos, particularmente o extenso setor da economia informal, mas não significa que o governo tenha posto fim à emissão monetária, como sustenta Milei. As novas emissões foram feitas na forma de títulos. Embora a base monetária permaneça em torno de 10,4 trilhões de pesos desde o final de 2023, o dinheiro em circulação representa um valor de compra muito inferior devido ao efeito da inflação.

Segundo reportagem jornalística do Infobae de 6 de março, “o mercado está ‘seco’ de pesos devido à intensa absorção monetária realizada simultaneamente pelo Banco Central [com a emissão de passivos remunerados em pesos, e também em dólares, como Bopreal] e o Ministério da Economia [emissão de títulos do Tesouro].”

Uma das principais causas da valorização inesperada do peso foi a compra de dólares pelo Banco Central, que acumulou cerca de 10 bilhões de dólares durante os primeiros três meses do governo. A origem desses dólares veio tanto do mercado interno quanto do exterior.

Em primeiro lugar, o Banco Central sugou os dólares de particulares e pequenas empresas que abriram mão das suas poupanças para enfrentar a situação de emergência econômica. O próprio Javier Milei admitiu-o cinicamente numa entrevista transmitida em cadeia nacional: “E se for necessário que entre mais dinheiro no sistema, os próprios agentes entrarão; por exemplo, eles vão abrir o colchão e começar a fazer transações.”

Outro fator importante foram os dólares captados do exterior devido à alta taxa de juros, de 100% — o Banco Central reduziu para 80% no dia 12 de março, ao mesmo tempo em que desregulamentou as taxas que os bancos oferecem aos seus clientes pelos prazos fixados. Ou seja, o lançamento da chamada “bicicleta financeira”.

A estes dois fatores soma-se a liquidação de divisas do setor agroexportador, que por razões sazonais será maior entre abril e junho, quando são cobradas as retenções de impostos da chamada “safra bruta”. O governo espera então obter a quantia de dólares que lhe permitirá reequilibrar as suas contas, enquanto o setor agroexportador obterá vantagens desta situação; é muito provável que para liquidar as colheitas de soja e milho seja necessária uma desvalorização ou um câmbio preferencial.

Na primeira intervenção do ministro da Economia, Luis Caputo, quando anunciou a desvalorização do peso de 118%, ele confirmou também que tinha sido estabelecido um sistema de mini-desvalorizações periódicas automáticas, tecnicamente conhecido como crawling peg (âncora por gotejamento), pelo qual o Banco Central faz ajustes graduais predefinidos na taxa de câmbio para aproximar a taxa de câmbio oficial das expectativas das taxas de câmbio financeiras e informais.

Desta forma, mantém-se uma depreciação progressiva do peso, embora de forma comedida ao longo do tempo, o que permite prever a taxa de câmbio futura para beneficiar a entrada de capital estrangeiro e garantir os termos da sua posterior saída ou fuga. Esta é uma fórmula endossada pelo FMI, com o objetivo de aproximar mais rapidamente o valor do dólar oficial do paralelo e de evitar os controles cambiais.

O retorno da bicicleta financeira

Durante o governo de Mauricio Macri, entre 2015 e 2019, o atual ministro da Economia, Luis Caputo, lançou um esquema de pilhagem econômica para favorecer bancos e fundos de investimento estrangeiros conhecido como “bicicleta financeira”, ou internacionalmente como carry trade.

Após a assinatura de um acordo com os “fundos abutres”, que têm títulos que levaram o governo de Cristina Fernández de Kirchner a não cumprir os pagamentos em 2014, o governo de Macri começou em 2016 a contrair dívida em dólares e a emitir dívida em pesos através de Cartas do BCRA , mais conhecidos como Lebacs, com altas taxas de juros. Com juros de 26% ao ano, a bicicleta “consistia em trazer dólares, trocá-los por pesos, investir em Lebacs, ganhar 2,2% em um mês, reconverter em dólares pela mesma taxa original e depois sacar o dinheiro”, indica um analista citado pela BBC, uma rentabilidade que naquela altura não poderia ser alcançada em nenhum país do mundo.

É preciso dizer que este tipo de fuga não foi algo original do macrismo. Anteriormente, em outros governos com políticas neoliberais, havia uma história de “bicicleta financeira” ou “plata dulce”, como foi chamada durante a última ditadura.

Na época de Milei, com taxas de juros superiores a 100%, grandes fundos de investimento estrangeiros podem obter retornos muito mais elevados. A condição para que este esquema possa atrair capital do exterior através de incursões especulativas de fundos internacionais é eliminar completamente os controles cambiais, os chamados estoques. Ou, na falta disso, reduzir ao mínimo a diferença entre o valor do dólar oficial e o dólar informal ou azul. Um assessor financeiro entre os muitos que pululam nas redes sociais garantiu em fevereiro que “há fundos de dinheiro no exterior que pedem por favor que a Argentina levante os estoques”, já que desta forma “os dólares podem entrar, eles os convertem em pesos com uma taxa de 10% em um mês, voltam a converter para dólar e ganharam 10% em dólares. A famosa bicicleta financeira”. Obter esse rendimento em dólares “leva a um bom ano” no resto do mundo.

Para que a especulação financeira obtenha este retorno exorbitante, a taxa de câmbio peso/dólar deve permanecer estável. Daí a insistência dos “investidores” e do FMI para que os controles cambiais sejam removidos. Se ocorrer uma desvalorização do peso enquanto os especuladores mantêm prazos fixos com altas taxas de juros nesta moeda, os lucros e possivelmente boa parte do capital investido viram fumaça. Dado que se trata de um negócio de risco, para que o capital flua para o sistema financeiro é essencial ancorar a taxa de câmbio de forma temporariamente estável. Se o governo puder garantir de alguma forma, está garantida a entrada de dólares, que obterão uma renda muito elevada durante seu trânsito pelo peso.

Existem também mecanismos sofisticados para evitar a exposição do investidor a uma “corrida” cambial. Em vez de contratar o convencional prazo fixo de um mês, alguns consultores financeiros aconselham limitar o risco fazendo a bicicleta financeira “com instrumentos de resgate rápido, como garantias de bolsa ou fundos mútuos de investimento MoneyMarket, que, embora paguem uma rentabilidade um pouco menor do que o prazo fixo, permitem que você saia muito mais rápido.”

Durante a campanha eleitoral, Javier Milei dedicou-se a demolir a credibilidade da moeda argentina, declarando que “o peso não vale nada”, e assim conseguiu que muitos cidadãos transferissem as suas poupanças para dólares.

Depois vieram a desvalorização e o aumento generalizado dos preços, mantendo os rendimentos congelados, de modo que uma parte da população teve que recorrer às suas poupanças em dólares e vender essas notas a uma taxa de câmbio muito menos favorável. Em fevereiro o peso valorizou perto de 20% em relação ao dólar paralelo, voltando ao valor que tinha em dezembro de 2023. No entanto, a inflação continuou a subir com um aumento de 13,2% apenas nesse mês, e as previsões para o mês de março flutuam em torno da mesma cifra.

O Banco Central comporta-se assim, como um gigantesco aspirador de pó dos dólares acumulados como reservas pela população. Milei comemorou em sua conta na rede X que a população, e em especial a classe média, estava abrindo mão de suas economias em dólares para poder pagar os aumentos estratosféricos de alimentos, medicamentos, planos de saúde, taxas de serviços, etc. É precisamente isso que se procura com a “honestidade” de preços que o governo proclama.

Uma economia bimonetária

Nas últimas cinco décadas, o dólar adquiriu importância crescente na economia argentina, que se define e se comporta de fato como bimonetária. Com efeito, a Argentina é um país com duas moedas: a sua própria moeda desvalorizada e desvalorizável, e a moeda de reserva, que os indivíduos acumulam como o seu principal “investimento”.

A consagração da divisa estadunidense como valor de refúgio contra a inflação galopante remonta a meados da década de 1970, quando o plano econômico – de ajuste e corte de gastos públicos – da ditadura de Videla e do seu ministro da Economia, José Martínez de Hoz levou a uma perda sustentada e muito significativa do valor do peso e popularizou a compra de dólares entre os pequenos poupadores.

O filme Plata dulce dá conta deste significativo fenômeno sociocultural, condenado pelo regime como conduta especulativa, nas suas tentativas de travar a inflação com taxas de juro muito elevadas. A inflação desenfreada já tinha levado os argentinos a terem de escolher em que moeda “investir” o seu salário ou aposentadoria, para poupar ou apenas sobreviver. Diante de prazos fixos em pesos, sempre sujeitos a possíveis desvalorizações, a maioria dos poupadores foi às “cuevas” da city portenha para comprar as notas verdes.

A centralidade do dólar como referência monetária é consequência direta da inflação, sustentada ao longo de décadas, com picos de hiperinflação. O dólar torna-se assim uma sólida referência de valor e âncora monetária da atividade econômica no mercado interno. Embora os bens de consumo sejam trocados em pesos, os valores dos imóveis são estabelecidos e transmitidos em dólares.

Automóveis, eletrodomésticos e outros bens duráveis atualizam seus preços a cada salto do dólar. Dada a fraqueza histórica do peso, uma parte significativa da classe média argentina compra anualmente cerca de 20 bilhões de dólares para “acumular”, e estima-se que as suas poupanças acumuladas nas últimas duas décadas totalizem cerca de 200 bilhões, dos quais 40% estariam fora dos circuitos oficiais e poderiam estar sujeitos a lavagem de dinheiro.

As classes sociais de maior renda da população argentina concentram uma parcela significativa do total de dólares que circulam fora dos Estados Unidos nas mãos de pessoas físicas, tanto em contas no exterior quanto fisicamente no país, em cofres bancários. Depósitos em dólares em contas bancárias argentinas são mais raros, devido a experiências passadas de confiscos de contas em moeda estrangeira e do famoso “corralito”.

Assim, os dólares são acumulados improdutivamente em cofres ou “debaixo do colchão”. O fato de a nota de cem dólares ser o bem mais precioso para uma parte substancial da classe média argentina condiciona fatalmente o sucesso de qualquer política monetária destinada a consolidar o peso como moeda nacional. Uma mudança de mentalidade monetária encontraria enorme resistência social, principalmente entre as classes médias, que sempre viram as suas poupanças em pesos liquefeitas devido à inflação excessiva.

Rumo a uma dolarização incerta

Numa reunião que o governo Milei manteve com os quadros do FMI no final de fevereiro, esta entidade sugeriu a possibilidade de eliminar os controles cambiais – os chamados cepos – em meados de 2024. Tudo dependeria da obtenção de divisas estrangeiras necessárias para ser capaz de suportar a taxa de câmbio determinada pelo mercado. Para obter estas divisas, o governo lançou um plano de “aspirador” de notas verdes, que consiste em absorver as poupanças em dólares dos setores da classe média e das pequenas empresas que se desfazem dos seus ativos financeiros para sobreviver.

No final de fevereiro, Milei argumentou que com a compra de dólares no mercado seu governo já tinha 87% da base monetária e, portanto, faltava pouco para conseguir dolarizar. Dito assim, esse argumento nada mais é do que uma falácia, pois não contempla o endividamento do Banco Central com passivos remunerados, os títulos de um dia chamados Passes, passivos que são de um dia e rendem juros de 100% ao ano a uma taxa taxa nominal, o que equivale a uma taxa efetiva de 171% ao ano.

Esses títulos somam três vezes a base monetária, que permanece em pouco mais de 10,5 trilhões, apesar da desvalorização do peso. De qualquer forma, é impossível dolarizar sem antes liquidar essas dívidas com bancos e fundos de investimento, que são os beneficiários de altas taxas de juros.

Um dos indicadores de que as reservas em dólares são insuficientes é que a transferência de divisas estrangeira para pagar as importações é feita em quatro parcelas, 30, 60, 90 e 120 dias. A única exceção é a feita pelo ministro da Economia para as importações de alimentos da cesta básica, na sua tentativa de reduzir a inflação, que são liquidadas no prazo de 30 dias. Outras empresas tiveram que suspender a atividade nas suas fábricas porque não dispõem das divisas necessárias para adquirir maquinaria ou matérias-primas no exterior.

O governo Milei substituiu os títulos Leliqs, com prazo de um mês, pelos Passes, com vencimento diário. Isto não resolve o problema da dívida do Banco Central. Com a oferta de novos instrumentos financeiros atrelados ao preço do dólar, há uma transferência de dívidas de passivos remunerados em pesos para títulos referenciados em dólares, como o Bopreal (Bono para a Reconstrução de uma Argentina Livre), com prazo de vencimento a vários anos.

Estas críticas não são especulações dos seus oponentes “de esquerda”. Diego Giacomini, o economista ultraliberal que inspirou os primeiros passos de Milei nesta corrente de pensamento e lhe apresentou a “economia austríaca”, resume como funciona a bicicleta financeira: “Até poucos dias atrás Milei dizia: ‘Compramos 10 bilhões (de dólares) de reservas. É isso que ele quer te mostrar, mas o que ele está escondendo de você? Para comprar essa quantidade de reservas, ele emitiu nove trilhões de pesos, o equivalente à quantidade de dinheiro nas ruas, e dos 10 tri guarda apenas 7, perdendo 30% ao longo do caminho. Emite nove trilhões com os Passes, que é um dinheiro que paga juros em pesos, e esses Passes são sacados com o Bopreal, que é uma dívida em dólares, que paga juros em dólares. Tudo isto põe em funcionamento uma máquina de dívidas cujos pato pagaremos mais tarde.” Giacomini publicou alguns livros em colaboração com Mieli, fez o prefácio em outros e atuou como cumpincha do presidente em seus programas de televisão, embora mais tarde tenha se tornado um de seus críticos do mesmo espectro ideológico. Numa entrevista recente, ele fez cair por terra a possibilidade de uma dolarização iminente porque “os dólares não existem para dolarizar”, a menos que se faça “uma dolarização imperfeita, o que traria sérios problemas no caso de uma corrida” cambial.

Segundo outros analistas econômicos, como o jornalista Alfredo Zaiat, do Página 12, “o Banco Central de Milei só conseguiu reter 52% dos dólares adquiridos no mercado de câmbio”. A possibilidade de dolarização no curto prazo é muito incerta, a menos que o governo tenha financiamento externo para poder realizá-la, recorrendo a um maior endividamento. E se o governo está reduzindo o déficit fiscal com um custo social e econômico tão elevado, porque é que precisa aumentar a dívida? O especialista em dívida pública Alejandro Olmos, conhecido pelas suas investigações e denúncias contra governos anteriores por terem contraído dívida externa ilegítima, referiu-se num vídeo divulgado em 19 de março à “enorme dívida dos últimos dois meses, mais de 18 bilhões de dólares, além dos 12 trilhões que acabam de ser emitidos”.

Em todo caso, Milei não fala mais diretamente em dolarização, mas sim em adotar uma cesta de moedas entre as quais estariam o peso e o dólar estadunidense. Apesar do aumento da dívida pública com a emissão de novos títulos, Milei anunciou que enviaria uma lei ao Congresso com o objetivo de punir criminalmente a emissão monetária no futuro. Este anúncio poderia ser interpretado como uma medida de dissuasão para os governadores provinciais que pretendem imprimir quase-moedas locais (como o Chacho, na província de La Rioja) para completar o pagamento dos salários dos trabalhadores do setor público, compensando assim a falta de pesos enviados pelo governo nacional.

Capitais transnacionais com interesses na Argentina poderiam vir em auxílio do governo Milei para impor seu modelo econômico de ajuste e dolarização, como o fundo americano Blackrock, maior fundo de investimento do mundo e principal investidor em empresas de energia, bancos e até da dívida pública argentina.

Após uma reunião virtual entre o seu presidente Larry Fink e Javier Milei, no início de fevereiro, a BlackRock fez o gesto simbólico de comprar uma determinada quantidade de títulos Bopreal no mercado secundário de dívida, antecipando um movimento que poderá expandir-se no futuro. Segundo a Bloomberg, a BlackRock possui mais de US$ 1,6 bilhão em 20 títulos diferentes emitidos pela Argentina. Este fundo é o principal acionista privado da YPF, a petrolífera sob controle estatal, bem como o maior acionista do Banco Galicia e o segundo acionista do Banco Macro, além de estar presente nos setores das telecomunicações, eletricidade e cimento, entre outros.

Larry Fink concordou com Milei em visitar a Argentina em maio para embarcar em novos investimentos. Ao mesmo tempo, outros magnatas estadunidenses foram convidados ao país, como Elon Musk, chefe da Tesla e X entre outras multinacionais, que declarou seu interesse em investir na mineração de lítio segundo o próprio presidente, em um programa de televisão. A rede de satélites Starlink, de propriedade de Musk, foi a única empresa citada por Milei na promulgação do DNU e já opera no país.

O marco regulatório que o governo tenta desenvolver, de liberalização de investimentos com venda do território nacional e privatização de empresas e obras públicas, atrai capitalistas estrangeiros que saqueiam recursos. O fim dos controles cambiais seria o maior estímulo para um rápido aumento do investimento direto estrangeiro, o que poderia levar a um aumento no preço dos ativos das bolsas locais. No entanto, o receio de saltos repentinos nas taxas de câmbio devido à desconfiança nos resultados do seu plano econômico mantém esta possibilidade restringida por enquanto. Em qualquer caso, se estes capitais desejados chegassem do exterior, no máximo a situação financeira melhoraria, mas isso não teria qualquer impacto positivo na economia real, que é cada vez menos competitiva, exceto no setor exportador de bens primários. O resto continua sofrendo devido à desaceleração do consumo, com sinais negativos no que diz respeito à produção industrial, construção, comércio e emprego.

Brecha cambial e brecha social

Durante os primeiros cem dias do governo de Milei, a brecha cambial entre o dólar oficial e o dólar paralelo foi reduzida– com o risco de uma desvalorização iminente – mas abriu-se uma profunda brecha social entre os principais beneficiários das suas políticas e os setores mais vulneráveis. desfavorecidos da população: trabalhadores formais e informais e, mais particularmente, aposentados, sobre quem recaiu o maior peso do feroz ajuste fiscal. O governo emitiu um decreto para ajustar as aposentadorias à inflação a partir de abril, sem compensar a enorme perda de poder de compra dos meses anteriores. E, no final de março, o porta-voz presidencial Manuel Adorni anunciou outra reviravolta no ajuste com a suspensão da autorização de funcionamento de quase 12 mil cooperativas autorizadas pelo anterior governo.

Uma reportagem do jornal Página 12 sobre o colapso da economia argentina durante os primeiros meses do governo Milei relata uma queda na atividade de mais de 4% tanto em dezembro como em janeiro, e conclui corretamente: “Enquanto os mercados comemoram a alta nas ações, nos títulos e na estabilidade dos dólares financeiros, a economia real está em colapso”.

Um dos maiores problemas do governo Milei é a improvisação, a falta de um roteiro consistente que gere confiança a partir de uma sucessão de passos previsíveis. O presidente realmente não sabe se as medidas que adota serão viáveis ou não, se serão revogadas por um juiz ou invalidadas pelo Congresso e se terão algum resultado efetivo. Seu método de tentativa e erro se desenrola como um trem fantasma imprudente que corre descontroladamente com altos e baixos permanentes. E a sociedade argentina, presa nesta situação anômala, tornou-se um laboratório global para as novas políticas do capital para aprofundar a pilhagem dos recursos dos países dependentes, desmantelando regulamentações e bloqueando qualquer intervenção moderadora ou contrapeso do Estado.

Publicado originalmente por Outras Palavras