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January 17, 2024
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Sergey Karaganov, entrevistado por Evgeny Shostakov

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Em termos centro de poder global, o Velho Mundo está acabado. Moscovo entende isso, mas os nossos antigos parceiros permanecem em negação.

Não há muito tempo, o ministro da Defesa alemão Boris Pistorius disse: “A União Europeia tem de estar pronta para a guerra até ao fim da década”. Berlim começou a falar do regresso do serviço militar universal e dos preparativos para uma confrontação com Moscovo. Há sentimentos semelhantes na Polónia. Mas será apenas por causa dos acontecimentos na Ucrânia?

Qual é a razão para o recrudescimento do discurso de combate na Europa?

O importante jornal russo Rossiyskaya Gazeta entrevista o especialista em relações internacionais Sergey Karaganov, presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, supervisor académico da Escola Superior de Economia Internacional e Negócios Estrangeiros (HSE) em Moscovo e antigo conselheiro do Kremlin.

Evgeny Shostakov: Senhor Karaganov, tendo em conta a atual situação difícil da política externa, será necessária uma teoria conceptualmente diferente da dissuasão contra os inimigos da Rússia, a fim de parar o confronto crescente numa fase precoce e desencorajar os nossos adversários de alimentar conflitos?

As elites da Europa Ocidental – e especialmente da Alemanha – estão num estado de fracasso histórico. A base principal do seu domínio de 500 anos [do mundo] foi a superioridade militar, sobre a qual se construiu o domínio económico, político e cultural do Ocidente. Mas isso foi-lhes arrancado. Com a ajuda desta vantagem, manipularam os recursos do mundo a seu favor. Primeiro, pilharam as suas colónias e, mais tarde, fizeram o mesmo, mas com métodos mais sofisticados.

As elites ocidentais atuais não estão a conseguir resolver uma série de problemas crescentes nas suas sociedades. Estes incluem a redução da classe média e o aumento das desigualdades. Quase todas as suas iniciativas estão a fracassar. A União Europeia, como todos sabem, está a estender-se de modo lento mas constante. É por isso que a sua classe dirigente tem sido hostil à Rússia desde há cerca de 15 anos.

Precisam de um inimigo externo; Josep Borrell [o principal responsável pelos negócios estrangeiros da UE] chamou de selva o mundo em torno do bloco, no ano passado. Na verdade, no passado, a chanceler alemã Angela Merkel disse que as sanções adoptadas pela UE [contra a Rússia] eram necessárias, antes de mais, para unir a União Europeia e evitar o seu colapso.

As elites alemãs e da Europa Ocidental têm um complexo de inferioridade numa situação que, para elas, é agora monstruosa, em que a sua parte do mundo está a ser ultrapassada por todos. Não só pelos chineses e pelos americanos, mas também por muitos outros países. Graças à libertação do mundo do “jugo ocidental” pela Rússia, a Europa Ocidental já não está a dominar os Estados do Sul Global, ou, como lhes chamo, os países da maioria mundial.

A ameaça que agora se apresenta à Europa Ocidental é o facto de o Velho Mundo ter perdido o medo dos conflitos armados. E isso é muito perigoso. Ao mesmo tempo, o Ocidente da Europa, permitam-me que vos recorde, tem sido a fonte das piores catástrofes da história da humanidade.

Atualmente, na Ucrânia, há uma luta não só pelos interesses da Rússia, pelos interesses da sua segurança, mas também para evitar um novo confronto global. A ameaça está a crescer. Isso também se deve às tentativas desesperadas do Ocidente de contra-atacar para manter o seu domínio. As atuais elites da Europa Ocidental estão a fracassar e a perder influência no mundo muito mais do que as suas congéneres americanas.

A Rússia está a travar a sua própria batalha e a travá-la com êxito. Estamos a agir com confiança suficiente para dar juízo a estas elites ocidentais, para que não desencadeiem outro conflito mundial em desespero com os seus fracassos. Não devemos esquecer que os antecessores destas mesmas pessoas desencadearam duas guerras mundiais no espaço de uma geração, no século passado. Atualmente, a qualidade destas elites é ainda mais baixa do que era na altura.

Está a falar da derrota espiritual e política da Europa Ocidental como um facto consumado?

Sim, e isso é assustador. Afinal de contas, também fazemos parte da cultura europeia. Mas espero que, através de uma série de crises, daqui a 20 anos, digamos, prevaleçam forças sãs nesse lado do continente. E acordará do seu fracasso, incluindo o seu fracasso moral.

Para já, estamos a assistir à formação de uma nova Cortina de Ferro em relação à Rússia. O Ocidente está a tentar “apagar” o nosso país, incluindo nos domínios da cultura e dos valores. Há uma desumanização deliberada dos russos nos media. Devemos reagir de forma inversa e “cancelar” o Ocidente?

De modo algum. O Ocidente está agora a fechar a Cortina de Ferro, em primeiro lugar porque nós, na Rússia, somos os verdadeiros europeus. Continuamos a ser saudáveis. E eles querem excluir estas forças saudáveis. Em segundo lugar, o Ocidente está a fechar esta cortina, ainda mais firmemente do que durante a Guerra Fria, a fim de mobilizar a sua população para as hostilidades. Mas nós não precisamos de uma confrontação militar com o Ocidente, pelo que nos apoiaremos numa política de contenção para evitar o pior.

É claro que não vamos cancelar nada, incluindo a nossa história europeia. Sim, concluímos o nosso percurso europeu [em termos de integração]. Penso que se arrastou um pouco, talvez durante um século. Mas sem a inoculação europeia, sem a cultura europeia, não nos teríamos tornado uma grande potência. Não teríamos tido Dostoiévski, Tolstoi, Pushkin ou Blok.

Por isso, vamos manter a cultura europeia, que o Ocidente do nosso continente parece estar a tentar abandonar. Mas espero que não se destrua completamente, a este respeito. Porque a Europa Ocidental não está apenas a abandonar a cultura russa, está a abandonar a sua própria cultura. Está a anular uma cultura que se baseia largamente no amor e nos valores cristãos. Está a anular a sua história, a destruir os seus monumentos. No entanto, não rejeitaremos as nossas raízes europeias.

Sempre fui contra o facto de olharmos para o Ocidente com melindres. Não se deve fazer isso. Nesse caso, seríamos como eles. E eles estão agora a deslizar para uma marcha inevitável em direção ao fascismo. Não precisamos de todos os contágios que têm estado e estão a crescer a partir do Ocidente da Europa. Incluindo, mais uma vez, o contágio crescente do fascismo.

O ano de 2023 assistiu ao descongelamento de velhos conflitos e à criação demonstrativa das condições para novos conflitos – a explosão previsível do confronto israelo-palestino, uma série de guerras em África e confrontos mais localizados no Afeganistão, Iraque e Síria. Será que esta tendência vai continuar?

Esta tendência não se transformará numa avalanche no próximo ano. Mas é bastante óbvio que vai aumentar, porque as placas tectónicas sob o sistema mundial se deslocaram. A Rússia está muito mais bem preparada para este período do que estava há alguns anos. A operação militar que estamos a conduzir na Ucrânia visa, entre outras coisas, preparar o país para a vida no mundo muito perigoso do futuro.

Estamos a purificar a nossa elite, a livrar-nos de elementos corruptos e pró-ocidentais. Estamos a revitalizar a nossa economia. Estamos a revitalizar as nossas forças armadas. Estamos a reavivar o espírito russo. Estamos agora muito mais bem preparados para defender os nossos interesses no mundo do que estávamos há alguns anos atrás.

Vivemos num país ressurgente que olha corajosamente para o futuro. A operação militar está a ajudar-nos a purgar-nos dos ocidentais e dos ocidentalizadores, a encontrar o nosso novo lugar na história. E, finalmente, a fortalecermo-nos militarmente.

Concorda que, a partir de 2024, o mundo entrará num período de conflito prolongado? A humanidade atual tem a vontade política para alterar esta situação?

É claro que entrámos numa era de conflitos prolongados. Mas estamos muito mais bem preparados para eles do que nunca. Parece-me que, ao seguirmos um caminho de contenção do Ocidente e de construção de relações fraternas com a China, estamos a tornar-nos um eixo do mundo que pode evitar que todos deslizem para uma catástrofe global. Mas para isso são necessários esforços para manter ajuizados os nossos adversários no Ocidente.

Entrámos numa luta para salvar o mundo. Talvez a missão da Rússia seja libertar o nosso planeta do “jugo ocidental”, salvá-lo das dificuldades que surgirão das mudanças que já estão a causar muitos atritos. A ameaça vem, em grande parte, do contra-ataque desesperado do Ocidente, que se agarra ao seu domínio de 500 anos, que lhe permitiu pilhar o mundo.

Vemos que surgiram novos valores no Ocidente, incluindo a negação de tudo o que é humano e divino no homem. As elites ocidentais começaram a alimentar estes anti-valores e a suprimir os valores normais. Temos, portanto, um período difícil pela frente, mas espero que nos preservemos e ajudemos o mundo a salvar a humanidade tradicional.

Um dos muitos problemas que o mundo enfrenta atualmente é, evidentemente, o facto de a economia global estar numa crise sistémica devido ao crescimento interminável do consumo. Isto destrói a própria natureza. O homem não foi criado para consumir, para ver o sentido da existência na compra de coisas novas.

Numa entrevista à Interfax, o nosso vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Ryabkov, associou o possível abandono futuro do rumo anti-russo dos Estados Unidos e dos seus subordinados a uma “mudança geracional” no Ocidente. Mas será que uma mudança de elites no Ocidente, se acontecer, poderá dar um impulso para desanuviar as tensões? A ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, nascida em 1980, por exemplo, faz parte da nova geração, mas as suas opiniões são mais radicais do que as de outros “falcões” do passado. Na sua opinião, ainda existem políticos razoáveis e diplomáticos no Ocidente?

Penso que, atualmente, no Ocidente, estamos a lidar com duas gerações de elites que já estão bastante degradadas. Infelizmente, é pouco provável que consigamos chegar a um acordo com elas. No entanto, continuo a acreditar que as sociedades e os povos, incluindo os da Europa Ocidental, regressarão aos valores normais.

É claro que isso exigirá uma mudança de geração das elites. Concordo com Sergey Ryabkov quando diz que vai demorar muito tempo, mas espero que os países da Europa Ocidental, e talvez também os EUA, não caiam num estado sem esperança e que forças nacionais saudáveis regressem ao poder em toda a Europa.

No entanto, não acredito que forças nacionais reais e pragmáticas possam chegar ao poder na Europa Ocidental num futuro próximo. Por isso, acredito que, se alguma vez falarmos de retorno a relações normais entre a Rússia e o Ocidente, isso levará pelo menos 20 anos.

Também temos de perceber que já não precisamos do Ocidente. Tirámos tudo o que podíamos desta maravilhosa viagem europeia que Pedro, o Grande, iniciou. Agora temos de regressar a nós próprios, às origens da grandeza da Rússia. Trata-se, evidentemente, do desenvolvimento da Sibéria. O seu novo desenvolvimento, que significa alcançar novos horizontes.

Temos de nos lembrar que não somos tanto um país europeu como um país eurasiático. Não me cansarei de vos recordar que Alexandre Nevsky passou um ano e meio a viajar pela Ásia Central e depois pelo Sul da Sibéria a caminho de Karakorum, a capital do Império Mongol. De facto, ele foi o primeiro russo siberiano.

Ao regressar à Sibéria, aos Urais, ao construir novas estradas, novas indústrias, estamos a regressar a nós próprios, às raízes dos nossos 500 anos de grandeza. Só depois da abertura da Sibéria é que a Rússia encontrou a força e a oportunidade de se tornar uma grande potência.

Infelizmente, em princípio, num futuro previsível não pode haver acordos sérios de limitação de armas entre Estados.

Até que ponto é razoável esquecer a Europa durante décadas?

Não devemos, em circunstância alguma, esquecer as velhas pedras sagradas da Europa de que falava Dostoievski. Elas fazem parte da nossa auto-consciência. Eu próprio adoro a Europa, e Veneza em particular. Foi por esta cidade que passou a Rota da Seda e, através dela, as grandes civilizações asiáticas. Nessa altura, aliás, elas ultrapassaram a civilização europeia no seu desenvolvimento.

Mesmo há 150-200 anos, olhar para a Europa era um sinal de modernização e progresso. Mas desde há muito tempo, e ainda mais atualmente, é um sinal de atraso intelectual e moral. Não devemos negar as nossas raízes europeias; devemos tratá-las com cuidado. Afinal de contas, a Europa deu-nos muito. Mas a Rússia tem de avançar. E avançar não significa para o Ocidente, mas para o Leste e para o Sul. É aí que reside o futuro da humanidade.

O Tratado sobre Armas Estratégicas Ofensivas expira em 2026. O que vem a seguir? Perante o niilismo jurídico do Ocidente, podemos contar com novos acordos militares inter-estatais? Ou estará a humanidade condenada a uma corrida incontrolável aos armamentos até à instauração de uma nova ordem mundial e, consequentemente, de um novo status quo?

É inútil negociar com as actuais elites ocidentais. Nos meus escritos, exorto a oligarquia ocidental a substituir estas pessoas, porque são perigosas para si próprias, e espero que, mais cedo ou mais tarde, esse processo se inicie. Porque o grupo atual está tão profundamente degradado que é impossível negociar com eles. Claro que é preciso falar com eles. Afinal de contas, há outras ameaças para além das armas nucleares.

Há a revolução dos drones. Surgiram as armas cibernéticas. Há a inteligência artificial. Surgiram armas biológicas que também podem ameaçar a humanidade com problemas terríveis. A Rússia precisa de desenvolver uma nova estratégia para conter todas estas ameaças.

Estamos a trabalhar nisso, inclusive no novo Instituto de Economia e Estratégia Militar Internacional, e continuaremos a fazê-lo com as elites intelectuais dos países da maioria mundial. Estes são, antes de mais, os nossos amigos chineses e indianos. Debateremos o assunto com os nossos colegas paquistaneses e árabes. Até à data, o Ocidente não tem nada de construtivo para nos oferecer. Mas não fecharemos as nossas portas.

Num futuro previsível, infelizmente, não poderá haver acordos inter-estatais sérios sobre a limitação de armas em princípio. Simplesmente porque nem sequer sabemos o que limitar e como o fazer. Mas temos de desenvolver novas abordagens e incutir visões mais realistas nos nossos parceiros em todo o mundo. Nem sequer é tecnicamente possível contar com acordos de limitação de armas nos próximos anos. Seria simplesmente uma perda de tempo.

No entanto, poderá ser possível efetuar algumas negociações pro forma. Por exemplo, tentar proibir novos domínios da corrida ao armamento. Estou particularmente preocupado com as armas biológicas e as armas no espaço. É possível fazer alguma coisa nesses domínios. Mas o que a Rússia precisa agora é de desenvolver um novo conceito de dissuasão, que terá não só aspectos militares mas também psicológicos, políticos e morais.

As avaliações de que o Ocidente aceitou a derrota de Kiev são demasiado prematuras? E a ideia de que o Sul Global está a derrotar com confiança o mundo ocidental?

Os Estados Unidos beneficiam com o confronto na Ucrânia. [Entretanto], para as elites da Europa Ocidental, é a única forma de evitar o colapso moral. É por isso que vão apoiar o conflito na Ucrânia durante muito tempo. Numa situação destas, temos de agir de forma decisiva, tanto no terreno como na área da dissuasão estratégica, a fim de atingirmos os nossos objetivos o mais rapidamente possível. Ao mesmo tempo, é importante compreender que a maior parte do mundo não vai lutar contra o Ocidente.

Muitos países estão interessados em desenvolver relações comerciais e outras com o Ocidente. Por conseguinte, a Maioria Mundial é um parceiro, mas não um aliado da Rússia. Temos de ser duros, mas calculistas. Tenho quase a certeza de que, com a política correta de contenção e uma política ativa na periferia da Ucrânia, podemos quebrar a vontade da perigosa resistência do Ocidente.

No mundo de hoje, é cada um por si. É um mundo maravilhoso, multipolar e multicolorido. Isto não significa que daqui a 20 anos não existam alguns blocos, incluindo um bloco pró-russo condicional. Temos de nos encontrar, de compreender quem somos.

Uma grande potência euro-asiática, a Eurásia do Norte. Um libertador de nações, um garante da paz e um pivot político-militar da maioria mundial. É este o nosso destino.

Além disso, estamos preparados de forma única para este mundo devido à abertura cultural que adquirimos com a nossa história. Somos religiosamente abertos. Somos abertos a nível nacional. Tudo isto é algo que estamos agora a defender.

Cada vez mais, apercebemo-nos de que o mais importante em nós é o espírito russo e a cultura russa. Somos todos russos – russos, tártaros, chechenos, yakuts…

Penso que estamos a reencontrar-nos. E entro no Ano Novo com uma sensação de elevação espiritual e de otimismo. A Rússia está a renascer. É absolutamente óbvio.

Sergey Karaganov – Presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, reitor da Escola Superior de Economia Internacional e Negócios Estrangeiros (HSE) em Moscovo e antigo conselheiro do Kremlin

Publicado originalmente por geopolitics.co

Tradução: resistir.info

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Acabou a viagem europeia da Rússia

Sergey Karaganov, entrevistado por Evgeny Shostakov

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Em termos centro de poder global, o Velho Mundo está acabado. Moscovo entende isso, mas os nossos antigos parceiros permanecem em negação.

Não há muito tempo, o ministro da Defesa alemão Boris Pistorius disse: “A União Europeia tem de estar pronta para a guerra até ao fim da década”. Berlim começou a falar do regresso do serviço militar universal e dos preparativos para uma confrontação com Moscovo. Há sentimentos semelhantes na Polónia. Mas será apenas por causa dos acontecimentos na Ucrânia?

Qual é a razão para o recrudescimento do discurso de combate na Europa?

O importante jornal russo Rossiyskaya Gazeta entrevista o especialista em relações internacionais Sergey Karaganov, presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, supervisor académico da Escola Superior de Economia Internacional e Negócios Estrangeiros (HSE) em Moscovo e antigo conselheiro do Kremlin.

Evgeny Shostakov: Senhor Karaganov, tendo em conta a atual situação difícil da política externa, será necessária uma teoria conceptualmente diferente da dissuasão contra os inimigos da Rússia, a fim de parar o confronto crescente numa fase precoce e desencorajar os nossos adversários de alimentar conflitos?

As elites da Europa Ocidental – e especialmente da Alemanha – estão num estado de fracasso histórico. A base principal do seu domínio de 500 anos [do mundo] foi a superioridade militar, sobre a qual se construiu o domínio económico, político e cultural do Ocidente. Mas isso foi-lhes arrancado. Com a ajuda desta vantagem, manipularam os recursos do mundo a seu favor. Primeiro, pilharam as suas colónias e, mais tarde, fizeram o mesmo, mas com métodos mais sofisticados.

As elites ocidentais atuais não estão a conseguir resolver uma série de problemas crescentes nas suas sociedades. Estes incluem a redução da classe média e o aumento das desigualdades. Quase todas as suas iniciativas estão a fracassar. A União Europeia, como todos sabem, está a estender-se de modo lento mas constante. É por isso que a sua classe dirigente tem sido hostil à Rússia desde há cerca de 15 anos.

Precisam de um inimigo externo; Josep Borrell [o principal responsável pelos negócios estrangeiros da UE] chamou de selva o mundo em torno do bloco, no ano passado. Na verdade, no passado, a chanceler alemã Angela Merkel disse que as sanções adoptadas pela UE [contra a Rússia] eram necessárias, antes de mais, para unir a União Europeia e evitar o seu colapso.

As elites alemãs e da Europa Ocidental têm um complexo de inferioridade numa situação que, para elas, é agora monstruosa, em que a sua parte do mundo está a ser ultrapassada por todos. Não só pelos chineses e pelos americanos, mas também por muitos outros países. Graças à libertação do mundo do “jugo ocidental” pela Rússia, a Europa Ocidental já não está a dominar os Estados do Sul Global, ou, como lhes chamo, os países da maioria mundial.

A ameaça que agora se apresenta à Europa Ocidental é o facto de o Velho Mundo ter perdido o medo dos conflitos armados. E isso é muito perigoso. Ao mesmo tempo, o Ocidente da Europa, permitam-me que vos recorde, tem sido a fonte das piores catástrofes da história da humanidade.

Atualmente, na Ucrânia, há uma luta não só pelos interesses da Rússia, pelos interesses da sua segurança, mas também para evitar um novo confronto global. A ameaça está a crescer. Isso também se deve às tentativas desesperadas do Ocidente de contra-atacar para manter o seu domínio. As atuais elites da Europa Ocidental estão a fracassar e a perder influência no mundo muito mais do que as suas congéneres americanas.

A Rússia está a travar a sua própria batalha e a travá-la com êxito. Estamos a agir com confiança suficiente para dar juízo a estas elites ocidentais, para que não desencadeiem outro conflito mundial em desespero com os seus fracassos. Não devemos esquecer que os antecessores destas mesmas pessoas desencadearam duas guerras mundiais no espaço de uma geração, no século passado. Atualmente, a qualidade destas elites é ainda mais baixa do que era na altura.

Está a falar da derrota espiritual e política da Europa Ocidental como um facto consumado?

Sim, e isso é assustador. Afinal de contas, também fazemos parte da cultura europeia. Mas espero que, através de uma série de crises, daqui a 20 anos, digamos, prevaleçam forças sãs nesse lado do continente. E acordará do seu fracasso, incluindo o seu fracasso moral.

Para já, estamos a assistir à formação de uma nova Cortina de Ferro em relação à Rússia. O Ocidente está a tentar “apagar” o nosso país, incluindo nos domínios da cultura e dos valores. Há uma desumanização deliberada dos russos nos media. Devemos reagir de forma inversa e “cancelar” o Ocidente?

De modo algum. O Ocidente está agora a fechar a Cortina de Ferro, em primeiro lugar porque nós, na Rússia, somos os verdadeiros europeus. Continuamos a ser saudáveis. E eles querem excluir estas forças saudáveis. Em segundo lugar, o Ocidente está a fechar esta cortina, ainda mais firmemente do que durante a Guerra Fria, a fim de mobilizar a sua população para as hostilidades. Mas nós não precisamos de uma confrontação militar com o Ocidente, pelo que nos apoiaremos numa política de contenção para evitar o pior.

É claro que não vamos cancelar nada, incluindo a nossa história europeia. Sim, concluímos o nosso percurso europeu [em termos de integração]. Penso que se arrastou um pouco, talvez durante um século. Mas sem a inoculação europeia, sem a cultura europeia, não nos teríamos tornado uma grande potência. Não teríamos tido Dostoiévski, Tolstoi, Pushkin ou Blok.

Por isso, vamos manter a cultura europeia, que o Ocidente do nosso continente parece estar a tentar abandonar. Mas espero que não se destrua completamente, a este respeito. Porque a Europa Ocidental não está apenas a abandonar a cultura russa, está a abandonar a sua própria cultura. Está a anular uma cultura que se baseia largamente no amor e nos valores cristãos. Está a anular a sua história, a destruir os seus monumentos. No entanto, não rejeitaremos as nossas raízes europeias.

Sempre fui contra o facto de olharmos para o Ocidente com melindres. Não se deve fazer isso. Nesse caso, seríamos como eles. E eles estão agora a deslizar para uma marcha inevitável em direção ao fascismo. Não precisamos de todos os contágios que têm estado e estão a crescer a partir do Ocidente da Europa. Incluindo, mais uma vez, o contágio crescente do fascismo.

O ano de 2023 assistiu ao descongelamento de velhos conflitos e à criação demonstrativa das condições para novos conflitos – a explosão previsível do confronto israelo-palestino, uma série de guerras em África e confrontos mais localizados no Afeganistão, Iraque e Síria. Será que esta tendência vai continuar?

Esta tendência não se transformará numa avalanche no próximo ano. Mas é bastante óbvio que vai aumentar, porque as placas tectónicas sob o sistema mundial se deslocaram. A Rússia está muito mais bem preparada para este período do que estava há alguns anos. A operação militar que estamos a conduzir na Ucrânia visa, entre outras coisas, preparar o país para a vida no mundo muito perigoso do futuro.

Estamos a purificar a nossa elite, a livrar-nos de elementos corruptos e pró-ocidentais. Estamos a revitalizar a nossa economia. Estamos a revitalizar as nossas forças armadas. Estamos a reavivar o espírito russo. Estamos agora muito mais bem preparados para defender os nossos interesses no mundo do que estávamos há alguns anos atrás.

Vivemos num país ressurgente que olha corajosamente para o futuro. A operação militar está a ajudar-nos a purgar-nos dos ocidentais e dos ocidentalizadores, a encontrar o nosso novo lugar na história. E, finalmente, a fortalecermo-nos militarmente.

Concorda que, a partir de 2024, o mundo entrará num período de conflito prolongado? A humanidade atual tem a vontade política para alterar esta situação?

É claro que entrámos numa era de conflitos prolongados. Mas estamos muito mais bem preparados para eles do que nunca. Parece-me que, ao seguirmos um caminho de contenção do Ocidente e de construção de relações fraternas com a China, estamos a tornar-nos um eixo do mundo que pode evitar que todos deslizem para uma catástrofe global. Mas para isso são necessários esforços para manter ajuizados os nossos adversários no Ocidente.

Entrámos numa luta para salvar o mundo. Talvez a missão da Rússia seja libertar o nosso planeta do “jugo ocidental”, salvá-lo das dificuldades que surgirão das mudanças que já estão a causar muitos atritos. A ameaça vem, em grande parte, do contra-ataque desesperado do Ocidente, que se agarra ao seu domínio de 500 anos, que lhe permitiu pilhar o mundo.

Vemos que surgiram novos valores no Ocidente, incluindo a negação de tudo o que é humano e divino no homem. As elites ocidentais começaram a alimentar estes anti-valores e a suprimir os valores normais. Temos, portanto, um período difícil pela frente, mas espero que nos preservemos e ajudemos o mundo a salvar a humanidade tradicional.

Um dos muitos problemas que o mundo enfrenta atualmente é, evidentemente, o facto de a economia global estar numa crise sistémica devido ao crescimento interminável do consumo. Isto destrói a própria natureza. O homem não foi criado para consumir, para ver o sentido da existência na compra de coisas novas.

Numa entrevista à Interfax, o nosso vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Ryabkov, associou o possível abandono futuro do rumo anti-russo dos Estados Unidos e dos seus subordinados a uma “mudança geracional” no Ocidente. Mas será que uma mudança de elites no Ocidente, se acontecer, poderá dar um impulso para desanuviar as tensões? A ministra dos Negócios Estrangeiros da Alemanha, Annalena Baerbock, nascida em 1980, por exemplo, faz parte da nova geração, mas as suas opiniões são mais radicais do que as de outros “falcões” do passado. Na sua opinião, ainda existem políticos razoáveis e diplomáticos no Ocidente?

Penso que, atualmente, no Ocidente, estamos a lidar com duas gerações de elites que já estão bastante degradadas. Infelizmente, é pouco provável que consigamos chegar a um acordo com elas. No entanto, continuo a acreditar que as sociedades e os povos, incluindo os da Europa Ocidental, regressarão aos valores normais.

É claro que isso exigirá uma mudança de geração das elites. Concordo com Sergey Ryabkov quando diz que vai demorar muito tempo, mas espero que os países da Europa Ocidental, e talvez também os EUA, não caiam num estado sem esperança e que forças nacionais saudáveis regressem ao poder em toda a Europa.

No entanto, não acredito que forças nacionais reais e pragmáticas possam chegar ao poder na Europa Ocidental num futuro próximo. Por isso, acredito que, se alguma vez falarmos de retorno a relações normais entre a Rússia e o Ocidente, isso levará pelo menos 20 anos.

Também temos de perceber que já não precisamos do Ocidente. Tirámos tudo o que podíamos desta maravilhosa viagem europeia que Pedro, o Grande, iniciou. Agora temos de regressar a nós próprios, às origens da grandeza da Rússia. Trata-se, evidentemente, do desenvolvimento da Sibéria. O seu novo desenvolvimento, que significa alcançar novos horizontes.

Temos de nos lembrar que não somos tanto um país europeu como um país eurasiático. Não me cansarei de vos recordar que Alexandre Nevsky passou um ano e meio a viajar pela Ásia Central e depois pelo Sul da Sibéria a caminho de Karakorum, a capital do Império Mongol. De facto, ele foi o primeiro russo siberiano.

Ao regressar à Sibéria, aos Urais, ao construir novas estradas, novas indústrias, estamos a regressar a nós próprios, às raízes dos nossos 500 anos de grandeza. Só depois da abertura da Sibéria é que a Rússia encontrou a força e a oportunidade de se tornar uma grande potência.

Infelizmente, em princípio, num futuro previsível não pode haver acordos sérios de limitação de armas entre Estados.

Até que ponto é razoável esquecer a Europa durante décadas?

Não devemos, em circunstância alguma, esquecer as velhas pedras sagradas da Europa de que falava Dostoievski. Elas fazem parte da nossa auto-consciência. Eu próprio adoro a Europa, e Veneza em particular. Foi por esta cidade que passou a Rota da Seda e, através dela, as grandes civilizações asiáticas. Nessa altura, aliás, elas ultrapassaram a civilização europeia no seu desenvolvimento.

Mesmo há 150-200 anos, olhar para a Europa era um sinal de modernização e progresso. Mas desde há muito tempo, e ainda mais atualmente, é um sinal de atraso intelectual e moral. Não devemos negar as nossas raízes europeias; devemos tratá-las com cuidado. Afinal de contas, a Europa deu-nos muito. Mas a Rússia tem de avançar. E avançar não significa para o Ocidente, mas para o Leste e para o Sul. É aí que reside o futuro da humanidade.

O Tratado sobre Armas Estratégicas Ofensivas expira em 2026. O que vem a seguir? Perante o niilismo jurídico do Ocidente, podemos contar com novos acordos militares inter-estatais? Ou estará a humanidade condenada a uma corrida incontrolável aos armamentos até à instauração de uma nova ordem mundial e, consequentemente, de um novo status quo?

É inútil negociar com as actuais elites ocidentais. Nos meus escritos, exorto a oligarquia ocidental a substituir estas pessoas, porque são perigosas para si próprias, e espero que, mais cedo ou mais tarde, esse processo se inicie. Porque o grupo atual está tão profundamente degradado que é impossível negociar com eles. Claro que é preciso falar com eles. Afinal de contas, há outras ameaças para além das armas nucleares.

Há a revolução dos drones. Surgiram as armas cibernéticas. Há a inteligência artificial. Surgiram armas biológicas que também podem ameaçar a humanidade com problemas terríveis. A Rússia precisa de desenvolver uma nova estratégia para conter todas estas ameaças.

Estamos a trabalhar nisso, inclusive no novo Instituto de Economia e Estratégia Militar Internacional, e continuaremos a fazê-lo com as elites intelectuais dos países da maioria mundial. Estes são, antes de mais, os nossos amigos chineses e indianos. Debateremos o assunto com os nossos colegas paquistaneses e árabes. Até à data, o Ocidente não tem nada de construtivo para nos oferecer. Mas não fecharemos as nossas portas.

Num futuro previsível, infelizmente, não poderá haver acordos inter-estatais sérios sobre a limitação de armas em princípio. Simplesmente porque nem sequer sabemos o que limitar e como o fazer. Mas temos de desenvolver novas abordagens e incutir visões mais realistas nos nossos parceiros em todo o mundo. Nem sequer é tecnicamente possível contar com acordos de limitação de armas nos próximos anos. Seria simplesmente uma perda de tempo.

No entanto, poderá ser possível efetuar algumas negociações pro forma. Por exemplo, tentar proibir novos domínios da corrida ao armamento. Estou particularmente preocupado com as armas biológicas e as armas no espaço. É possível fazer alguma coisa nesses domínios. Mas o que a Rússia precisa agora é de desenvolver um novo conceito de dissuasão, que terá não só aspectos militares mas também psicológicos, políticos e morais.

As avaliações de que o Ocidente aceitou a derrota de Kiev são demasiado prematuras? E a ideia de que o Sul Global está a derrotar com confiança o mundo ocidental?

Os Estados Unidos beneficiam com o confronto na Ucrânia. [Entretanto], para as elites da Europa Ocidental, é a única forma de evitar o colapso moral. É por isso que vão apoiar o conflito na Ucrânia durante muito tempo. Numa situação destas, temos de agir de forma decisiva, tanto no terreno como na área da dissuasão estratégica, a fim de atingirmos os nossos objetivos o mais rapidamente possível. Ao mesmo tempo, é importante compreender que a maior parte do mundo não vai lutar contra o Ocidente.

Muitos países estão interessados em desenvolver relações comerciais e outras com o Ocidente. Por conseguinte, a Maioria Mundial é um parceiro, mas não um aliado da Rússia. Temos de ser duros, mas calculistas. Tenho quase a certeza de que, com a política correta de contenção e uma política ativa na periferia da Ucrânia, podemos quebrar a vontade da perigosa resistência do Ocidente.

No mundo de hoje, é cada um por si. É um mundo maravilhoso, multipolar e multicolorido. Isto não significa que daqui a 20 anos não existam alguns blocos, incluindo um bloco pró-russo condicional. Temos de nos encontrar, de compreender quem somos.

Uma grande potência euro-asiática, a Eurásia do Norte. Um libertador de nações, um garante da paz e um pivot político-militar da maioria mundial. É este o nosso destino.

Além disso, estamos preparados de forma única para este mundo devido à abertura cultural que adquirimos com a nossa história. Somos religiosamente abertos. Somos abertos a nível nacional. Tudo isto é algo que estamos agora a defender.

Cada vez mais, apercebemo-nos de que o mais importante em nós é o espírito russo e a cultura russa. Somos todos russos – russos, tártaros, chechenos, yakuts…

Penso que estamos a reencontrar-nos. E entro no Ano Novo com uma sensação de elevação espiritual e de otimismo. A Rússia está a renascer. É absolutamente óbvio.

Sergey Karaganov – Presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, reitor da Escola Superior de Economia Internacional e Negócios Estrangeiros (HSE) em Moscovo e antigo conselheiro do Kremlin

Publicado originalmente por geopolitics.co

Tradução: resistir.info