By Daniel Vaz de CARVALHO
1 – A guerra das narrativas
Quando do caso Prigozhin, nos media perpassou uma alegre expectativa de “Moscovo já está a arder?” Um conhecido telefona-me em tom irónico: “Então o Putin está em fuga?” e “Agora a vitória da Ucrânia vai ser mais fácil.” Apenas pude dizer, não sei se bem se mal, que quem acredita nas televisões não faz a mínima ideia do que se passa no mundo. É espantoso que gente que há mais de um ano fala na derrota da Rússia ache agora uma vitória da Ucrânia “mais fácil”.
O caso Prigozin consumou-se em cerca de 12 horas, nenhuma unidade militar, entidade administrativa, partido representado na Duma, aderiu à pretensa “marcha sobre Moscovo”, colocando-se pelo contrário ao lado de Putin. Cumprindo a sua missão de intoxicação mental os media mais de uma semana depois continuavam a repetir insistentemente o tema da “instabilidade política na Rússia” ou “Putin vai fazer uma purga nas FA?”, ignorando o facto de o apoio a Putin ter aumentado para níveis próximo dos 90%.
Eram afirmações com ponto de interrogação no fim e aldrabices como as do Moscow News, sediado na Holanda, que como credibilidade vale tanto como o “Observatório dos direitos humanos da Síria”, em Londres, uma espécie de departamento do MI6 (serviços secretos britânicos), etc. Mas a mais estúpida foi a do paradeiro do general Surovkin: “Onde está Surovkin? Terá sido preso?” Apesar do desmentido da filha a novela prosseguiu, como se a localização de altas patentes não tivesse de ser mantida desconhecida.
É a “guerra das narrativas” – a única que o ocidente tem ganho para mascarar as perdas reais – como escreve o ex-diplomata britânico Alastair Crooke: “Vivemos uma “guerra de narrativas”, como a insistência de que apenas uma “realidade”, a ideologia de “regras” liderada pelos EUA, pode prevalecer. A linguagem do ocidente abjura qualquer diplomacia séria e sinaliza que é imperativo manter a narrativa: a Ucrânia ganha, Putin perde. Washington (e a UE/NATO) não podem livrar-se da crença de que a Rússia é frágil, que suas forças armadas são pouco competentes, que sua economia entra em colapso, que Putin acabará por aceitar qualquer “ramo de oliveira” que os EUA lhe estendam”.
Trata-se de “acreditar no absurdo”. Subordinados aos interesses oligárquicos os media funcionam como câmaras de ecos, difundem falsas notícias, a realidade, é ofuscada. Narrativas são elaboradas e mantidas sem cessar, na forma de “tema e variações”. De acordo com os media:
A Rússia destruiu os seus próprios gasodutos; bombardeou a ponte sobre a Crimeia; atacou a sua central nuclear de Zaporozhye (agora prepara-se para a destruir!); atacou o Kremlin com drones; destruiu a sua barragem e central hidroelétrica de Kakhovskaya, inundando os seus campos e aldeias, destruindo suas defesas militares, dificultando o abastecimento de água à Crimeia; a Rússia está derrotada e os soldados desmoralizados.
Na Rússia, como em qualquer país que não obedeça totalmente ao ocidente, não existe um governo, uma Constituição, eleições, existe um “regime”, uma “autocracia”. Não é necessário apresentar provas do que se diz, basta repeti-lo vezes sem conta. Quem o negar entra na lista de suspeitos.
O ocidente está saturado de propaganda destinada a manipular a forma como o público pensa, age, trabalha, compra e vota. Os trabalhadores dos media testemunharam estar sob constante pressão para espalhar narrativas favoráveis ao status quo político do império americano. Os media apoiam todas as guerras dos EUA e mobilizam-se para os objetivos da política externa dos EUA, exibindo preconceitos contra os governos visados pelo império, claro que isto só acontece com um mínimo de pensamento crítico. (Caitlin Johnstone)
As campanhas mediáticas mascararam como os acordos de Minsk foram traídos ou a expansão da NATO, escamoteiam o neonazismo instaurado em Kiev. Aos media compete garantir que ao poder hegemónico é dado fazer coisas más em nome da “ordem internacional baseada em regras”. Chantagem financeira, agressões, assassinatos seletivos (como os ordenados pelo prémio Nobel da Paz Obama no Paquistão e respetivos “danos colaterais”) passam sem crítica.
Assange denunciou estas situações, inclusive os assassinatos de jornalistas da Reuters, Saeed Chmagh e Namir Noor-Eldeen, entre outros, sendo baleados por um helicóptero dos EUA. Julian Assange está preso no Reino Unido, tendo pendente a extradição para os EUA para ser preso por 175 anos.
2 – Acreditar no absurdo
Ainda em maio Blinken declarava que a Rússia estava isolada, derrotada geopolítica, estratégica e financeiramente. Os media repetiam religiosamente a “palavra do senhor”.
Os políticos e elites do sistema funcionam na mentira que, dada a intensa manipulação, se torna subconsciente. É com isto que temos de viver. Porém, o problema dos manipuladores – também a sua fraqueza – é acabarem por acreditar na própria manipulação. Mas nada de positivo pode ser construido através da mentira. A França tornou-se um exemplo dramático e nos EUA a proliferação tanto de sem abrigo como de bandos criminosos e massacres arbitrários, mostram como as sociedades ocidentais estão longe da democracia.
A “lavagem cerebral para a guerra atual é semelhante à de outras guerras”, escreveu John Pilger, em um tuíte, “mas nunca, na minha experiência como correspondente de guerra, foi tão implacável e desprovida de jornalismo honesto como nesta”.
No apoio às oligarquias e ao imperialismo as mentes são constantemente sujeitas a deformações da realidade para que no mínimo a confusão se instale. As evidências e a lógica factual são recusadas, a crítica torna-se suspeita por perturbar convicções instaladas. O que altera os cenários instituídos é recusado como “propaganda russa”, o que vem de Kiev é tomado como verdadeiro, nunca como “propaganda ucraniana”, ou melhor, propaganda da NATO.
Claro que esta situação psicológica e socialmente disfuncional tornou-se absolutamente necessária a um sistema em declínio. A desdolarização do mundo está em curso; a crise financeira é um facto que EUA e UE não mostram ter capacidade de controlar; o armamento da Rússia – e também da China – é qualitativamente superior ao ocidental; o VA do produto industrial da China ultrapassou o dos EUA e UE somados. (Financial Times)
Mas é preciso que as pessoas não tenham ideia destas situações, nem das desigualdades, nem de como a inflação é gerada e como as crises e a guerra aumentam os lucros dos grandes oligopólios. É por isto que a realidade tem de ser ofuscada, com gente muito inteligente a dizer-nos que insistir em lucros excessivos é um disparate porque 99% das empresas são MPME…
Mas não é só nos media, nas redes sociais aparecem textos no mesmo sentido da propaganda, absolutamente idênticos, postados nas mesmas alturas, dispersos em vários países como se obedecessem a uma central, ou talvez gerados por automatismos, para que certas versões da realidade passem por opinião generalizada.
Tudo isto contribui para o síndroma do consenso belicista, necessário para que nos países da UE/NATO se aceite reduzir o nível de vida e aumentar as despesas militares. Que se continue a dar dezenas de milhares de milhões de euros para combater a Rússia e “ajudar” a Ucrânia. Embora, o grosso da “ajuda” acabe em grande parte danificado ou destruído.
Implicitamente, querem que nos preparemos – e paguemos – uma longa guerra sem pensar nas consequências, já que pouco falta para que pensar criticamente seja proibido. Assim, a Alemanha e a França querem acabar com o direito de veto na UE. Estes países consideram importante abolir a votação unânime no CE em domínios como a política externa e a fiscalidade antes do alargamento da UE. Como dizia alguém, não é preciso estar certo, é preciso é ter bons argumentos. E para isso cá estão os media e seus pregadores, ditos “comentadores” e “analistas”.
3 – O patético papel da social-democracia
Como diz certa canção “escutei com atenção um tocador do passado”, também muito novo escutei com atenção um militante do passado falando acerca do fascismo. Disse-me, que era fácil saber o que é fascismo, o fascismo tem tudo o que é negativo, e a partir daqui explicou-me o que para o povo era positivo e o que era negativo.
Impedir que o povo, os trabalhadores, tomem por si clara consciência desta diferença é o papel básico dos media corporativos e seus “comentadores”. Seja na economia, no social, na política externa e geopolítica, o que vale é a “ordem internacional baseada em regras”.
Não há líder da UE/NATO que não se desloque a Kiev a prestar homenagem ao fantoche de serviço. Faz lembrar os atos medievais de profissão de fé e submissão a Roma perante delegados papais. Aqueles líderes repetem o credo estabelecido por Washington de que a Rússia iniciou uma guerra de agressão não provocada, há um claro agressor e um agredido, a Ucrânia vai vencer, as condições de paz são as de Zelensky, etc. Tudo o que se passou antes, desde a expansão da NATO ao golpe de 2014 e após, é dado como não existente. Nunca foi permitido um debate nem ouvida a opinião dos seus povos sobre a justeza e as consequências daquelas posições.
Neste contexto a social-democracia desempenha, como em tantas outras vezes, um papel reacionário contra a unidade popular visando o progresso social. Graças às suas mentiras eleitorais, com os interesses oligárquicos e geopolíticos imperialistas sobrepondo-se aos interesses nacionais e populares, a democracia cessa, fica o campo aberto à demagogia da extrema-direita fascizante ou mesmo fascista.
O branqueamento do nazismo do clã de Kiev, e também dos Estados Bálticos, é de grave responsabilidade da social-democracia. Monumentos à derrota do nazifascismo são destruídos e substituídos por criminosos nazis. Mas não só, livros são queimados, bustos de artistas consagrados são derrubados, pessoas são ameaçadas e perseguidas pela origem e fala russa ou por criticarem o clã de Kiev. Que a direita o omita não espanta, mas que a social-democracia se cale perante o retorno dos monstros nazis, para além da indignação infunde profunda tristeza.
Arrastada por incompetentes e tresloucados a UE afunda-se. Sem o mínimo nexo do que diz, motivada pela sua obsessão ideológica a sra. von der Leyen (já apontada como a Maria Antonieta da UE) afirma que a UE apoiará a Ucrânia até onde for necessário, “O futuro da Ucrânia é o nosso futuro. Estamos construindo esse futuro juntos, já hoje”. Eis o que ela reserva para os europeus da UE: um nada invejável futuro semelhante à vida dos ucranianos. (Ukraine Watch, 22/06) Por espantoso que pareça, é para lá que se caminha, é para onde esta gente nos leva, porque a oligarquia das grandes potências ocidentais nunca aceitou perder os escandalosos lucros que obteve com o saque após o fim da União Soviética.
Aos media compete esconderem o desmantelamento das ilusões do mundo unipolar liderado pelos EUA. Uma narrativa mantida sem contraditório e sem argumentos, bastando a ocultação de factos e inverdades. Escondem a rapidez com que a geopolítica se altera: o fracasso das sanções contra a Rússia levou a que noutros países a hegemonia ocidental seja contestada. A China lidera esta verdadeira revolução com a sua diplomacia nos países árabes, o alargamento dos BRICS, a ligação à Ásia central, etc.
No entanto, o caso Prigozhin mostra as contradições da política russa atual. Não pelas razões propaladas pelos media: os EUA e outros da NATO têm dezenas de empresas militares privadas que operaram em todos os seus cenários de guerra e estão também espalhadas por África, a “promover a paz e a democracia” (?!) dos interesses das grandes transnacionais.
As contradições da política russa residem na unidade nacional conseguida por Putin, facilitada pelo descalabro a que o liberalismo levou a Rússia e outras ex-republicas soviéticas. A Rússia precisa de unidade perante as ameaças expostas pela NATO. Porém a conciliação entre interesses oligárquicos e populares é transitória e sempre perante objetivos/ameaças bem definidas. A oligarquia, mesmo submetida ao poder do Estado representado por Putin, não deixa por natureza de olhar para o ocidente como o seu modelo – acabando por entrar em choque com os interesses nacionais e populares.
Atualmente, em termos históricos e culturais foi recuperado tanto o passado imperial czarista como o soviético. Para o povo russo hoje Estaline é tanto referência da grandeza russa como Pedro o Grande. Putin coloca-se ou é colocado como grande líder, acima das contradições existentes já evidenciadas por Sergey Glasiev e outros. Por mais carismática que uma personagem seja, não pode eliminar as contradições sociais, apenas menoriza-las – temporariamente.
Por ironia, afinal não foi Moscovo que começou a arder, mas sim a França – pelos que noutro país seriam elogiados “combatentes da liberdade”… Por tudo isto, num mundo que se mantém complexo e cada vez mais perigoso, “o mais importante, como nos diz Caitlin Johnstone, é continuar a dizer a verdade, de qualquer maneira nova, envolvente e criativa que possamos imaginar. Quanto mais de nós o fizermos, mais oportunidades haverá para alguém vislumbrar algo para além do véu que obscurece a sua visão do mundo, instalado pela propaganda e desvios cognitivos. Quanto mais criarmos essas oportunidades, maior a probabilidade da verdade ser ouvida”.
Publicado originalmente por Resistir.info